Um grupo de mulheres coordena um sofisticado mecanismo de contato com o mundo externo às paredes da prisão de Cabildo, em Montevidéu, para executar uma fuga de detentas políticas. A operação acontece diante de um teatro para enganar a administração da penitenciária na superfície e se vale do conhecimento prévio de um organizado e dedicado movimento de guerrilha urbana que tinha como um de seus pilares o conhecimento detalhado da rede de esgotos da capital uruguaia. Em julho de 1971, 38 militantes escaparam no que é, até hoje, a maior fuga de um presídio femninino da história. Por si só, o episódio já é digno de ser contado em linhas encharcadas de emoção, mas o que a jornalista argentina Josefina Licitra entrega vai bastante além.
Em “38 estrelas: a maior fuga de um presídio de mulheres da história”, Licitra conta a história do caso que, cinco décadas depois, segue tão desconhecido quanto impressionante. A Operação Estrela, como foi batizada a fuga organizada pelo Movimento de Libertação Nacional Tupamaro no Uruguai, antecedeu dois meses antes de uma peripécia semelhante, quando 111 presos políticos homens escaparam do presídio de Punta Carretas.
Em entrevista ao Pensar, a jornalista fala sobre como não apenas a fuga masculina ofuscou o feito das mulheres ao fugir da prisão de Cabildo, mas espelhou um contexto de subjugo das militantes em relação a seus pares dentro dos movimentos de esquerda no início dos anos 1970. Ao dedicar seu livro às 38 estrelas, Josefina Licitra mais do que jogou luz ao escondido protagonismo feminino pelo feito extraordinário, mas em seu papel dentro dos movimentos políticos.
A obra chega às livrarias brasileiras a partir da próxima segunda-feira (21/10) lançado pela Relicário Edições. Nas páginas de “38 estrelas”, os leitores vão mergulhar a fundo na história das personagens centrais da fuga, entender o contexto da luta armada no Uruguai dos campos às ruas montevideanas e o contexto que precedeu a ditadura militar do país na onda antidemocrática que varreu a América Latina sob os panos da Guerra Fria.
A argentina está no Brasil desde a quinta-feira (18/10), onde participou de dois eventos de discussão da obra. O primeiro aconteceu no Campus Gragoatá da Universidade Federal Fluminense (UFF) no XIX Seminário Internacional Mulher e Literatura. O segundo, na sexta-feira (19/10), tratou especificamente sobre o lançamento do livro no Shopping da Gávea, Rio de Janeiro. Leia abaixo a entrevista de Josefina Licitra ao Pensar.
Você fala no início do livro que uma das motivações para contar a história da Operação Estrela foi justamente ela não ter tanto destaque como deveria. Como você se deparou com esse episódio pela primeira vez e quando decidiu que faria um livro sobre ele?
Conheci a Operação Estrela em 2011, durante uma viagem que fiz ao Uruguai para fazer um perfil de Pepe Mujica, que era o presidente do país. Como parte do trabalho nesse perfil, comecei a fazer entrevistas laterais com pessoas que o conheceram e uma das entrevistadas foi Lucía Topolansky, que foi e continua sendo sua parceira não só na militância, mas também conjugal. Ela me contou um pouco sobre sua vida e mencionou de passagem sobre uma fuga da qual ele participou. Não avançamos no tema naquele momento porque a entrevista tinha outro propósito, mas saí com muita curiosidade porque uma fuga em si é muito interessante como gênero narrativo em geral, inclusive além da escrita. Os filmes de fuga são interessantes, divertidos, as séries de fuga são cativantes e os romances que envolvem alguma fuga também.
Então comecei a buscar informações e percebi que havia muito pouco, o que já é muito curioso porque o Movimento Tupamaro é muito abundante na construção de uma história épica, com muitos episódios e aventuras. Depois também me chamou a atenção que uma fuga protagonizada por 38 mulheres que esvaziam o pavilhão de um presídio no centro da cidade não teve mais que algumas falas na mídia ou nos próprios livros publicados por escritores pertencentes ao Movimento Tupamaro.
