Stefania Chiarelli
Especial para o EM
“Vou matar esse desgraçado”. Já na primeira linha uma das narradoras de “Jogo de damas” joga na cara dos leitores e leitoras o desejo de aniquilação. Quase doença infecciosa, o sentimento de cólera decorrente da raiva da protagonista irá movimentar a trama desse intrigante romance. Ela quer vingança. Reeditado este ano, o livro de Myriam Campello tem um horizonte de recepção distinto do momento em que foi lançado, em 2010. O eixo central da história coincide com o recente ataque à escritora Roseana Murray por três cães da raça pitbull, ocorrido em Saquarema (RJ). A poeta teve o braço direito amputado e graves ferimentos na cabeça, mas sobreviveu à agressão com a gana de seguir produzindo.
Um sentimento próximo, mas em outra direção, movimenta a narrativa ficcional de Campello, que gira em torno da tragédia ocorrida com Ana, filha de Julia, uma advogada carioca. Também atacada por um pitbull, a criança de quatro anos não sobrevive. Convicta da revanche como “explosão de saúde”, a mãe quer exterminar não o cachorro, mas seu dono. Seis meses se passaram, ela está de licença do trabalho e a dor da perda só aumenta.
A prosa sempre elegante da escritora carioca se sustenta nas idas e vindas no tempo e no intercalar de duas vozes narrativas, cujo ritmo é construído a partir de frases precisas: “Nosso grupo de ofendidos está por toda parte. Acertar contas é o que nos sobrou. Um pequeno orifício da alma por onde respirar. Aqui se faz, aqui se paga, não é o que dizem?” O dilema ético abarca a contradição no fato dessa mulher, promotora por profissão, apostar no revide. É legítima a vontade de uma mãe de destruir o algoz da própria filha? Com ou sem dolo, o resultado foi o mesmo, o animal feroz atacando uma criança em plena pracinha da Urca.
Na tentativa de encaminhar alguma solução para a tragédia, as personagens do romance se deslocam pelo espaço o tempo todo. Elas operam um movimento de saída de si para entender algo que sempre escapa, como as palavras para dizer o inominável. Transitando por estradas e caminhos variados, como o velho hotel na serra fluminense em que Julia se refugia, elas também palmilham uma certa paisagem carioca que, apesar de concentrada na Zona sul do Rio de Janeiro, foge à obviedade dos cartões postais: a mureta do bucólico bairro da Urca, uma ladeira da Glória, o quarto de hotel na rua Paissandu, um banco qualquer de frente para o mar no calçadão. A cidade é lugar de jogo e de cena - por vezes da cena de um crime.
Na trama desse tabuleiro, outra dama se impõe: seu nome é Helena e ela está hospedada no mesmo hotel em que Julia se abriga. De origem humilde, Helena cresceu sob a proteção de uma tia rica, absorvendo os hábitos de uma classe da qual não faz parte. Uma contundente radiografia da elite carioca surge nas páginas do livro, como no episódio em que a personagem revira a casa e a lata de lixo dos parentes endinheirados para aprender seus gostos. Ler as entranhas da família e seus dejetos equivale a se educar para uma possível inserção social. Viver de favor é tarefa de alto risco, a integração nunca é completa e sobram ressentimentos por ali.
Talvez por isso mulheres confinadas proliferem na narrativa. Elas podem estar em mansões, orfanatos ou hotéis, ou mesmo aprisionadas em situações de clausura simbólica, como a pobreza e a cegueira. Sair dos espaços fechados e respirar livremente vai exigir empenho e astúcia.
Campello faz dessa arena de embates um lugar para sua ficção afiada, que contempla com frequência a temática do homoerotismo feminino, a exemplo de “Como esquecer – anotações quase inglesas”, romance de 2003 adaptado para o cinema e dirigido por Malu de Martino em 2010. Em ambos, mulheres a colecionar traumas e o encontro amoroso como tentativa de troca: “Há sempre um milagre a cada vez que se recupera a intimidade de um corpo”, afirma Julia na cama partilhada com Helena.
O ponto de vista da subjetividade feminina também investiga outras linguagens artísticas – desenhos, esboços, aquarelas e fotografias comparecem em “Jogo de damas” como expressão estética e posicionamento ético, revelando a importância dos modos de ver. A complexa montagem de todas essas peças depende das formas encontradas para (des)encaixar o que parece óbvio. Como boa herdeira de uma linhagem irônica machadiana - por sua vez leitor de primeira linha dos humoristas ingleses - Campello brinca com formatos consagrados, como o romance de suspense, para dizer das coisas em sua dimensão contraditória e esquiva. A depender do ângulo contemplado, tudo muda.
No cenário da literatura brasileira contemporânea, por vezes nomes incontornáveis nos escapam. Experiente tradutora, Campello trabalhou com as obras de Virginia Woolf, John Steinbeck e Stephen King, entre outros. Uma retrospectiva no tempo evidencia que desde os anos 1970 a autora está em atividade, tendo sido premiada à época por “Cerimônia da noite”, seu romance de estreia. “Os cem melhores contos brasileiros do século” (2000), antologia de Italo Moriconi, demonstra seu igual talento na narrativa breve: o vigoroso “Olho” está ali para eliminar qualquer dúvida. A despeito da qualidade, o nome da escritora circula menos do que deveria, e o relançamento de “Jogo de damas” representa uma oportunidade para apresentar sua obra a novos públicos. Para usar as palavras de uma das narradoras, “Depois, que a memória faça o que quiser”.
Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF. Publicou “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” (2022).
TRECHOS
“Quando algo pernicioso destroça quem você ama, a vingança é uma explosão de saúde. O velho olho por olho. Em lugar do inimigo em pé, um solo limpo e despojado. As leis não vão me ajudar. E o que faço com a destruição de Ana, quatro anos, estraçalhada por um pit bull ao brincar com a babá na pracinha perto de casa? Se vissem a própria filha transformada em despojo sangrento, dariam a outra face? Quem paga essa conta? Ou devo aceitar em silêncio que minha vida seja reduzida a uma papa disforme a caminho da podridão?”
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“Olhei os recortes de jornais com ataques da raça aos seres humanos. Como promotora, sempre considerei a justiça pelas próprias mãos um recurso indigno de nossa espécie refinada pela areia dos tempos. Minha voz racional saía de paragens onde vive gente que jamais sofreu um ataque gratuito do destino. Quando o solo se esfarelou aos meus pés, reduziu a cacos também minha visão protegida e um conceito mental. Acabara-se o luxo para mim. Os guerreiros japoneses desprezam a camélia como um símbolo da não resistência, pois ao morrer a flor cai inteira do galho. Concordo com eles. É preciso revidar.”
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“Jogo de damas”
• De Myriam Campello
• Editora Penalux
• 198 páginas
• R$ 48