“Quem vai te ouvir gritar: uma antologia de horror negro”, editada por Jordan Peele e John Joseph Adams e publicada no Brasil pela Suma, selo de literatura fantástica da Companhia das Letras, mostra o quanto o fantástico tem o potencial de construir poderosas imagens sobre importantes debates políticos atuais. Em meio a invasões alienígenas, jovens mortas-vivas, demônios se erguendo do chão e urubus assassinos, os 19 contos da antologia mobilizam uma série de interessantes debates sobre racismo, gênero, diáspora e desigualdade social.
Traduzida por profissionais experientes e qualificados – Carolina Candido, Gabriela Araújo, Jim Anotsu e Thaís Brito –, “Quem vai te ouvir gritar” chega até o Brasil, além do mais, chancelada pelo nome de um dos seus editores, o já citado Jordan Peele, cineasta negro estadunidense cujos excelentes filmes “Corra!”, “Nós” e “Não! Não olhe!” o posicionaram como referência incontornável do horror contemporâneo no cinema. Entre os nomes, todos de autorias negras, que fazem parte da antologia, há uma maior quantidade de desconhecidos para o público brasileiro. As prováveis exceções são os nomes de N.K. Jemisin, P. Djèlí Clark e Nnedi Okorafor. Não só o trio teve suas obras publicadas em nosso país em tempos recentes, como é também o mais conhecido de modo geral tanto aqui, quanto nos Estados Unidos.
É preciso, antes de iniciar a leitura, modular duas expectativas. Primeiro, há altos e baixos entre os 19 contos. É muito difícil, com tantas vozes diferentes e tantas abordagens estéticas, atingir um nível de qualidade homogêneo. Há alguns contos ótimos, uma parte deles bons e outra parcela marcada por bastante irregularidade. Por outro lado, dentro de toda antologia existe uma segunda antologia, esta sem dúvidas íntima: cada leitor, cada leitora, ao ler os 19 contos, elegerá seus contos favoritos e, portanto, construirá em suas impressões de leitura a sua versão “definitiva” de “Quem vai te ouvir gritar”.
A segunda expectativa a ser repensada diz respeito ao horror. O debate conceitual sobre o horror não é o objetivo da minha resenha. Além disso, o horror tem matizes e nuances complexas demais para que possamos definir, de maneira muito estrita, aquilo que é ou não pertencente ao gênero. No entanto, vários contos da antologia podem ser lidos de maneira mais proveitosa se o leitor buscar menos a típica experiência do horror neles, e bem mais uma prevalência, em várias das 19 histórias, de características oriundas de outros gêneros do fantástico, tais como a ficção científica, a fantasia e o realismo mágico.
O horror se interessa pelos subterrâneos. É essencial para a existência do horror que suas histórias nos reconectem com os nossos traumas e desejos mais obscuros. Por isso, todo horror é visceral: ele propõe uma conexão disruptiva com as sombras da psiquê humana. É preciso levar em conta, porém, que o horror nunca é só pessoal. Daí, aliás, o gênero retira sua força política. O mecanismo do horror nunca atua somente num plano individual. Pelo contrário, ele procura elaborar a dimensão coletiva, social, das nossas ansiedades e temores.
“Quem vai te ouvir gritar” acrescenta uma camada a mais nesta dinâmica. Porque os seus contos, além de lidarem com os recalques do nosso inconsciente, além de darem conta das nossas ansiedades coletivas, precisam tensionar os processos de silenciamento que, ao longo de tanto tempo, pesaram sobre as vozes criativas de tantos homens e mulheres negros. Logo, uma antologia como essa, ao ser debatida, precisa ser pensada em um frágil equilíbrio entre a avaliação de seus méritos e a celebração da relevância política de sua mera existência.
Quantas antologias de contos de horror tivemos entre nós nas quais todos os seus autores são negros? Nas quais todos os seus personagens são homens e mulheres negros? A identidade racial, no debate específico sobre este livro, é fundamental. O mero deslocamento de autoria e personagens acrescenta um tom novo e um sabor diferente às narrativas fantásticas, sejam de horror, ou não, presentes em “Quem vai te ouvir gritar”.