A história é muito interessante e o silêncio em torno dela é muito sugestivo. A leitura sobre aquele silêncio estava inevitavelmente carregada de uma perspectiva de gênero, e isso me motivou a fazer, pelo menos, uma investigação preliminar, pois a primeira dúvida que tive foi se nada disso tinha sido publicado porque as mulheres não falavam ou se não tinha sido publicado por outro motivo, foi aí que comecei a fazer a pesquisa.
Minha primeira viagem foi pela Revista Piauí, com a qual colaborei muitos anos. Fernando de Barros e Silva foi um editor muito carinhoso comigo, eu lhe contei essa história e eles financiaram minha viagem principalmente para ver se as fugitivas queriam conversar. Quando comecei a entrevistar, percebi que o silêncio não tinha nada a ver com elas não quererem falar, mas sim com o fato de ninguém ter se aproximado delas para perguntar o que havia acontecido. Foi o suficiente para eu decidir começar a pesquisa para o livro.
Como foi o processo de pesquisa e busca dos personagens? Quais as principais dificuldades e as aventuras de contar a história de forma tão detalhada?
Comecei a investigação como geralmente faço: procurando um colega, um jornalista que pudesse funcionar como um fio que eu pudesse começar a puxar para ter contatos mais específicos. Falei com Marcelo Estefanell, que foi Tupamaro e jornalista ativo durante muito tempo na imprensa. Ele me apresentou a algumas das mulheres que haviam fugido. Assim que conheci essas poucas mulheres, elas me deram novos contatos que me aproximaram de outras e assim por diante e cheguei a falar com 14 ou 15 das personagens
Além disso, penso que o principal desafio teve a ver com ver como balancear as diferenças que existiam entre os relatos. Porque uma coisa é a coincidência nos elementos centrais que compõem a fuga, nas razões pelas quais queriam fugir em os motivos pelos quais todo o universo militante e ideológico. Os grandes passos do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros eram do conhecimento de todos eles e houve uma coincidência nesses relatos. Só que nos detalhes, nas minúcias que nos permitem trabalhar melhor a verossimilhança de uma história, às vezes havia diferenças porque a memória é muito complicada e declina com o passar dos anos e décadas.
Para dar apenas um exemplo, foi impossível reconstruir a ordem da fila que se formou para a fuga. Todas as mulheres que escaparam tiveram de formar uma fila e houve coincidência sobre as quatro primeiras, que eram os quadros mais importantes do movimento ou as mulheres que tiveram uma pena de mais anos, mas depois foi impossível montar uma história unificada entre elas sobre quem estava atrás de quem. Essa lógica pode ser aplicada a muitos outros aspectos, por exemplo, o que comeram antes de escaparem: algumas dizem que comeram arroz à cubana, o que dá um verniz épico bastante conveniente. Outras dizem que comeram outra coisa.
Portanto, há diferenças nos relatos e a única coisa pude fazer para superar esse problema foi torná-lo transparente dentro do livro, explicar no prólogo que este livro não é apenas a história de uma fuga, de um movimento, de uma época e do lugar que as mulheres ocuparam nesse movimento e naquela época, mas também é, de alguma forma, uma obra que fala sobre a construção da memória coletiva. É raro que muitas pessoas se lembrem da mesma coisa e o que se vê neste caso é que, como se trata de mulheres que não estavam acostumadas a falar com a mídia e foram pouco consultadas, não tiveram tempo de automatizar a história e ter uma recordação comum.
A relegação das mulheres nos movimentos de esquerda da época é um tema do livro. Como isso é revelado pelo próprio ofuscamento das 38 Estrelas diante da fuga subsequente de Punta Carretas?
A relação entre a Operação Estrela e ‘El Abuso’, como foi chamada a fuga de Punta Carretas, é quase alegórica ou explícita. Agora que falo isso, fico pensando no nome que foi escolhido para a fuga masculina, justamente por ser tão escandalosa. Aquela fuga envolveu 111 presos de uma prisão. Mas a palavra abuso se confunde, como muitas vezes acontece com o universo masculino, com termos sexuais. Ou seja, está intimamente ligado à masculinidade tóxica e me chama a atenção agora como simplesmente escolheram esse nome. Hoje nenhum grupo masculino escolheria um termo assim para batizar nada.
