O ponto de partida para o livro-reportagem “Movimento: Como reconquistar nossas ruas e transformar nossas vidas” (Perspectiva) se deu assim que a jornalista holandesa Thalia Verkade retornou de algumas temporadas na Rússia, onde trabalhou como correspondente, e notou o contraste entre os congestionamentos das cidades holandesas e a mobilidade por bicicletas - que é uma política de governo referência pelo mundo.

 

A partir daí, se inicia um trabalho investigativo no qual a jornalista destrincha soluções, propostas por técnicos, acadêmicos e autoridades, para que as ruas passem a beneficiar, em primeiro lugar, as comunidades, ao invés de serem apenas caminhos para carros irem do ponto A ao ponto B. O coautor da publicação é o professor Marco te Brömmelstroet, ou “Professor de Ciclismo”, como assina nas redes sociais. Chefe da cadeira de Futuros em Mobilidade Urbana no Instituto de Pesquisa Social de Amsterdã da Universidade de Amsterdã, o acadêmico foi o guia da jornalista durante a produção da obra, eleita melhor livro jornalístico de 2021 na Holanda.

 

Um dos motes do capítulo inicial, “as ruas pertencem a todos nós, por que o trânsito se apropriou de nosso espaço público?”, relata o projeto de instalação de uma zona de desembarque na entrada da escola dos filhos de Marco. Houve um movimento para rechaçar a iniciativa, pois a criação do espaço mudaria uma das políticas propostas pelo colégio, na qual pais acompanham os filhos até a sala de aula. Uma constatação inevitável ao decorrer da leitura é de que as decisões de mobilidade, de simples faixas de pedestres à construção de ciclovias, não se limita, ou não deveria, a questões técnicas forjadas em manuais de engenharia de trânsito.

 




Em entrevista ao Estado de Minas, o professor Marco te Brömmelstroet defendeu que, para alcançar o proposto no título da publicação, “como reconquistar nossas ruas e transformar nossas vidas”, tanto na Holanda quanto no Brasil, é necessário que os debates deixem de ser monopolizados por termos como gestão de tráfego, ciclovias e sistemas de mobilidade, e passem a ser centrados no que impacta diretamente às pessoas, como estresse, perigo e, especialmente, nos efeitos sobre as crianças.

 

O coautor do livro “Movimento” também argumenta que há muitos pontos para serem melhorados no “país das bicicletas”, que, apesar de ter atenção aos ciclistas nas políticas públicas, “é a melhor versão de um sistema errado”, disse. Leia, a seguir, a entrevista do urbanista ao Pensar.

 

 

Em Belo Horizonte, parte das pessoas têm resistência às ciclovias porque, segundo elas, como a cidade tem muitos morros, ninguém vai andar de bicicleta. Na sua experiência e na experiência da Holanda, você acredita que há cidades onde bicicletas funcionam e outras que não?


Há muitas cidades com morros e que têm boas redes e cultura de ciclismo. Isso não acontece da noite para o dia e precisa ser feito com cuidado. Construir ciclovias não vai fazer as pessoas automaticamente passarem a pedalar. O que nós precisamos é considerar a ideia de construir uma cidade totalmente funcional para as pessoas sem carros. Isso não é apenas sobre ciclovias, é também sobre estacionamentos, é sobre conexões com o transporte público. E também sobre o uso da terra, sobre onde ficam os supermercados, as escolas, os hospitais. Essas não são coisas fáceis de se resolver, mas a solução começa com uma escolha política, de se construir uma cidade que funcione melhor para todos. O que eu aconselho, e acredito ser fundamental, é focar especialmente nas crianças, porque uma cidade construída ao redor dos carros não é uma cidade que funciona bem para as crianças. E muitos de nós tem filhos. Todos nós já fomos crianças algum dia e muitas poucas pessoas odeiam crianças. Então, se conversarmos sobre como a cidade precisa funcionar melhor para as crianças, ao invés de falarmos apenas sobre ciclovias, acredito que nós vamos encontrar muitas pessoas que apoiam essa ideia. Em resumo, é um debate caro e não que não deve ficar sob a ótica da mobilidade.


