Capa do livro

Capa do livro "Mais pesado que o ar"

crédito: reprodução


Guiomar de Grammont

“Ouro Preto”

As montanhas me acolhem
em suas almofadas azuis.
Mergulho fundo e me perco.
Sufocada por travesseiros sem rosto,
não posso respirar.

As pedras magoam meus pés descalços.
Tantos passos apagaram as marcas.
As pedras lisas, espelhos
refletem minha ruína.

Meus avós enterrados neste monte,
nossa morada,
o cemitério da Igreja das Dores.

Sou essa terra de ossos.
Trago o sangue seco nos olhos.
0Nada me falta, nada tenho,
minhas raízes perfuram como facas
a carne das montanhas.

Meu corpo já não chora, já não sofre.
Meus gritos ecoam nos muros de pedra.
Ri de mim, a noite dos tempos.
Nesta casa crepitava um fogão à lenha.
As crianças brincavam de casinha neste leito.
O avô comprava laranjas, provava diante do amigo tropeiro.
Dava aos netos e vizinhos.

O avô se foi.
Vejo o tropeiro passar chorando.
Nunca mais o fio dourado
dessa laranja de ouro.

Meu destino é o eterno retorno,
uma viagem ao ponto de partida.

Nada muda.
O mundo é o mesmo, os homens, os mesmos.
A história é uma falácia.

O ouro que cobre esses telhados
foi arrancado do meu peito.
Toco um instrumento que ninguém vê.
Meu jazz ecoa no assoalho destas casas.
Vejo fantasmas na fímbria das portas.
Serei um deles? Morri e talvez não saiba.
Meus passos não deixam pegadas.
Os espelhos não refletem a minha luz.
Minha voz reverbera no silêncio,
só eu a escuto.
Os séculos me atravessam como um vento frio,
já não podem tocar-me.
Meu corpo é poeira de prata,
matéria estelar
na solidão do universo.
Sou uma voz no umbral do silêncio.
Deito-me sobre a lápide e, nela,
vejo meu nome.
Minha saga é descrita em dois vocábulos
(Aqui Jaz.)

As tochas se acendem na escuridão da noite.
Assisto à busca desses homens,
Tenho piedade de sua ilusão.
Mas a flor também pulsa em meu peito.

Os soldados batem as lanças nas pedras,
o Cristo morto é levado.
Comi a carne desse Cristo e bebi seu sangue
e não encontrei consolo.
Nada pareceu romper o nada.
Tenho as palmas marcadas por sulcos profundos.
As janelas têm olhos; as paredes, ouvidos.
O juízo do povo é implacável.
A mãe chora o filho condenado.
Tiraram as crianças da moça perdida,
ela se tornou a louca das ruas.
“L’innocent de la ville”, diz o amigo.
Em busca eterna…
Meu coração também não tem repouso,
me aflige a dor desses infelizes.

Roubaram de novo o radinho,
alegria do homem-menino
que não fala, apenas sorri e balbucia afagos.
E o moço que varre as ruas eternamente,
como a varrer as mazelas dos homens.
A mulher doida escreve cartas de amor e
as deposita na soleira das portas.
Na praça, o personagem de Bosch
faz discursos sem nexo.
Os estudantes aplaudem.

O sentido habita o coração
dos inocentes da cidade.
A dor os lançou na névoa
e meu coração palpita com o deles.
A neblina nos nichos das montanhas.
Feixes de luz produzem espectros.
A manhã se anuncia
no arrulho das pombas,
na balbúrdia das crianças
a caminho da escola.
Pastas nas costas, olhar desarmado.
Os sinos marcam o tempo
com seu movimento de pêndulo:
“A vida é breve”, “A vida é breve”,
escuto na pele.

Os sinos contam histórias
de nascimentos e festas,
de mortes e exéquias.
A avó lê, com olhar perdido,
a voz dos sinos,
e traduz, como um oráculo:
“Uma mulher está morrendo.”

Artistas sem arte se multiplicam.
Sempre há quem compre.
A aura da cidade é de todos:
turistas, estudantes,
comerciantes, mendigos…
A cidade vive
e é de todos.
Caleidoscópio infinito.
Cada um enxerga
sua face nesse espelho.

Frutas na paleta das feiras.
As senhoras vão à missa de braços cruzados.
Fazem amor com os maridos de luzes apagadas.
O estudante dobra a esquina e vê
o assaltante de arma em punho.
Reconhecem um ao outro, companheiros de bar:
“Vai embora, meu irmão, vai embora…”

A mediocridade dos homens
e a grandeza
dos monumentos,
Ouro Preto do meu ódio e do meu amor,
Ouro Preto sou eu.
O poeta só tem um poema.
Só um poema, por toda a vida,
meu poema é Ouro Preto.

Mas como dói!

 

 

“Mais pesado que o ar”
• De Guiomar de Grammont
• Tinta Negra
• 72 páginas
• R$ 48,90

 

O diálogo da cineasta Ana Costa com o avô que não conheceu

 

Lançamento neste sábado (9/11), às 11h, na Livraria Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi, BH), com mediação de Emilio Maciel.

 


Sobre a autora e o livro

Autora de “Mais pesado que o ar”, Guiomar de Grammont é curadora e coordenadora, desde 2005, do Fórum das Letras de Ouro Preto. Ex-diretora do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), onde atua como professora titular. Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), Sua carreira inclui ainda passagens pela Editora Record, onde foi editora executiva entre 2012 e 2013, e pela curadoria da Homenagem ao Brasil no Salão do Livro de Paris em 2015.

 

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Na apresentação do segundo livro de poemas da autora, José Castello destaca: “A poesia fluida de Guiomar de Grammont, com suas bifurcações e desvios fatais, leva seu leitor a peregrinar pelo mundo. Não só pelas muitas cidades que a poeta visita, mas, mais ainda, pelos sonhos e memória que ela, em cada uma das paragens, vasculha e prende.”