Fabrício Marques e Silvana Guimarães
Especial para o EM
Os leitores de poesia brasileira estão prestes a conhecer a potência poética de Maria do Carmo Ferreira, perto de completar 86 anos, inédita em livro. É uma poética tão forte quanto a de poetas bem diferentes entre si, como Hilda Hilst, Orides Fontela, Ana Cristina Cesar, Maria Lúcia Alvim, Adélia Prado. Não que Maria do Carmo, a Carminha, seja uma completa desconhecida. Alguns de seus poemas foram publicados esparsamente em jornais (e poucas revistas) ao longo de 43 anos, numa produção com início em 1966 e interrompida em 2009, por decisão da autora.
No próximo dia 29 de novembro, na Livraria Jenipapo, em Belo Horizonte, serão lançados três livros reunindo sua poesia, pela martelo casa editorial: “Cave Carmen”, “Coram populo” e “Quantum satis”, trilogia que revela um intricado e complexo fazer poético, caracterizado pela experimentação com o verso e a palavra, o uso de metrificação e rima, paronomásias, jogos de palavras, lirismo, sátira desbragada, metáforas ousadas, neologismos, “stream of consciousness”, aproveitamento dos sinais ortográficos, corte de palavras, elipses e a adoção de diversas línguas no mesmo poema — daí, os títulos dos livros em latim.
A trilogia, reunindo no total 231 poemas, é marcada, sobretudo, pela confluência entre corpo e linguagem, sagrado e profano, fato e memória, mas de um modo elaborado de tal forma que essas instâncias se cruzam, conversam, se transformam. Há espaço para desvelar relações humanas, encontros e desencontros amorosos, experiências cotidianas, metapoemas, vozes da infância, lembranças da família, morte, metafísica, o mistério do Cristo.
É a poesia de alguém que se sente livre entre grades: sobre ela atua uma extrema liberdade criadora, que, ao se limitar pelas formas poéticas e pela tradição, sempre se abre às ousadas experimentações de vanguarda. É, ainda, a poesia de alguém que fala de fatos históricos e mitológicos, mas está sempre falando de si mesma (“Acho impossível não falar de si mesma num poema”, disse uma vez).
A poeta nasceu em Cataguases, Zona da Mata mineira, em 21 de dezembro de 1938. Sua veia poética está ligada ao pai, dentista prático de grande inventividade, que chegou a publicar sonetos no jornal cataguasense “Martelo”. Sua irmã, a poeta Celina Ferreira, lia para Carminha clássicos brasileiros e hispano-americanos. Experimentou Pablo Neruda, Federico García Lorca e muitos outros pela leitura entusiasmada e crítica da irmã.
Em Belo Horizonte, na Faculdade de Letras da UFMG, conheceu a poesia trovadoresca, a poesia lírica de Camões e Sá de Miranda, aprofundou seu conhecimento de Fernando Pessoa e Sá-Carneiro e voltou-se para a ficção de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Seus poetas preferidos continuavam a ser Bandeira, Drummond, João Cabral e Cecília Meireles. Na faculdade, publicou seu primeiro poema (“Enigmas”, na trilogia), em 1966.
Depois de formada, passou quatro anos em São Paulo e quatro na Europa e nos Estados Unidos. Então, radicou-se no Rio de Janeiro por mais de duas décadas e finalmente mudou-se para Niterói, onde vive. Trabalhou por mais de 30 anos na Rádio MEC, como criadora, tradutora, redatora, produtora e coordenadora de programas literários e literomusicais. Na rádio, conheceu Cecília Meireles e Ana Cristina Cesar, com quem trabalhou na revista “José”, onde publicou um poema (“Verdevários”, também na trilogia). Publicou na revista “Imã”, do Espírito Santo, e no projeto “Poesia Livre”, de Ouro Preto.
A trajetória poética de Maria do Carmo Ferreira indica três momentos decisivos: as publicações no “Suplemento Literário de Minas Gerais” (SLMG), o encontro com os poetas concretos e a estada em Illinois, Estados Unidos.
No SLMG, publicou 78 poemas. A estreia foi no número 13, em 1966, dois meses depois do lançamento do jornal. O último saiu em 2002. Sua irmã Celina apresentou-a ao fundador e editor do jornal, Murilo Rubião, que percebeu imediatamente o talento da poeta e seu pendor para o experimental. Murilo fez uma carta de apresentação e orientou Carminha a procurar, em São Paulo, os poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que editavam a revista “Invenção”. Seu poema “Meretrilho” saiu no nº 5, de janeiro de 1967.
