Ana Costa Ribeiro

Especial para o EM

Em 1944, o físico experimental Joaquim da Costa Ribeiro, meu avô cientista que não conheci, descobre um novo fenômeno: o efeito termodielétrico. Sempre ouvi falar dessa descoberta sem saber exatamente o que significava. Sabia que tinha algo a ver com a formação dos raios no céu, como meu pai contava para mim e meus irmãos em noites de tempestade. Quando perdi meu pai, perdi essas narrativas, mas ganhei outras histórias, escondidas no arquivo do meu avô.

 

 


Primeiro, recebo seu arquivo familiar: 11 rolos de filme em 8mm, 42 cartas de amor e algumas dezenas de fotografias. As imagens mostram que, além de físico, meu avô era também um fotógrafo amador. Registrava, em filmes e em fotografias, suas duas grandes paixões: a família e a ciência. As palavras aparecem nas cartas de minha avó, Jacqueline de Leers, filha única de imigrantes franceses, com quem meu avô teve dez filhos. Tragicamente, a última criança não sobreviveu ao parto, assim como minha avó, deixando meu avô viúvo e com nove filhos.

 


Em seguida, visito o arquivo público do meu avô, armazenado no Museu de Astronomia do Rio de Janeiro, antigo Observatório Nacional do Brasil. Não é com pouca dificuldade que consigo entender a lógica que organiza os 833 documentos de seu arquivo: 531 documentos de texto, 124 documentos de imagem e 178 documentos de impressos. Mas o que encontro ali é muito mais do que investigações científicas. Encontro uma curiosidade sem fim, de alguém que se pergunta sobre todas as coisas que nos rodeiam. Que as observa sem hierarquia.

 


Decido realizar um filme sobre o fenômeno termodielétrico.


 


De início, era assustador pensar em como eu deveria responder a um arquivo tão potente. Eu havia encontrado um material com mais de 800 documentos, entre textos, fotografias, impressos, ensaios acadêmicos, gráficos, cálculos, aulas públicas etc. O projeto parecia sem fim: quanto mais eu investigava a história dessa descoberta, menos eu sabia. Meu desejo era criar uma espécie de diálogo imaginário entre esse avô-cientista e sua neta-artista; mas como artista, me sentia sempre incapaz de estabelecer um diálogo com um cientista.

 


Até que um dia, minha interlocutora criativa no projeto, a catalã Marta Andreu, me disse: a física não precisa de você. Me senti aliviada e entendi então que eu não precisava saber tanto de ciência para conversar com um cientista – nosso intercâmbio seria poético. Minhas apreensões dos conceitos físicos seriam interessantes para o filme na medida em que eu pudesse fazer analogias poéticas. O quanto preciso saber para conversar com um cientista? Curiosidade o suficiente para que esse diálogo aconteça.


 


A pesquisa de arquivo se torna compulsiva e uma correspondência imaginária começa a surgir. Em resposta aos vestígios do meu avô, começo a fabricar imagens, textos e sons de volta para ele. Sigo seus passos, procurando os minerais que ele costumava pesquisar, as palmeiras Carnaúba de seu experimento, os laboratórios que ele ajudou a criar. Nesses espaços, encontro pistas que contribuem para minha compreensão de sua descoberta.

 


Um dia, meu avô estava fazendo alguns experimentos em seu laboratório de física no Rio de Janeiro, quando algo inesperado aconteceu. Ao derreter uma pequena quantidade de cera de Carnaúba, um isolante natural derivado da palmeira, notou o aparecimento de correntes elétricas surgidas apenas pela mudança de fase do estado sólido para o líquido, sem nenhuma interferência externa. A eletricidade podia surgir a partir do calor. A conquista o levou a ganhar o Prêmio Einstein por uma descoberta feita em um laboratório de poucos recursos.

 


“Termodielétrico” é um filme baseado em correspondências imaginárias entre um avô e uma neta que nunca se conheceram. Enquanto procura a história da descoberta científica de seu avô, a neta reage ao que recebe, criando imagens, textos e sons para ele em resposta ao que encontra. Se ele realizava investigações em um laboratório, inventando seus próprios equipamentos, ela desenvolve seu filme na ilha de edição, levando para o cinema a abordagem experimental recebida de seu avô físico.
O estilo visual do filme deriva do intercâmbio entre duas gerações, associadas a duas disciplinas: um cientista dos anos 40 e uma artista do presente.

 


A linguagem cinematográfica resultante gera movimento e mudança, principalmente através dos fluxos e cortes conduzidos pela montagem. Assim como o fenômeno Termodielétrico, que está relacionado ao surgimento de correntes elétricas a partir da mudança de estado físico, o filme também produz energia a partir de todos os tipos de mudança. A fotografia do filme é composta por materiais de diferentes origens, criando uma trama de múltiplas texturas. O estilo de montagem segue os princípios de uma constelação. Todos os elementos do filme são associativos, não há hierarquia entre eles, os fragmentos da narrativa são de naturezas distintas – há imagens de arquivos públicos, de arquivos familiares, imagens feitas em laboratórios, de desenhos científicos, em cor e em preto e branco, estáticas e em movimento. Tudo é importante, tudo tem valor.

 


O filme-ensaio é construído por diferentes vozes, narradas pela neta-artista, que lê os textos escritos pelo avô-cientista, e as reflexões que escreve a partir deles. Elas soam como instrumentos distintos tocando a mesma melodia, trabalhando juntas na narração em voz off da história. Paralelamente, o desenho de som e a trilha sonora original composta pelo coletivo O Grivo colaboram na criação da atmosfera, por meio de um ambiente sonoro que dialoga com a física, a partir da pesquisa com os materiais.

 


Durante a etapa de desenvolvimento do filme, fui apresentada ao trabalho de Karen Barad, física do departamento de História da Consciência da UCSC (o mesmo de nomes como Donna Haraway e Anna Tsing). Barad tem um conceito que se chama intra-ação, que é diferente de inter-ação. A intra-ação seria um dinamismo de forças em que todas as “coisas” designadas estão constantemente trocando e difratando, influenciando e trabalhando inseparavelmente. Talvez o meu diálogo com o meu avô tivesse um pouco a ver com isso.

 


O filme se torna então um espaço onde esse encontro entre um cientista e uma artista acontece. Quem sabe o fenômeno descoberto por meu avô pudesse me ensinar alguma coisa sobre o mistério da vida? A forma como ele olhava o mundo, através da ciência, reverbera na forma como eu olho o mundo, através da poesia. Juntos vamos construindo uma narrativa sobre o surgimento de eletricidade a partir das mudanças de fase em nossas vidas. A curiosidade científica impulsiona a curiosidade poética e vice-versa.





Um dos cientistas que entrevistei durante a pesquisa para o filme, o físico Sérgio Mascarenhas, me disse que, em sua opinião, o grande problema da humanidade estaria na separação das áreas do conhecimento entre a arte e a cultura, de um lado, e a ciência e a tecnologia, de outro. Depois de tudo o que passamos com a pandemia, e com o atual cenário de devastação dos biomas brasileiros, me parece que temos que, mais do que nunca, nos unir para um diálogo entre artistas e cientistas em busca de uma terceira cultura.

 

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ANA COSTA RIBEIRO é cineasta independente, doutora em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e MFA em Cinema pela San Francisco State University. Como diretora, realizou sete curtas-metragens e cinco séries documentais e trabalha como montadora há 24 anos. “Termodielétrico”, primeiro longa-metragem como diretora, teve sua estreia nacional no Festival do Rio e estará no streaming Itaú Cultural Play a partir do dia 06/12, com acesso gratuito.

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