Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade parece um conto de terror? A pergunta provocativa da abertura do conto “Neon”, de Carola Saavedra, condensa o desafio das autoras brasileiras selecionadas por Fabiane Secches e Socorro Acioli para a antologia “O dia escuro” (Companhia das Letras). Cada uma das 19 escritoras buscou uma resposta em seu universo particular, com resultados que refletem as diferentes abordagens da inquietude. Em boa parte das histórias, o medo vem da origem. Nascem de traumas e situações extremas vividos na infância, do convívio com a violência, de monstros demasiadamente humanos. São pesadelos brasileiros.
Além das autoras contemporâneas, “O dia escuro” inclui o conto “O dedo”, de Lygia Fagundes Telles (1918-2022). Segundo uma das organizadoras, a mineira Fabiane Secches, a ideia foi homenagear “essa autora que ilumina tantos caminhos, alguém que escreveu diversos textos que flertam com o sombrio, o insólito, o estranhamento, o inquietante”. A história, perturbadora desde a primeira sentença, serve como abre-alas para um desfile de narrativas tensas, memórias traiçoeiras, acertos de contas entre o passado e o presente, vítimas e algozes, realidade e imaginação.
Nos contos, o maior impacto pode estar reservado à última frase, como o grito da narradora de “Chorona”, de Natércia Pontes. Ou ser disparado logo na abertura: “Quando fiz dez anos o demônio me visitou na noite de Natal” (“Cão dos infernos”, de Laís Romero). Em “O reino lá de fora”, Micheliny Verunschk inverte expectativas e cria uma das histórias mais aterradoras da coletânea, rivalizando com a crueldade infantil de “Pintinho verde”, de Jarid Arraes, talvez a leitura mais desafiadora do livro.
Há ainda outros pontos altos, como as consequências de uma difícil relação entre mãe e filha explorada de forma surpreendente pela mineira Marcela Dantés em “Gilda”, a Macabéa de Clarice repaginada com mordacidade por Socorro Acioli em “São Paulo é como um mundo todo”, ou ainda a fantástica “Melhor nada saber”, de Maria Valéria Rezende, com uma jovem estudante atormentada por um segredo de sua existência revelado somente no encontro da luz do sol com a água do mar.
Justiçamento social, estupro, troca de bebês na maternidade... temores de mulheres brasileiras movem outras histórias de alta voltagem que se passam “no tempo da impermanência”, para citar outro belo conto, o cinematográfico “Coração da aurora”, de Ana Rüsche. Caberá ao leitor, após as leituras de sucessivos pesadelos, identificar o medo que mais o assombra. Leia, a seguir, a entrevista de Fabiane Secches ao Estado de Minas:
“O que as mulheres contemporâneas pensam quando pensam em terror?” é a indagação na abertura do livro. Diante do conjunto de contos, qual seria uma possível resposta para a pergunta?
Acredito que não exista uma única resposta, ainda que saibamos que os terrores aos quais as mulheres são submetidas no mundo em que vivemos têm algo em comum. Na antologia, temos contos que partem de premissas distintas, que não limitamos aos preceitos de gênero (quer seja o literário, quer seja o social). Gosto da reunião dessas vinte autoras e do conjunto tão rico que temos nessa coletânea heterogênea.
Por que a escolha de um conto de Lygia Fagundes Telles para abrir a coletânea? Como a literatura de Lygia flerta com o inquietante?
Escolhemos o conto de Lygia Fagundes Telles como ponto de partida porque ela é uma grande escritora brasileira, uma referência e uma inspiração para todas as mulheres — e, de modo geral, para todas as pessoas — que escrevem hoje no país, quer seja direta ou indiretamente, de forma consciente ou inconsciente. Queríamos homenageá-la como essa autora que ilumina tantos caminhos, alguém que escreveu diversos textos que flertam com o sombrio, o insólito, o estranhamento, o inquietante. Esse é o caso do ótimo “O dedo”, conto que abre a nossa antologia. Tivemos a honra de contar com a leitura e com o apoio de Lucia Telles, neta de Lygia, que acompanhou o processo e esteve presente no lançamento.
Alguns contos partem de traumas vividos na infância pelas narradoras que enfrentaram situações de violência, em especial contra as mulheres. Outros citam pesadelos. Acredita que as histórias se equilibram entre os medos de situações reais e outros irreais?
Como psicanalista, vejo um entrecruzamento entre o que é social e o que é psíquico, entre cultura e formação subjetiva. Os medos de situações concretas ou imaginárias têm alguma ligação: já foi dito que a fantasia não é o oposto da realidade, mas sim uma forma de vivenciá-la, de se relacionar com ela.
Acredita que a seleção de autoras representa a diversidade da produção literária contemporânea brasileira?
O mais difícil foi escolher apenas vinte nomes, entre tantos talentos que felizmente têm ganhado espaço no mercado editorial (não sem esforço). Mas tivemos que fazer um recorte e acredito que sim, ele representa a diversidade que buscamos, embora não tentemos resumi-la a esse trabalho. Há diversas autoras interessantes que não estão no livro e que admiramos e respeitamos muito.