O racismo é o tema fundante desta antologia. Contos como “Olho imprudente”, de N.K. Jemisin, ou o “Problema de Norwood”, de Maurice Broaddus, abordam de forma direta o debate sobre os traumas raciais na formação dos Estados Unidos. Outros contos, contudo, simplesmente deixam suas personagens viverem suas vidas cotidianas e seu embate com o Mal, sem que o racismo seja um tema principal. O debate racial, porém, continua nestes contos, porque seus protagonistas estão inseridos em uma sociedade cuja organização social foi moldada pelo racismo. Portanto, neste caso será nas entrelinhas que sentiremos, com notas sonoras ora sutis, ora mais audíveis, a reflexão ficcional antirracista. Assim, o trauma geracional de sucessivas histórias de abandono contido em um conto como “Diabo errante”, de Cadwell Turnbull, não pode deixar de ser lido por um viés racializado e pelo debate da construção das masculinidades do homem negro americano.
Além da raça, historicidade é outro tema central para “Quem vai te ouvir gritar”. Alguns contos são ambientados em momentos relevantes da história da luta antirracista e dos direitos humanos americanos, como é o caso de “O viajante”, de Tananarive Due. Outros se conectam ao debate histórico pelo viés da ancestralidade, evocando imaginários, religiosidades e rituais fraturados seja pela diáspora africana, seja por processos migratórios mais recentes e não vinculados à empreitada capitalista e colonial da escravidão. Alguns dos melhores contos seguem esta via, como é o caso do ótimo “Casa escura”, de Nnedi Okorafor, por exemplo.
Gosto demais que os homens e mulheres de algumas destas histórias pratiquem atos humanamente terríveis, o que nos põe a pensar quem são os verdadeiros monstros destas histórias, ou onde os monstros realmente habitam. O protagonista do conto “O luto dos mortos”, de Rion Amilcar Scott, simplesmente planeja um massacre em massa, enquanto lida com sonhos proféticos e o zumbi do seu irmão. Já as protagonistas do conto “Um pássaro canta próximo à árvore entalhada”, de Nicole D. Sconiers, são jovens mortas-vivas que competem entre si para saber quantos homens conseguem assassinar na rodovia que assombram. Entre o pesadelo e a assombração, somos apresentados à psiquê fraturada da protagonista do conto “A outra”, de Violet Allen, cujos delírios – ou será que a “Outra” é na verdade um monstro? – nos conduzem a um crescendo de violência e horror corporal. Tanto o conto de Allen quanto o de Sconiers são os meus favoritos no livro todo.
“Quem vai te ouvir gritar” fortalece uma importante mensagem do horror: apesar de sermos tão diferentes uns dos outros, é nos medos que nós reencontramos nossa humanidade compartilhada. Há, contudo, terrores vividos com mais frequência por determinadas populações, do que por outras; há traumas históricos específicos de determinadas identidades cujas dores precisam ser narradas – e é nesse sentido que o horror escrito por autores e autoras negros tem muito a nos dizer e muito a nos atormentar.
CRISTHIANO AGUIAR é professor universitário e escritor, autor de livros como “Gótico nordestino” (Alfaguara) e ministra o curso “Literatura brasileira moderna e contemporânea: um guia de leitura”
Trechos
“Casa escura”,
Nnedi Okorafor
“Eu estava à deriva, nas profundezas do cosmos. Estrelas distantes ao meu redor brilhavam com uma luz fria e morta. Muito frio. Enquanto eu flutuava na escuridão, sabia que estava morrendo. Meus batimentos diminuíam. Desaceleravam. Eu escorregava, me dissolvia. Não conseguia me lembrar do calor da Terra. Um gemido escapou do fundo do meu peito. A vibração quebrou o gelo que se formou ao meu redor. Eu me mexi, gemendo de novo. Mais alto. Meu corpo parecia estar em câmera lenta; não consegui me levantar. Abri os olhos, tremendo. Estava congelando.”
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“Uma fábula americana”, Chesya Burke
“Depois de uma breve parada em Charleston, o vagão negro do trem ficou cheio: dezenas de pessoas pretas se amontoaram ali dentro, dois familiares para cada assento, mães segurando crianças grandes demais para ficarem no colo. Ainda assim, a maior parte dos passageiros o cumprimentou, acenou com a cabeça demonstrando admiração por ele, sabendo o sacrifício que tinha feito só para conseguir o respeito de um país que nunca o concederia. Ao lutar na Grande Guerra, Noble e outros homens e mulheres pretos tinham lutado pelo amor em um mundo que os odiava.”
“Quem vai te ouvir gritar: uma antologia de horror negro”
• Organização de Jordan Peele e John Joseph Adams
• Tradução de Carolina Cândido, Gabriela Araújo, Jim Anotsu e Thaís Britto
• Suma/Companhia das Letras
• 328 páginas
• R$ 84,90