Artista, escritora e educadora nascida e radicada em São Paulo, Edith Derdyk realiza exposições coletivas e individuais desde 1981 no Brasil e no exterior -  (crédito: arquivo)

Artista, escritora e educadora nascida e radicada em São Paulo, Edith Derdyk realiza exposições coletivas e individuais desde 1981 no Brasil e no exterior

crédito: arquivo


Edith Derdyk

“Linha-horizonte”

 

Linha severa da longínqua costa –
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da Verdade

Fernando Pessoa, “Horizonte”


Os versos do poema “Horizonte” de Fernando Pessoa – “Linha aproximação quando se está ao longe, para a consolidação de severa da longínqua costa - / Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta” –, revigoram a percepção da linha como fruto do encontro entre matérias, superfícies, planos, corpos, volumes. A linha-horizonte nasce dessa região. A linha de horizonte é uma imagem que emerge de uma aproximação de distâncias que o olhar opera: “Onde era só, de longe a abstracta linha” surgem árvores, aves e flores “onde o Longe nada se tinha”. É na distância que a região do longe, mesmo que transitória, visibiliza a presença da linha-horizonte, fruto de uma visão-lugar por onde tudo escapa e por onde tudo vem. A linha-horizonte é uma dobra em aberto por onde fissuras do mundo surgem.

 


“Linha severa” – afirmativa, incisiva, designadora, imaginária -, porque a linha, tal qual o estilete, cinde, corta, avança. Porém “onde o longe nada se tinha” a linha arranca, extrai, puxa, draga, absorve as figuras do mundo. As imagens ao redor do corpo da linha-horizonte parecem alcançar as questões semânticas nucleares que envolvem a palavra “desenho”: drawn – dragar, absorver, observar – e design – projetar, lançar, designar.


“Buscar na linha fria do horizonte” sugere a tarefa hermenêutica de decifrar códigos e revelar um olhar em prospecção. “Linha fria”: visão lúcida em potencial, virtualidade pulsante: linha que existe e não existe, concomitantemente. A temperatura da linha fria produz o efeito de se ver ao longe, com maior definição. A linha quente entorpece os sentidos, gera bruma, confunde o olhar. A linha-horizonte incita a uma aproximação quando se está ao longe, para a consolidação de “um sonho de ver as formas invisíveis.”


“Nau da iniciação”: o corpo da linha-horizonte acende e ascende promessas.


O corpo da linha-horizonte ocupa um lugar entre, desvenda o espaço entre as coisas sem ser as próprias coisas, porém sendo todas elas. A linha do horizonte a quem pertence: ao céu, ao mar, à terra? Onde está a linha de encontro entre as coisas do mundo?

 


A linha é carne e ossatura. Qual é o corpo da linha-horizonte?


A linha-horizonte empresta o entorno para a invenção de mundos, caminha pela superfície das coisas, remarca territórios conforme o recorrido, abraça ao redor. A linha-horizonte nos abraça. O corpo da linha-horizonte é um sismógrafo neuromotor: mede proximidade e afastamento, profundidade e altura.


A linha-horizonte engaja uma qualidade dupla: expressão do sensível e do inteligível, matéria e estrutura, traço e linha, percepção e conceito. A linha-horizonte potencializa a aura do futuro “Onde era só, de longe a abstracta linha / O sonho é ver A linha-horizonte é a metáfora do encontro, quando as formas as formas invisíveis”, e postula conexões entre as distâncias aquém e além. Fruto da visão que separa o hemisfério visível do invisível, a linha-horizonte é lugar de mistério.


A palavra “horizonte” deriva do substantivo grego horos, que significa “limite”, e do verbo horizein, “separar, limitar”. A linha-horizonte alude à região que separa fronteiras, designa o encontro entre as matérias, entre as superfícies, entre os corpos. Em que medida a linha-horizonte dimensiona a espacialização do tempo e a temporalização do espaço? Em que medida tal sinalização apresenta outras atitudes do corpo diante do espaço, transmigrando fronteiras?

 


A linha-horizonte não se subordina à ilusão representacional invisíveis se deixam esparramar, e, “no desembarcar, há aves, flores/ Onde era só, de longe a abstracta linha”. do espaço, sistematizado pela construção matemática e geométrica da perspectiva, oferecendo ao plano uma sensação de profundidade a priori: não se trata de imagem especular como uma superfície refletora que projeta e difrata as figuras do mundo ou tal como um campo autônomo e abstrato, independente do espaço real. O corpo da linha-horizonte é a região do encontro sensível entre matérias impalpáveis, fruto da percepção e do conceito. A linha-horizonte só se percebe quando estamos ao longe, até onde o olho alcança.

“Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte”


SOBRE A AUTORA

 

Artista, escritora e educadora nascida e radicada em São Paulo, Edith Derdyk realiza exposições coletivas e individuais desde 1981 no Brasil e no exterior. Com uma carreira marcada pela exploração da linha como elemento central em suas obras, Edith se destaca pela abordagem multidisciplinar e investigação sobre o desenho e seus desdobramentos.

 

Com uma obra que abrange desenhos, instalações, esculturas e livros de artista, Edith tem sua produção conhecida pela abordagem conceitual e poética que emprega, em que a linha se torna uma metáfora para o pensamento, o corpo e a memória. Muitos de seus trabalhos envolvem a repetição, a trama e a tensão, explorando as fronteiras entre o bidimensional e o tridimensional, entre o espaço e o tempo.

 

Publicou livros como “Formas de pensar o desenho: gesto, memória, traço” e “Linha de costura: a construção do desenho”. O texto “Linha-horizonte”, integra o livro “O corpo da linha”, que já ganhou lançamentos em São Paulo e terá autógrafos em Belo Horizonte, no início de dezembro, com a presença da autora.