João Bandeira
“Soleira”
Acorreram à minha porta carteiros
amoladores pedintes
caixeiros de todas as cores
o vendedor de banana empurrando
seu carrinho de mão e que aceita cartão
a engenheira do nhoque de mandioquinha
o sujeito que grita — É ovos é ovos
o marido da vizinha os filhos do pipoqueiro
o cortejo do excapitão de braços com devotos do eclipse afinal
E livros aquém do uso jornais acesos pela manhã
cravejadas iguarias via uberesfolados entregadores
propostas tantalizantes modestos assaltos de ocasião
dívidas sempre adiadas faltas com amigos
conselhos de família oficiais de justiça
Ajax e outros apregoados heróis higienistas
as mais gasosas melodias de ondes insabidos
das velhas namoradas esquecidas
cobrando sonhos e acertos de colchão
Nenhum nenhumas trazendo
por setecentos dias mais trinta dinheiros
o bem que alguém me quereria e mal sabia eu
“Laive”
Durante muitos anos seguintes ao que se disse
a descoberta da terra de uma santa cruz,
indígenas foram sendo imaginados
como seres terríveis em gravuras
que insinuavam ser comum, talvez diário,
o rito especial chamado antropofágico.
Eram talhadas por artistas d’além-mar,
que jamais os viram e nem bem souberam
do que havia de relatos de quem, de fato,
passou por estas terras ou aqui ficou.
Também gravaram-se montagens de figuras
herdeiras dos bestiários medievais,
como encarnações do diabo entre
os ex-edênicos tornados novos bárbaros.
O presidente, parece que foi ontem,
fez outra laive com borrados descendentes
daqueles povos tantas vezes mal representados
“Uma vez”
Na calçada do outro lado da avenida,
em frente à saída do Aeroparque — sabe?
no meio dos pescadores esquecidos
de horários, escorando o passar dos dias
na mureta com uma ou duas varas
debruçadas no alheamento do Prata,
um deles contava a pode ser que algum
parente mais novo, embora não se
diria que falasse a um filho, como
era tudo por ali em outros tempos.
Vacilava sobre por qual atalho
devolver-se a tanta coisa retirada,
contornando o que mentalmente revia,
e na curva surda de uma música crescendo,
com delícia de até-hoje-não-acredito,
mas sem vaidade de quem exagerasse,
afinal soltou no ar todo o cenário:
Había un lugar donde se bailaba!
“Uma vez que”
Andando como quem se apressasse,
a mais fotografante do grupo,
num espanhol despenteado,
insiste mais uma vez em saber
se ele também acha que esses ombúes
são naturalmente gregários,
tal qual dizem no youtube,
ou não pensa, assim como ela,
que preferissem crescer livres
por todo o pampa, isolados.
O discreto assistente do guia,
largando o olhar na paisagem,
responde-lhe desenfático:
Señora, lo que pienso es que son árboles.
“Eles mesmos”
Passando o russo que vende tapioca
e a bilheteira compreensiva ali fora
no célebre Circo do Capão
só se vê sob a lona vermelha
o tanto de gente que cabe
na arquibancada de dez tábuas
um cachorro sem dono dormindo
meia dúzia de caixas de papelão
sem leão esfalfado ou mais nada
no tablado todo forrado de preto
Pois de onde saiu esse par
de palhaços abelhas-em-férias
atração única dessa noite
com mímicas para outro mel
revirando no ar eles mesmos
os olhos plausíveis do público
o comboio dos minutos
certa perna confundida
toda espera sem prêmio
coisas oh inexistentes
a memória submissa
a filha que também veio
uma beirada de nada
os favos das caixas vazias
agora já meio desfeitas
como eu puxado de susto
para um número debaixo das luzes
e aplaudido ao lado deles?
Sobre o livro e o autor
O paulistano João Bandeira é poeta, artista visual e escreve ensaios sobre arte, literatura e música. Autor de “Princípio da poesia” (1991), “Rente” (1997) e “Quem quando queira” (2015), entre outros, tem poemas publicados em “Antologia comentada da poesia brasileira do séc. 21” (org. Manuel da Costa Pinto, 2006) e “Alguna poesía brasileña” (org. Rodolfo Mata e Regina Crespo, 2009).
“E depois também”
De João Bandeira
Círculo de Poemas/ Editora Fósforo
40 páginas
Lançamentos em Belo Horizonte no próximo sábado (23/11), às 13h, na Livraria Quixote, em bate-papo do autor com Gustavo Silveira Ribeiro e leituras de Ana Martins Marques, e na segunda-feira (25/11), às 10h, na Faculdade de Letras da UFMG, no evento “Poesia e experimentação hoje”, em leituras do autor com Carolina Anglada e Gustavo Silveira Ribeiro.