Uma percepção comum sobre a Holanda é que as bicicletas são muito presentes no dia a dia das pessoas e isso faz o trânsito ser quase que “perfeito”. E o livro ajuda a quebrar essa ideia. Como esse senso comum de que a Holanda é o “país das bicicletas” foi construído?


Eu acredito que o ponto chave para entender isso é porque nós tivemos a oportunidade de realmente escolher as bicicletas ao invés dos carros na década de 1970. Porém, ao invés disso, nós demos às bicicletas um lugar ao lado dos carros. E politicamente pode, hoje, parecer um caminho inteligente, mas estrategicamente é muito problemático. O que eu digo aos estudantes aqui da universidade é que a Holanda é a melhor versão de um sistema errado. Nós podemos mostrar como uma sociedade dominada pelos carros pode também ter lugar para as bicicletas. Ao todo, 27% das viagens são feitas de bicicletas, mas é aí que termina. Ainda temos 73% de viagens que não são feitas de bicicletas, e a maioria delas é feita de carro. Eu acredito que a Holanda mostra o potencial, mas um potencial limitado. Se você não entender completamente como uma cidade deve funcionar bem, você vai terminar com uma cidade disfuncional, onde bicicletas têm o seu papel, mas sendo uma espécie de versão menor dos carros.


Marco, o livro conta a jornada que você teve com pais de alunos da escola dos seus filhos sobre a implantação de uma parada para carros, e como isso poderia influenciar na interação entre pais e filhos no dia a dia. Como podemos fazer para que as pessoas se interessem e engajem mais nas discussões sobre mobilidade?


Esse é um ótimo exemplo para falar sobre o que aconteceu após o livro. Nós conseguimos mudar o sistema de parada de carros e construímos um playground maior para as crianças. Uma coisa que nós fizemos aqui e que foi crucial, e que é a mensagem crucial do livro, é que mudamos a direção das discussões. Não foi uma discussão sobre como fazer uma parada de carros ou sobre gestão de tráfego. Foi uma discussão sobre qual tipo de ambiente nós queremos oferecer para as crianças no lugar onde eles crescem. Perguntando dessa maneira, você vai encontrar pessoas que não tem carros e que não estão interessadas em debates sobre trânsito, estacionamento, carros e bicicletas, mas que se engajam em conversas sobre os problemas que elas enfrentam com seus filhos. Nós sabemos que as crianças em todo o mundo enfrentam crises de saúde mental, física e social, por muitas causas, e uma delas é que lhes faltam um senso de liberdade, já que elas não podem brincar nas ruas, por exemplo.

 

 

Marco te Brömmelstroet: aconselhamento para que o foco esteja nas crianças

Guido Benschop


Esse discurso consegue engajar pessoas que apenas entram no carro, dirigem e se preocupam somente em chegar ao trabalho mais rápido?


Mudando o debate você não coloca esse grupo de pessoas no centro das discussões. Eu acredito ser importante que políticos, ativistas, pessoas interessadas no assunto e a mídia desaprendam a conversar com uma linguagem de engenheiros de trânsito. Às vezes eu falo que essas palavras são proibidas: carros, bicicletas, estacionamentos, sistemas de mobilidade, gestão de tráfego. Todas essas coisas não são interessantes, a maioria das pessoas não se interessam por elas. Mas se você falar sobre solidão, estresse, perigo, falta de autonomia, felicidade das crianças, muito mais pessoas estarão interessadas.