O horror tem sido um dos elementos de destaque da literatura latino-americana de autoras como a argentina Mariana Enríquez e a equatoriana Mônica Ojeda. Consegue estabelecer pontos de conexão entre as histórias brasileiras e as produzidas por outras escritoras latinas?
Acredito que sim. Cada país tem sua própria história e suas particularidades, mas o gênero sempre foi forte por aqui e atualmente há autoras fazendo trabalhos que merecem destaque, como os nomes que você mencionou. O Brasil, como país que está na América latina, também faz parte, à sua maneira, dessa história, dessa tradição e do movimento atual.
“O dia escuro – contos inquietantes de autoras brasileiras”
• Organização de Fabiane Secches e Socorro Acioli
• Companhia das Letras
• 228 páginas
• R$ 79,90
Trechos
“A troca”
de Fabiane Guimarães
“Sei de mulheres que vivem aterrorizadas com a possibilidade de que seus filhos sejam trocados na maternidade. Imagine parir um bebê sem rosto fixo, com marcas de sangue seco, e levar para casa outro, um estranho. Imagine dar banho no bebê extraviado, entregar-lhe o peito, amá-lo a ponto de reconhecer como seu. Acho que o terror é inspirado pelo perigo da ligação. Elas temem descobrir a troca e então ser obrigadas a desfazer o amor. De qualquer forma, comigo aconteceu a coisa oposta. Aos três anos de idade, trocaram a minha mãe.”
*
“Melhor nada saber”
de Maria Valéria Rezende
“É a ‘hora morta’, aquela em que tudo para antes de despertarem os passarinhos... só o vulto, agora fantasmagórico, agita-se, corre dali, corre ofegante escadas abaixo, batendo-se nas paredes, lança-se pela rua escura até as areias da praia e segue pela beira d’água, os pés banhados pela ondinha que ali morrem. Aquela que pensava, desejava...sonhava?...ser uma menina como as outras, Maria Flor, agora sabe e não sabe quem é, como se sempre tivesse sabido, ou sempre tivesse duvidado, sempre tivesse tido essa dor funda e absoluta, sempre soubesse tudo e nada sobre si mesma, sempre fosse ela e outra, desconhecida, sem passado, presente nem futuro, só escuridão.”
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“Aonde tem vento eu vou”
de Truduá Odorico
“Como se me descolasse do corpo e subisse em direção ao céu. Sem controle dos movimentos, em total estado de inércia, consigo ver com o terceiro olho a distância crescente que me separa da cama. Fito o corpo, imóvel, dormindo ou morrendo. De alguma forma a levitação desafia a gravidade, atravessa o teto, a exosfera e me lança em levitação para o mundo de cima. Eu vejo o espaço escuro e luminoso, pedras, minúsculas, médias e gigantes, gravitarem no silêncio surdo. Então morrer é assim? Há um silêncio em mim, mas há ruídos também. Alguém me chama, minha neta vem cá, a voz vem de algum lugar e nenhuma direção. Então, meu fim é ficar vagando sozinha no tempo escuro?”
A inquietação em primeira pessoa
Depoimentos de algumas das autoras da coletânea “O dia escuro”
Como nasceu a sua história?
Cidinha da Silva
Minha história foi criada a partir de duas perplexidades, a primeira, o assassinato do indígena Galdino Pataxó, em Brasília (1997), queimado vivo por playboys brancos da cidade que acharam divertido atear fogo em um homem que dormia no ponto de ônibus. A segunda, a de um garoto negro com deficiência mental, amarrado nu em poste, num subúrbio do Rio de Janeiro (à volta de 2010), acusado de ter roubado uma bicicleta. Duas situações aterrorizantes, às quais pessoas negras e indígenas estão expostas todo o tempo. A partir desse mote desenvolvi o conto que buscou abarcar ainda outros aspectos do racismo e também alguma nuance positiva no enfrentamento da situação (fuga intencional do terror clássico) que pode nos humanizar de alguma forma.
Dia Nobre
Além de ter crescido em uma cidade que respira religião, fui criada por minha avó materna, uma mulher muito religiosa que me levava para as missas matutinas na Igreja dos Franciscanos. O impacto dessa educação religiosa foi tão forte que teve influência no meu trabalho como historiadora e permanece me instigando enquanto escritora de ficção.
Madalena, minha personagem, apareceu para mim como uma criança que vive uma experiência terrível e é incapaz de processar esse trauma e transformá-lo em linguagem. Assim, ela acaba criando um mundo próprio, onde pode dar sentido e elaborar o que viveu. Ela encontra na religião esse lugar de conforto, mesmo que isso a leve a fazer coisas que podem ser consideradas horríveis. A peculiaridade dessa personagem vem justamente do fato de que ela não enxerga o que está fazendo como algo ruim, mas apenas como uma expressão da sua devoção.