Em depoimento inédito para a trilogia, Augusto de Campos lembra-se do encontro com Carminha e de “Meretrilho”: “Eu a conheci quando veio morar por algum tempo em São Paulo, no fim dos anos 1960. Procurou-me e me mostrou alguns poemas. Um deles me chamou a atenção. Era ousadamente joyceano, concret(r)ocadilho”.
Fez o mestrado em Literatura Comparada na Universidade de Illinois. Nesse período, aprofundou seus conhecimentos da língua inglesa, passando a fazer traduções, em especial de Emily Dickinson. Também traduziu Yeats, os franceses Corbière, Mallarmé e Laforgue, e poetas de língua espanhola, como García Lorca e Pablo Neruda. Nas traduções, seu “estilo” (tudo aquilo que encontramos em seus poemas) também é muito perceptível. Uma amostragem dessa faceta de tradutora está no site “PopBox”, de Elson Fróes.
Em 2000, o SLMG dedicou um dossiê à poesia de Carminha. No jogo de aparece-esconde, era o momento de dar as caras. Na década de 2000, Carminha encontrou na internet uma real possibilidade de interlocução. Nesse meio também publicou poemas em blogs, sites e revistas eletrônicas. Até que em 2009 decidiu afastar-se definitivamente da poesia, religando-se com o divino. É preciso dizer que Maria do Carmo foi empanturrada de religião desde criança. Educada por freiras, passava as férias de adolescência em cidades e conventos marianos. Em determinado momento, afastou-se da Igreja Católica. Com o tempo, os conflitos foram serenando. Desde o final da década de 1980, passou a incluir mais poemas religiosos em sua produção rotineira. Parte deles está no livro “Quantum satis”, o terceiro volume da trilogia.
Com todos esses percalços e percursos, a poesia de Carminha, mesmo oculta, seguiu conquistando leitores. Nos últimos anos, os poetas Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck chamaram a atenção para ela nas redes sociais e na revista eletrônica “Escamandro”.
Agora, é o momento de os leitores se encontrarem com os poemas de Carminha em caminhos que percorrem o corpo da linguagem, o profano do corpo, a linguagem do sagrado. Agora, é a hora e vez de Maria do Carmo Ferreira.
FABRÍCIO MARQUES E SILVANA GUIMARÃES são os organizadores de “Poesia reunida [1966-2009]”, caixa com três livros de Maria do Carmo Ferreira.
Seis poemas inéditos
Os poemas selecionados para esta edição do Pensar integram a trilogia “Cave Carmen”, “Coram populo” e “Quantum satis”, de Maria do Carmo Ferreira, organizada por Fabrício Marques e Silvana Guimarães, a ser publicada pela martelo casa editorial.
“Orelha-de-pau”
Poesia pra mim
é como a língua do pê:
o meu módulo
o meu código
o meu hobby
minha tv.
E mais:
meu quadro clínico
meus quatro cantos:
leite e veneno
eros e tânatos.
Meu mal de parkinson
& diversão:
paralisia agitante
tremores rítmicos
festim do instante
festinação.
Poesia pra mim
é também pa’
ludismo
um-ismo atávico
índico
pacífico
lusitano.
Produto brasileiro:
copyright by mimesma
desde a iniciação:
a febre intermitente
a malária
a maleita
a sezão.
Agora, o poema
em seus estratos
contratos cassações…
Se a poesia é pura
pária in’válida
meritória meretriz…
Isso é assunto oracular
que já se perde
nas esfinges dos séculos
de indagações.
Na bolsa de valor
essa avis rara
faz-se e refaz-se
o poema
ao câmbio torto
da hora.
Efêmera é a flor
em suas razões:
misterioso monólogo
interior
com os seus
botões.
“Elegia”
Que nada se compare ao incomparável
por ser da folha a razão da árvore.
O que existe sem o outro, existe ao meio,
meio feito, meio desfeito.
Nada se iguala ao mito
— lembrado por toda a eternidade —
reverberando a paisagem íntima e perfumada
qual sândalo em véspera de rito.
Sejam feitas as coisas mais queridas
e deixadas as outras ao acaso,
para que, quando passe o tempo,
reste apenas o que não foi visto.