Mas a relação entre a ‘Estrela’ e o ‘Abuso’ é suficiente para vermos, de forma bastante óbvia, como eram as relações de poder na época em que isso aconteceu. Na década de 1970, por mais vanguardistas que fossem os movimentos de esquerda sob alguns aspectos, isso não significa que eles eram vanguardistas em tudo. As conquistas de gênero pareciam lutas pequeno-burguesas à esquerda e não se questionava ou problematizava as diferenças de gênero. A sociedade daquela época era bastante conservadora em termos de minorias sexuais e de gênero. O que aconteceu especificamente com a operação estrela.
É claro que ‘El Abuso’ foi uma enormidade, uma fuga que está no livro dos recordes e que aconteceu apenas dois meses depois da Operação Estrela. Mas o que me chamou a atenção, e insisto nisso, é que o Movimento Tupamaro sempre teve como uma de suas maiores armas a construção de uma narrativa muito sólida, uma narrativa de Robin Hood, de roubar os ricos para dar aos pobres. Eles realizavam ações armadas por vezes roubando táxis e depois devolvendo o taxista com dinheiro para repor o combustível utilizado. Era um movimento com uma moral muito voltada para a luta e o apoio popular. Me chama a atenção, dentro de toda essa série de aventuras, como não deram mais foco à Operação Estrela. Alguns elementos levam a crer que o que as mulheres disseram foi visto de alguma forma como uma travessura, como a façanha de uma criança e não a façanha de um companheiro.
Você conta um episódio sobre a propaganda da Volkswagen na Alemanha citando os Tupamaros. Como era a repercussão dos movimentos uruguaios além das fronteiras?
Isso tem um pouco a ver com o que vinha dizendo. É um movimento que tinha poucos membros em termos relativos, seriam 5 mil ativos no máximo, mas eles tinham uma narrativa tão sólida que conseguiram transcender e chegar ao mundo. Quando se percebe que há um movimento que para fazer um sequestro, por exemplo, rouba o carro de um trabalhador, mas depois o devolve e deixa dinheiro para pagar a gasolina, e ele é legal.
Esse movimento de poucos membros consegue montar um sistema logístico tal que se torna capaz de ocupar uma cidade, tomar uma emissora de rádio da cidade e começar a transmitir mensagens a favor da luta popular. Toda a história dessa tomada de poder é em si um romance policial. Quando escrevi Operação Estrela, o que percebi foi que havia muitos episódios gerados pelo Movimento Tupamaro que eram livros em si, então a construção da história tem muito a ver.
Houve grandes escritores dentro do movimento. O principal deles foi Eleuterio Fernández Huidobro, ministro no governo de Pepe Mujica e um dos fundadores dos Tupamaros. Outro foi Mauricio Rosencof, que inclusive aparece no filme “Uma noite de 12 anos”, sobre o cárcere que viveu. Havia bons escritores no movimento e essa narrativa fez os Tupamaros transcenderem fronteiras.
O livro faz uma longa e completa contextualização do movimento político uruguaio e das personagens da fuga antes de contar sobre a ação de escape em si. Essa era sua ideia desde o início ou a riqueza dos relatos colhidos moldou sua estratégia de contar a história?
A obra foi construída num sistema de círculos concêntricos. Primeiro comecei a tentar contar o que mais me interessava no momento, que era a fuga. Para isso era inevitável entender quem eram as pessoas que lideraram esse plano, quais foram as suas histórias e como era a história coletiva do movimento que se pôs a trabalhar a possibilidade dessa fuga. Para compreender o movimento era inevitável entender o país e para isso era preciso entender também as coordenadas latino-americanas que foram estabelecidas e formadas desde a revolução cubana que deu a toda a América Latina a sensação de que a revolução era algo possível.
