"SENHOR DAS MOSCAS"

crédito: divulgação

E se tivéssemos a chance de começar tudo de novo? Será que faríamos algo melhor do que essa mistura de barbárie e tecnologia? “O homem é o lobo do homem”, apontou o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) em sua obra máxima, “Leviatã”, parafraseando o pensamento do dramaturgo romano Titus Plautus (254 a.C-184 a.C), que disse: “O homem que não se conheça tal como é, é lobo para o homem” (“Lupus est homo homini, non homo, quod qualis sit non novit”), em sua peça “Asinaria”, também conhecida como “A comédia dos burros”.

 

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Essa ideia, possivelmente, passou pela cabeça do escritor inglês William Golding (1911-1993), Nobel de Literatura em 1983, ao escrever seu livro mais conhecido, o clássico “Senhor das moscas” (“Lord of the flies”), publicado há 70 anos, que pode ter sido inspirado na obra “A utopia”, do inglês Thomas Morus (1478-1535). A obra acaba de ganhar bela adaptação em quadrinhos (“Lord of flies: the graphic novel”), já disponível em português, pela quadrinista holandesa Aimée de Jongh, de 36 anos (Suma/Companhia das Letras).


Aparentemente, uma obra chamada “Senhor das moscas” e protagonizada por um bando de meninos numa ilha não passa de uma aventura infantil sem maiores consequências. Assim lhe parece nas primeiras páginas. Ledo engano. No início dos anos 1950, o mundo havia acabado de emergir dos horrores da Segunda Guerra, da qual Golding participou como integrante da Marinha britânica. Depois de muitas ações militares, ele afirmou: “Qualquer pessoa que tenha passado por esses acontecimentos terríveis sem entender que o homem produz o mal como a abelha produz o mel estava cega ou louca”.

 


Foi com esse espírito que ele escreveu “Senhor das moscas”. O livro começa com a queda de um avião numa ilha perdida durante a Segunda Guerra. Todos os adultos morrem, apenas um grupo de meninos sobrevive. Logo Golding já vai criando analogias e metáforas sobre o início da humanidade numa ilha paradisíaca, sobre a natureza do mal e a linha tênue entre civilização e barbárie. Mas, aqui, o mal não está em uma serpente, nem em uma maçã, ele está dentro de cada um.


Isolados na ilha, os meninos precisam sobreviver, acreditam que todos os adultos do mundo morreram na guerra.


“Você não ouviu o que o piloto disse? Sobre a bomba atômica? Estão todos mortos”, diz Porquinho, um dos protagonistas, a Ralph, que passa a chefiar o grupo. Inicialmente, brincam, nadam, comem frutas à espera do resgate que não aparece. O paraíso começa a se transformar em pesadelo quando a fome aperta e eles resolvem escolher um líder, decisão canalizada para o carismático Ralph.

 


Mas ele logo passa a ser confrontado por Jack, que forma seu grupo de caçadores para capturar porcos selvagens, abundantes naquela ilha.
Ralph é a lucidez, o bom senso, preocupa-se em manter sempre uma fogueira acesa no ponto mais alto para que a fumaça atraia ajuda. Jack é o arrebatamento, pensa apenas em caçar e se divertir. O conflito é inevitável.


“(Ralph) virou-se para os meninos reunidos.


'Vocês todos não querem ser resgatados?'


Voltou a olhar para Jack.


'Eu já disse antes, o mais importante é a fogueira. A esta altura deve estar apagada'.


A velha exasperação veio em seu socorro e lhe deu a energia para atacar.


'Será que ninguém mais aqui tem juízo? A gente precisa reacender a fogueira. Isso não passou pela sua cabeça, não é, Jack? Ou será que vocês não querem mesmo ser salvos?’.”


E é na caça que a natureza do mal se materializa. Após a caçada, uma cabeça de porco é colocada por Jack numa vara e fincada no chão como oferenda ao “bicho”, que alguns garotos dizer ter visto à espreita na ilha. Assombrado pelo medo, Simon começa a conversar com a cabeça em putrefação entre vísceras espalhadas, tudo envolto pelo enxame de moscas, envolto por moscas verdes. “Você sabe, não é? Que eu sou parte de você”, diz a monstruosa e fétida cabeça de porco.

 


A partir daí, a disputa entre os dois líderes, provocada por essa representação maligna em meio à competição pelo poder, transforma o paraíso numa barbárie tribal, que vai culminar em violência e mortes. O princípio harmônico e igualitário descamba para o autoritarismo, a lei do mais forte. Era o fim da inocência pueril.


CRÍTICA


Não se trata de querer, aos olhos de hoje, que um romance de ficção seja politicamente correto, muito menos considerando-se que foi escrito ainda no rastro quente da Segunda Guerra. A arte e a criação são livres. “Senhor das moscas”, entretanto, sugere reflexões que, inclusive, o tornam datado.


Por que a simulação de um paraíso terrestre incipiente tem apenas meninos? Será que, no pensamento de Golding, o poder de decisão da humanidade era prioridade dos homens? É sabido que, de maneira geral, a guerra é feita por homens, mas soa estranho uma alegoria paradisíaca excluir mulheres. Não poderia haver meninas no avião que caiu?


Além disso, aqueles garotos ingleses são todos branquinhos, louros e ruivos, embora os afro-britânicos remontem aos romanos antigos. Dessa forma, a obra, sob olhar mais atento, pode ter uma conotação racista.


Outra constatação, em tempos de revisionismo do colonialismo europeu, hoje tratado como invasão e não como descoberta, como no caso do Brasil, é o contraste criado por Golding entre o mundo europeu e o resto “selvagem”. Quando os garotos entram em confronto, a turma de Jack pinta o rosto e o corpo, com grito tribal: “Mata o bicho, corta a goela, corre o sangue”.


E há de ser notado que o personagem Porquinho representa um velho clichê, que ainda hoje perdura na cultura ocidental: é gordinho e usa óculos – que são usados para acender as fogueiras sob reflexo do Sol. Como “compensação”, é apresentado como o mais inteligente do grupo perdido na ilha.


Seja como for, “Senhor das moscas” é um livro essencial para muitas reflexões, que passam pela metáfora do fim da inocência primordial e pelas “trevas do coração humano” no seu desfecho e também, tristemente, pela natureza do mal inerente ao Homo sapiens.


“SENHOR DAS MOSCAS”
• De William Golding
• Alfaguara
• 216 páginas
• R$ 69,90 (físico)
• R$ 20,93 (digital)


“SENHOR DAS MOSCAS EM QUADRINHOS”
• De William Golding e Aimée de Jongh
• Companhia das Letras
• 352 páginas
• R$ 109,90 (físico)
• R$ 44,90 (digital)