Guarda-me em teu olho e em tua boca.
A surpresa de se sentir
onde não mais estás presente.
Apenas a lembrança que perdura.
“Contas gregorianas”
1 toalha pra banquete bem croshit
1 aparelho de jantasse se casasse
2 aptos pro beleléu com sol-i-déu
e ainda o q mais não coube
enfioforçou-se-lhe e coube
diplomas belle-époque 2 de letras
livros a sê-los alfarrábios sebos
1 quadro tup yara em flor nanquim
1 mestre noza havia sacra inteira
e ainda que mais me roubem
acabou-se o que hera sobre
ossos do pai 7 irmãos 1 mãe quase
1 cachorrinho de dez meses targos
1 pomba da paz e 1 gata de antraz
três dias padejando arnica e asa
vingou só Sacha a cã dona da casa
e ainda quem mais no coice
já acabalou-se-me foice-me
eu minha senhora e minha senhorita
soçobrando de ativa e compassivas
lutas termais dilúvios y delíquios
coopto-me concausa & carbon copy
em luvas de peli’cara ou carisma
pendant do original em carme viva
ainda que louvre ou love
gioconda reduz-me a 1 pôster
“Vozes da infância”
Acordo em sobressalto. O sol vai alto.
Rolimãs roem a rua em rudes sons.
O ar em riste, a vida, triste, em solo.
Segóvia — ao violão — Granada adentro.
Vem voz soprano. Um minuano sopra
desenrolando múmias de papiros:
me arrasta para além de onde retorno.
Tudo é barulho. Ritmo. Pletora.
Os tiros detonando em minha infância.
O estômago ruindo.
As mil e uma noites de esperanças.
As mil e uma esperanças sem destino.
A vida triturando em minha porta
seus caminhões de lixo.
A nicotina amarelando os dentes
de um riso introvertido.
O espelho que lamenta e fundamenta
essa falta de siso.
Mudam-se os nomes. Sacrifico à fome
versos perversos que encadeiam falas
clamorosas de mãe: leite e veneno,
em cáries de afeição: falta de cálcio.
Carcomida de amor, vagindo, falo
o amado nome em vão, e me persigno.
A força de viver transfiro para
a língua em lacre, o simulacro, o vício,
que é vício reincidir em tudo isso.
“55,10s”
Olhada da vidraça, enquanto escorrem
os pensamentos que não têm pousada,
a chuva em andamento: chove, chove
seu concerto a uma voz. E manda água.
Arrefecendo o ânimo, abrandando
a natureza ou derretendo brasas,
segue chovendo adentro, sem parâmetro,
ininterrupta: executa o esbaldável.
Pensa-se: há de parar, mas não, encorpa
e engrossa o passo, à mão a contradança
que me propõe pelo tempo que avança
na escuta-pensamento da que cai.
Difícil sintonia se esboçando
como a entrever respostas no até quando
recomeço sem fim entre duas águas.
Uma, que verte cântaros, não chora.
Outra que, sem chorar, vai-se acalmando,
sem mais demandas no canto dos olhos.
“Somewhere in the spring”
Caminham sobre o asfalto
verticalmente imóveis
imagens frescas de papel.
As tulipas convocadas
à fotocópia do real
vergam-se em cachos de rosas
noutro jardim emergido
de súbitas acácias, substrato
de um tempo muito mais comigo.
Metáfora futura, em mim flutuam
jovens e cães, inconscientes
à fenomenologia do presente.
Para fixar este momento
há mãos e nãos convergindo
desde uma secular esquina
que a história atravessa em nós
e agora, úmida, nos ensina
esta manhã de primavera e sol.
“Poesia reunida [1966-2009]”
• Caixa com os livros “Cave Carmen”,
“Coram populo”, “Quantum satis”
• De Maria do Carmo Ferreira
• Organização de Fabrício Marques e Silvana Guimarães
• Ilustrações de Caio Borges
• martelo casa editorial
• Coleção Cabeça de Poeta
• 560 páginas
• R$ 259
• Lançamento com leituras de poemas de Maria do Carmo Ferreira por Adriana Versiani, Adriane Garcia, Ana Martins Marques e Maria Esther Maciel, na próxima sexta-feira (29/11), às 19h, na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi, BH). Os livros serão vendidos também separadamente