Não é que eu inicialmente quisesse explicar a história do Uruguai ou a história do Movimento Tupamaro, mas isso era necessário para entender essa fuga de uma forma mais ampla. O que me interessa porque o Uruguai é um país menor que a Argentina, teve uma ditadura militar menos agressiva que a argentina e, além do mais, essa fuga não aconteceu durante o período ditatorial, mas na democracia.
Eu vi como possibilidade na hora de trabalhar essa fuga foi uma forma de entender a lógica da militância também na Argentina através de um caso como o uruguaio, que é quase um caso de laboratório por ser menor e mais fácil identificar quais agentes participaram daquele período histórico. Quais foram os erros? Quais foram os sucessos? Como foi construída uma mística e como ela foi destruída? Eu tenho 49 anos, meus pais militaram na esquerda na Argentina nos anos 1970 e também me interessou ver, através do caso uruguaio, como estavam as emoções da minha família e do mundo ao meu redor naquele momento.
A história da organização dos Tupamaros e a engenhosidade das detentas ao planejar a fuga se somam à forma dinâmica e descritiva como você conta a história. Como leitor, fico pensando se você teria interesse em adaptar “38 Estrelas” para o cinema. Há alguma iniciativa do tipo?
O livro foi vendido para ser adaptado há alguns anos. No começo ia ser uma série, agora vai ser um filme. Estou começando a escrever o filme com muito entusiasmo e muita vontade de ver como ele evolui porque são processos longos que, em algum momento, se concretizarão e estou interessada em ver quais rostos e que encarnação da história aparecerão quando for filmada.
Como o movimento Tupamaro e outras ações organizadas da esquerda dos anos 1960 e 1970 ainda influenciam a política uruguaia, um país que se mostra mais resistente à onda reacionária que já fez presidentes em países vizinhos como Brasil e Argentina?
Vejamos, é muito difícil para mim dar a minha opinião sobre questões de política internacional porque sou muito cuidadosa com temas em que não sou especialista. Mas o que sinto, como palpite, é que o Uruguai é mais resistente à onda reacionária também porque houve uma figura progressista muito coerente com seu discurso e a forma como vivia. No Uruguai tem muita gente desencantada com Pepe Mujica, que acredita que sua narrativa se esgotou. Mas é um país que nunca poderia associar seus militantes de esquerda a casos de corrupção. Nem estou falando de roubo, estou pensando pelo menos em Cristina Kirchner e nos casos de pessoas que estiveram envolvidas e estão envolvidas em casos muito fortes de corrupção e que têm modos de vida que não condizem com a narrativa nacional e popular que eles têm. No caso do Uruguai, Pepe Mujica mora em uma cabana, que tinha um carro barato e não o fazia como uma encenação. Eu moro na Argentina, onde os sindicalistas vivem como reis, onde há casos escandalosos de corrupção que não condizem com uma pessoa que tem uma história progressista.
Me parece que no Brasil, com Lula, foi muito mais delicado e, em comparação com a Argentina, um caso bem menos escandaloso. Me reservo a possibilidade de duvidar e abraçar um pouco mais a posição dele. Porque eu entendo que Lula não é igual a Kirchner. Mas o que entendo é que do lado uruguaio, a relação que existe com essa esquerda é uma relação atravessada por uma crítica econômica ou de gestão política, mas não é uma essencialmente moral.
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SOBRE a AUTORA
Josefina Licitra nasceu em La Plata em 1975. É jornalista, escritora e roteirista com prêmios de institutos como a Fundação para um Novo Jornalismo Ibero-americano (FNPI, hoje Fundação Gabo). “38 estrelas: a maior fuga de um presídio de mulheres da história” é seu primeiro livro publicado no Brasil, mas a argentina já teve artigos publicados na Revista Piauí.
“38 estrelas: a maior fuga de um presídio de mulheres da história”
• De Josefina Licitra
• Tradução de Elisa Menezes
• Relicário Edições
• 232 páginas
• R$ 65,90