Renan Marinho Sukevicius -  (crédito: Helton Nóbrega/Divulgação)

Renan Marinho Sukevicius

crédito: Helton Nóbrega/Divulgação


Bruno Inácio

Especial para o EM

 

Os processos de amadurecimento de crianças e jovens que se deparam com as violências e as desigualdades do Brasil norteiam os contos de “Quase verão” (Diadorim), livro de estreia do premiado jornalista Renan Marinho Sukevicius. Ao longo de dezesseis histórias, o autor apresenta o momento exato em que personagens vivenciam situações capazes de mudar suas vidas para sempre. Em cena, a brutalidade que existe num atropelamento ou no leito de morte divide espaço com as partidas de futebol na rua e o desejo de conhecer o mar.

 

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As narrativas apresentam olhares que se voltam ao passado recente e percebem as nuances do atual cotidiano brasileiro. Aliás, do cotidiano de parcela da população. Aquela que improvisa piscinas em terrenos de extração de areia, que não pode desperdiçar sequer uma colher de açúcar, que quase nunca viaja e que lida diariamente com a negligência do poder público. Renan Marinho Sukevicius dá voz a personagens que costumam ser ignorados ou silenciados e apresenta um Brasil em que a realidade é tão crua quanto complexa.

 


Para isso, o autor traz uma linguagem que dialoga perfeitamente com os temas abordados. As frases curtas, por vezes ácidas, fazem um interessante paralelo com o pragmatismo de quem não tem tempo a perder. A escolha pela linguagem coloquial e pelos diálogos repletos de gírias também colabora para construir situações que passam bem longe da artificialidade.


Renan Marinho Sukevicius se junta a escritores e escritoras como José Falero (autor de livros como “Vila Sapo” e “Os supridores”) e Lilia Guerra (que publicou “O céu para os bastardos” em 2023), ao propor um olhar abrangente e verossímil a respeito de lugares em que as adversidades são tão presentes quanto o amor e a cumplicidade.


Não por acaso, grandes temas transitam livremente pela obra. Há espaço para abordagens sobre amizade, masculinidades, relações familiares, homofobia e, claro, desigualdade. Os personagens não ignoram os meios em que estão inseridos e lidam, cada um à sua maneira, com as questões sociais que os cercam.

 


A diversidade de vozes, aliás, é tão rica quanto a de temas. Nos contos “Uma história de amor e sede” e “Se você pretende”, os personagens-narradores lidam com a violência e a negligência paterna, enquanto em “Números”, um garoto encontra no teatro um lugar em que pode, enfim, ser ele mesmo.


No conto que dá título ao livro, uma família com pouco dinheiro viaja para Praia Grande e se depara com olhares de reprovação de pessoas esnobes, como aquelas que reclamam aos quatro cantos que “aeroportos estão parecidos com rodoviárias.”


Dentre as situações mais provocativas apresentadas pelo livro está a de “Formato de delta”, conto em que um homem de classe média retorna do Canadá para visitar o avô à beira da morte. Durante o encontro, o protagonista é tomado pela ambivalência de sentimentos. De um lado, as memórias afetivas construídas na infância. De outro, as divergências ideológicas entre um neto progressista e um avô reacionário, que tem no período da ditadura militar brasileira suas melhores lembranças. Cabe na despedida o silêncio sobre tantas atrocidades apoiadas pelo avô? Ou o afeto não é suficiente para que a celebração à carnificina seja ignorada?


Já em “Recados da Terra”, o questionamento sobre a profundidade que uma beterraba pode alcançar enquanto cresce na terra é o que impulsiona os pensamentos de um prisioneiro sobre a própria liberdade. Enquanto cozinha na penitenciária em troca da redução de pena, ele se lembra da mãe e almeja um recomeço – ainda que não acredite tanto nessa possibilidade.

 


Experimentações


“Quase verão”, no entanto, está longe de ser apenas um livro de contos com bons enredos. Ao longo das dezesseis histórias, Renan Marinho Sukevicius faz diversas experimentações estéticas com criatividade e segurança. Sua escrita é concisa, mas nunca econômica. Cada parágrafo contempla situações representativas e subtextos mais que urgentes.


Também há muito do jornalismo na literatura do autor, com frases precisas, olhar sensível ao cotidiano e, por vezes, diversidade em pontos de vista sobre um mesmo tema. “Mamede”, por exemplo, traz diferentes perspectivas sobre um atropelamento, inclusive a da vítima e a do motorista. Mais do que simplesmente intercalar olhares, o autor evidencia os contrastes entre os personagens por meio de alegorias que discutem a ingenuidade e a impunidade.


O já citado “Números” também foge de estruturas padrões e traz uma narrativa construída por meio de uma lista, na qual os números parecem dividir espaço com sonhos e dificuldades de um garoto que acaba de descobrir suas paixões.


Outro aspecto que chama a atenção é a escolha dos trechos de músicas e obras literárias que precedem cada conto. As palavras de Criolo, Gilberto Gil, Itamar Assumpção, Mia Couto, Adélia Prado e tantos outros sintetizam o que está por vir e, por vezes, embarcam nos dramas e anseios dos personagens.


Assim, “Quase verão” é um excelente exemplo da literatura que se propõe a ir além, ao reunir histórias em que acontecimentos específicos transformam, provocam e exigem um amadurecimento praticamente abrupto. As crianças e os jovens – como em contos e romances de João Anzanello Carrascoza – lidam com perdas, revisitam traumas e fazem descobertas em meio a um turbilhão de pensamentos e emoções.


Renan Marinho Sukevicius faz uma impactante estreia na literatura, com uma escrita que foge da obviedade e que mergulha de forma autêntica em campos escorregadios como a família e o trabalho, sem cair nas armadilhas do didatismo. Um livro para pensar o Brasil e revisitar os grandes acontecimentos (os bons e os ruins) que nos trouxeram até aqui.

 

* Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). Escreve sobre literatura no Jornal Rascunho e na São Paulo Review.


SOBRE O AUTOR

 

Renan Marinho Sukevicius nasceu em São Paulo, em 1993. É descendente de indígenas, africanos e europeus. Cresceu no Grajaú, periferia do extremo sul paulistano, e frequentou igrejas evangélicas por mais de 20 anos. É jornalista, com trabalhos no rádio, na televisão e no online na Rádio BandNews FM, TV Bandeirantes, Rádio CBN e Folha de S.Paulo. É também um dos fundadores da Rádio Guarda-Chuva, rede de podcasts jornalísticos. Recebeu alguns dos principais prêmios de jornalismo do país, como Vladimir Herzog, Petrobras, APCA e Folha.

 

Capa do livro "Quase verão"

Capa do livro "Quase verão"

Reprodução

 

“Quase verão”
• De Renan Marinho Sukevicius
• Diadorim
• 280 páginas
• R$ 60Esatdo de minas