Existe o conceito da ignorância pluralística, que mostra que em toda grande mudança, nós temos a tendência de superestimar a porcentagem de pessoas que apresentam resistência. Isso é porque nós conversamos com elas. Se você propõe uma mudança, as pessoas que resistem serão muito barulhentas e as pessoas que apoiam ou tendem a apoiar ficam em silêncio. Então, o que fizemos foi levar para o pátio da escola a grande maioria que realmente quer ter um ambiente melhor para as crianças. Ainda tivemos, é claro, algumas pessoas que resistiram agressivamente, mas elas pelo menos sabiam que eram minoria. 


Nas grandes cidades do Brasil, as discussões que envolvem mobilidade são centradas em como podemos resolver os problemas dos engarrafamentos. Como isso pode ser trabalhado junto de uma rede cicloviária?


A maioria das viagens que as pessoas fazem não cobrem a cidade inteira e, geralmente, são muito curtas. Digamos que você mora próximo à Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, que é uma cidade com muitos morros, mas Ipanema é muito plana. Você pode ir para a maior parte do bairro de bicicleta. E se você pode fazer isso, e você tem à disposição transporte público para outras regiões da cidade, você não precisa ter um carro. Na Holanda também é assim. Apesar de ser plano, as distâncias aqui são muito longas. Eu moro a 85 quilômetros do meu trabalho e eu não tenho um carro. Eu uso minha bicicleta pela vizinhança com meus filhos, para praticar esportes, para ir fazer compras, e para trabalhar eu vou de trem. Eu preciso de ambos, bicicletas e trens. Aqui não temos montanhas como no Rio de Janeiro, mas são situações similares. Nós precisamos propor combinações entre os modais de transporte. E, novamente, toda a discussão deve começar primeiro sobre o porquê de a cidade não estar funcionando. Acho que muitas pessoas estão insatisfeitas, mas não podemos tirá-las dos carros mantendo essa discussão apenas sobre bicicletas, carros, ônibus, trens... é chato. Precisamos ir mais a fundo.

 


Trechos


“O fato de não ter carro próprio me poupa de outro problema: raramente me encontro presa em congestionamentos. Por que foi mesmo que achei que engarrafamentos são uma questão tão importante? Não que eu seja a única a ter essa preocupação. A rádio dá atualizações de tráfego de meia em meia hora. Será que isso acontece porque atribuímos tanta importância a congestionamentos – ou será que pensamos que são tão importantes porque são mencionados no rádio a cada trinta minutos? E veja outra coisa estranha: se nossa sociedade está tão ciente desse problema e tão focada em enfrentá-lo, por que é que não fomos capazes de encontrar uma solução?”

 

“O tráfego é uma parte tão integral do meu dia a dia que nunca parei para pensar como funciona. Quem decide se uma faixa de pedestres ou um semáforo será colocado em determinado lugar? A princípio, isso me parece uma questão técnica, algo da alçada de engenheiros de trânsito. Porém, depois de conhecer alguns engenheiros de trânsito, percebo que não se trata apenas de um assunto técnico. É uma questão social, política e moral: ela diz respeito a quem tem mais direitos.”

 

 

Sobre os autores


  • Thalia Verkade

Jornalista e moradora de Roterdã, na Holanda. Foi correspondente estrangeira e articulista dos jornais holandeses NRC Handelsblad e nrc.next. Para a plataforma de jornalismo De Correspondent, escreve sobre os temas que mais ama: linguagem, transporte e tecnocracia.


  • Marco te Brömmelstroet

É professor da Universidade de Amsterdã, onde chefia a seção de Futuro da Mobilidade Urbana no Instituto de Pesquisa Social. Suas aulas têm por foco a relação entre o uso da terra e comportamentos em torno da mobilidade.

 

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Capa do livro "Movimento: Como Reconquistar Nossas Ruas e Transformar Nossas Vidas"

Divulgação

 

"Movimento: como reconquistar nossas ruas e transformar nossas vidas"

 

  • De Thalia Verkade e Marco te Brömmelstroet

  • Tradução de Sonia Nussenzweig Hotimsky

  • Editora Perspectiva

  • 248 páginas

  • R$ 79,90

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