Entre as temáticas, o longo e fraturado poema aborda a ilha grega de Lesbos -  (crédito: Sameer Al-DOUMY / AFP)

Entre as temáticas, o longo e fraturado poema aborda a ilha grega de Lesbos

crédito: Sameer Al-DOUMY / AFP

 

Rafael Fava Belúzio

Especial para o EM

 

Na próxima terça-feira, dia 19, acontecerá a cerimônia de premiação do Jabuti de 2024. Há escritores mineiros disputando a condecoração, a exemplo de Ailton Krenak e Conceição Evaristo, ambos na categoria livro brasileiro publicado no exterior, e Jacques Fux, na categoria romance. No campo da poesia, a representante de Minas Gerais é Ana Martins Marques, com sua obra “De uma a outra ilha”.

 

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O livro foi publicado em julho de 2023, como plaquete, na coleção Círculo de Poemas. Organizada pelas editoras Luna Parque e Fósforo, o projeto dessa dupla é bastante relevante, trazendo a público poetas significativos. No caso particular do lançamento de Ana Martins Marques, o volume possui aproximadamente 40 páginas e apresenta um poema único, extenso e formado por fragmentos. Conta ainda com posfácio assinado por Guilherme Gontijo Flores.

 

 

Graduada em Letras pela UFMG, com doutorado em Literatura Comparada na mesma instituição, Ana Martins Marques traça um intenso percurso de publicações. Estreou em 2009, com “A vida submarina”, o qual foi seguido por “Da arte das armadilhas” (2011), “O livro das semelhanças” (2015), “O livro dos jardins” (2019), “Risque esta palavra” (2021) e o recente “De uma a outra ilha”. Entre esses tomos individuais, há também “Duas janelas” (2016), com Marcos Siscar; “como se fosse a casa” (2017), com Eduardo Jorge; e “Visita” (2021), com Lívia Arnault e Simone Andrade Neves.

 

Assim, Ana Martins Marques vem construindo uma voz singular na poesia brasileira, com especial atenção para o lirismo, a metalinguagem, os temas marinhos, a casa, o cotidiano, além de trabalhar o ritmo dos poemas com uma linha de arrebentação que tensiona possibilidades sobretudo visuais e conceituais a partir de quebras e cavalgamentos das linhas. No volume de 2023, chega a dizer sobre a fronteira do verso, esse mar movente, subindo e descendo:


“Quando a fronteira é o mar
movente
verde violento
subindo e descendo
com a maré
quando uma árvore não pode crescer
sobre a fronteira
quando não só a nuvem não só o pássaro
também o peixe pode atravessá-la
e uma jovem com os cabelos
flutuantes
num colete salva-vidas
que não atendia
às normas de fabricação”

 

Dessa maneira, em “De uma a outra ilha”, Ana Martins Marques mantém esses e outros elementos já vistos em sua literatura, além de tornar a sua escrita mais atenta à política. Entre as temáticas, o longo e fraturado poema aborda a ilha grega de Lesbos. No passado, esse foi o lar da poeta Safo; no presente, é um dos locais por onde imigrantes tentam entrar na Europa.

 

 

Com isso, o tom político incide na discussão sobre os refugiados que se deslocam de um a outro ponto no mapa, assim como aparecem questões ligadas à comunidade LGBT, ao coronavírus, aos problemas ambientais do nosso tempo, aspectos trabalhados formalmente em um texto onde se acumulam versos retirados de notícias de jornais. Nessas marés, a vida aqui está menos submarina; no poema, estamos em pleno mar vendo tanto horror perante as ondas.

 

“Cemitério-marinho
o mar – come-carnes
e as devolve
espumando –
arrota as rotas
– cobra que num bote
abate-gente
– brilhando brilhante
azul azuis”

 

O fragmento é tecido enquanto expressão poética e política, mas também enquanto lugar para pensar a condição humana e o conhecimento. Na obra “A vida submarina”, já havia a seção “Episteme & epiderme”; no entanto, agora, “De uma a outra ilha” cita Platão e Aristóteles, e não deixa de realizar diálogos formais com legados feito o Romantismo alemão, especialmente com a noção de fragmento, tão cara a Friedrich Schlegel e a Dorothea von Schlegel.

 

Se os textos dos antigos, inclusive os de Safo, chegaram fragmentários aos dias de hoje, a plaquete de Ana Martins Marques nasce fragmentária. Entre a morada de terra e o mar, molda em torno de si uma forma fechada e aberta. Fragmento por fragmento, o livro circunscreve um arquipélago. Espécie de constelação marinha, como se Walter Benjamin olhasse para o oceano, não para o céu. O corpo do texto, quebrado; tantas e tantas estrelas [e vazios] sobre uma praia de palavras, armadilhas das ilhas.

 

“Seus poemas nos chegaram
em pedaços
quebrados como vasos de cerâmica
ou conchas espatifadas na praia
palavras como ilhas
cercadas de silêncios
por todos os lados”

 

RAFAEL FAVA BELÚZIO é pesquisador de Poesia Brasileira (UFES/CNPq). Cursou Letras (UFV) e Filosofia (UFMG), mestrado e doutorado em Estudos Literários (UFMG). É autor de “Quatro clics em Paulo Leminski” (2024, ensaio) e de “Opus 10: ensaio desentranhado” (2023, plaquete de poemas). Instagram: @favabeluzio

 

“De uma a outra ilha”
De Ana Martins Marques
Coleção Círculo de Poemas Fósforo/Luna Parque
40 páginas
R$ 44,90