Eliana Alves Cruz
A história nasceu da pesquisa de um dos meus romances – “Nada digo de ti, que em ti não veja” - que trata sobre escravidão nas minas de Minas Gerais. Um filme de terror foi se desenhando a minha frente a cada avanço nesta investigação. Até que topei com o depoimento de uns viajantes sobre vozes em uma mina abandonada onde os moradores locais diziam que no interior os escravizados que foram supliciados lá dentro voltavam para se vingar dos algozes. Terror puro...
Marcela Dantés
Gilda nasceu de um desejo de representar o inquietante e o assustador em um espaço supostamente seguro, as relações familiares. É um conto que desromantiza o vínculo entre mãe e filha, flerta com o sofrimento mental e traz o assombro a partir de um lugar real, possível – exatamente os temas que perpassam a minha obra e me obcecam há algum tempo. Em alguma medida, Gilda vem de uma vontade de ir cada vez mais fundo naquilo que me assombra e tira o meu sono.
Micheliny Verunschk
O conto“O reino lá de fora”tem um “nascimento” mais antigo do que o convite para participar da antologia. Isso no sentido conceitual. Há nele uma Micheliny que ainda muito criança se fascinou por um universo mais sombrio, tanto pela leitura que a minha mãe fazia de um poema do romântico Casimiro de Abreu,“Na tumba dum menino”, tanto pela leitura de quadrinhos de terror e dos contos de Edgar Allan Poe, ainda na adolescência. Quando fui convidada, fiquei muito feliz, porque meu romance mais recente,“Caminhando com os mortos”, de certo modo flerta com a inquietação que envolve“O dia escuro”e porque eu sempre quis escrever algo do tipo. Para a feitura do conto, fui agregando elementos fabulatórios a episódios vividos. Por exemplo, vivi em uma chácara onde coisas muito estranhas aconteciam. E mais não digo...
Jarid Arraes
Quando eu era criança, tinha o sonho de ganhar um daqueles pintinhos coloridos que eram vendidos do centro da minha cidade, no sertão do Ceará. Para criar minha personagem, parti desse lugar: o desejo de ter um pintinho colorido, ficar decepcionada porque o bichinho não fazia nada de especial e restar uma curiosidade que se distorce. Criei uma menina predadora, uma menina que assusta as pessoas e que leva sua necessidade de conhecer as entranhas do mundo ao extremo. Ela vira uma mulher bizarra, esquisita, com preferências que causam desconforto. Ou horror. Escrevendo a história, queria que uma mulher tomasse a violência com suas próprias mãos. E que ela fizesse de outras mulheres os seus pintinhos verdes.
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De onde vem o medo no Brasil?
Ana Rüsche
O medo está presente em qualquer caminhar na rua para muitas mulheres e pessoas de outras minorias. Inclusive, está presente onde deveria ser o lugar mais seguro de todos, nossa própria casa. Em meu conto para a antologia, "Coração da aurora", procurei explorar um fato duro: segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o lugar mais inseguro para as mulheres é dentro da própria casa e mais de 75% das agressões são cometidas por conhecidos da vítima (2019). Assim, não nos espanta que a sensação de insegurança esteja tão presente em nossas vidas. O medo vem de muitos lugares, inclusive, do lugar mais conhecido.
Natércia Pontes
O medo no Brasil vem de um porão escuro, respingado de sangue e dor. Vem de uma ditadura anistiada sem punição aos militares criminosos e torturadores. Vem do “macho adulto branco sempre no comando” que se insinua há centenas de anos como uma jiboia entre as relações de trabalho, sociais, familiares. Vem do preconceito, da burrice, da intolerância e do fundamentalismo religioso. Vem do racismo. Vem da teologia da prosperidade atrelada ao neoliberalismo atroz. Vem do medo de encarar seus próprios desejos sexuais reprimidos. Vem da ganância desumana contra a natureza e as comunidades indígenas e quilombolas. Vem do medo do novo, da luz e da arte. Vem do medo da possibilidade de um país melhor para todos. O medo do Brasil vem do próprio medo.
Mariana Salomão Carrara
O medo no Brasil chega por todos os lados e não vem igual para todos. O maior medo do medo é ser real, é fazer sentido, e o medo faz muito sentido no Brasil da viela, do confronto, o medo brasileiro faz sentido na Justiça, e nas mulheres no ponto de ônibus e nas meninas em casa. Nos abalos às instituições: o índice de medo-país subiu. E vem também o medo climático, incendiário, o medo do veneno, da composição das bancadas que não têm medo do clima e não têm nenhum dos medos corretos. No Brasil o medo vem também da falta de medo dos outros, e do deus que eles vão escolher para nos governar.
Fabiane Guimarães
Do passado, dos nossos traumas. O país foi forjado sob a violência, e é justamente o somatório de todas essas violências o que mais nos assombra hoje. Vivemos a repercussão de muitos massacres cotidianos.
Laís Romero
Penso que o medo brasileiro vem de dentro, atravessa gerações, vem do gênero, do silêncio e muitas vezes se concretiza em momentos que podem destruir a nossa fé. Enquanto mulheres acabamos enfrentando situações tristes, de aniquilação e invisibilidade, especialmente quando o medo suplanta as nossas vivências mais simples. Sentir medo é um caminho que acredito essencial para a coragem.