“Toda vida”
Angela Melim
“Haikai – balada”
Ar ensopado de água
mágoa no coração
chuva pesada que não cai no chão.
Calma de sol fino
manhã montanha brilho pingo
coração sorrindo.
*
“Mania de limpeza”
Raspa de limão
cheira seco;
assim
a lua limpa
alto relevo
que a letra afixa
no papel novo.
*
Tem um lance de lua
no néon, a lua é fria
a mulher ri
agulha
o salto da sandália devagar
mergulha – de verniz, cintila – e voa
fura
todas as letras do hotel gritam no céu.
*
“Eu te amo”
Para Y
A lagoa está parada
a mulher diz.
A lagoa.
Ancas. Cabelos.
E de frente,
cara oblíqua repuxada pelos nós dos dedos,
cotovelo largado na tábua.
Eu vi.
Pontas, fulgir.
Vou viver mais.
“Praia vermelha”
Ah, os bons sentimentos.
Seda e cor
vêm de dentro
da alma aquosa do cacto.
(Verdade sem palavras
da rocha –
o líquen na placa
e o fio da prata:
água mole a produzir velusgo.)
Sou o cacto
não sua flor.
Com agulha
na pele
arranho o olho.
*
“Flores”
Colho olhos fixos
de novo
boca seca
aberta
– o não completo me suspende
entre parênteses invisíveis e impotentes
no ar parado –
de passeio neste campo imperceptível
minado
que a pasma semântica do absurdo
cobre de avesso e espanto
flores que explodem ao contrário.
Sobre a autora
Nascida em Porto Alegre e radicada no Rio de Janeiro, Angela Melim é considerada uma das grandes poetas surgidas nos anos 1970. Lançou livros como “O vidro o nome”, “Das tripas coração” (1978), “O outro retrato” (1982) e “Mais dia menos dia” (1996). Sobre os versos da autora, Armando Freitas Filho (1940-2024) anotou na introdução de “O vidro e o nome” em 1974: “Uma poesia que se desenha como quem usa o seu corpo: em todos os níveis. Uma poesia que parece estar sendo feita no momento exato em que a lemos: imprevista, tinta ainda fresca, coração e mão que acabaram de escrevê-la, e, próximos, ainda pulsam nas intenções do texto”. Vinte e três anos depois, no prefácio de “Mais dia menos dia”, Freitas Filho lembrou:
“Foi nos versos de Angela que, pela primeira vez, vi que a literatura poderia ter gênero sem cair nos estereótipos disponíveis: nem a mão feminina só habituada a tocar o etéreo, nem o seu contrário, a militante mão feminista empunhando uma bandeira.”
A fortuna crítica na edição de “Toda vida” inclui ainda textos de Ana Cristina Cesar, Ivan Junqueira, Flora Süssekind e Leonardo Fróes.
“Toda vida: poesia reunida”
• Angela Melim
• Companhia das Letras
• 344 páginas
• R$ 109,90