Seja na escola, na família ou em livros como os de Monteiro Lobato do “Sítio do Picapau Amarelo”, que atravessa gerações e volta e meia é revisitado por estudiosos para discutir pontos importantes, boa parte dos brasileiros já ouviu falar de algum ser fantástico da mitologia brasileira. Equinos sem parte do corpo, humanoides com cabeça de tamanduá-bandeira, fantasmas de cangaceiros, loiras que assombram colégios por todo o país, são alguns dos seres que tiveram suas histórias narradas pelo professor Luiz Antonio Simas, no “Bestiário Brasileiro”, publicado pela editora Bazar do Tempo, como ele ouviu.

 


O historiador, conhecido por sua obra que busca registrar o dia a dia da população, relata a origem e a atuação da Mula sem Cabeça, Saci-Pererê, Curupira, Boitatá e outros seres fantásticos, alguns menos conhecidos, como o Capelobo, Papa-Figo, Labatut, Papa-Figo, Mapinguari, entre outros. A observação, que vem logo na capa do livro, de que as histórias ali são conforme foram ouvidas por ele traz explicitada uma característica da oralidade. Contos que passam por gerações e que se alastram por longas distâncias, após serem contados inúmeras vezes, tendem a serem alterados com o tempo, por diversos motivos.


Apesar de muitas destas histórias serem oriundas de um país mais identificado com a vida rural, o professor comenta que a urbanização trouxe novos monstros, visagens e fantasmas ou, pelo menos, adaptações de antigas histórias. Este “habitat urbano fantástico” é a “morada” de seres, como o Velho do Saco, que vem buscar crianças desobedientes; a Loira do Banheiro, que marca presença em toaletes de boa parte das escolas de norte a sul, leste a oeste do Brasil; e o “Bebê-Diabo”, uma criança com chifres, rabo, barbicha e muito falante nascida em 1975 na cidade de São Bernardo do Campo, aparentemente “parida” pelo jornal Notícias Populares de São Paulo, que foi acusado por seus críticos de publicar informações inverídicas.


“A história de um povo é também a história de seus fantasmas, visagens e aparições; dos monstros que um dia nasceram (...) e que podem perfeitamente morrer” traz anotado na orelha do inventário inconcluso de Simas, ressaltando a importância que esses seres fantásticos têm em nossa formação e que, para a morte deles, basta que as pessoas deixem de acreditar nos relatos. Ao longo dos capítulos, aliado às histórias de como os seres surgiram e como atacam ou assombram a população, o professor traz curiosidades sobre o que acontece no mundo “racional” para que eles se popularizaram, as citações em obras culturais e até dicas para quem quiser encontrar alguns deles.

 


Luiz Antonio Simas alerta que não devemos ficar sendo norteados por uma suposta pureza cultural já que os nossos seres fantásticos vêm pelas influências indígena, africana e europeia, principalmente a ibérica, e que, pela nossa história, acabamos assimilando muitos pontos da cultura norte-americana, que chegou aqui por livros, músicas e filmes, mas lamenta que “a cultura brasileira, que é riquíssima, você não vê com tanta intensidade”. Como ele afirma no livro:


“Os monstros continuam por aí, seduzindo e atormentando os viventes, revelando os encantos e também as mazelas de uma sociedade. (...) Este livro termina com um convite às novas gerações de brasileiras e brasileiros e àqueles que estão vindo por aí: conversem com os mais velhos, escutem histórias, anotem o que for interessante.”

 

livro "Bestiário Brasileiro: Monstros, Visagens e Assombrações"

reprodução


Leia, a seguir, a entrevista de Simas ao Pensar.

 

O que mais o fascina nesse tema de seres fantásticos?
A que mais me fascina é a do bestiário urbano. Esse bestiário rural, até falo dele, mas ele é mais conhecido, mais falado. A gente tem a tendência a achar que a urbanização matou o monstro, mas ela só redefiniu essa relação. Bebê Diabo, Loira do Banheiro, Fantasma do Lado da Segunda-Feira, teatros mal-assombrados nas cidades, o Velho do Saco, a Mulher da Capa Preta, as Assombrações Urbanas do Recife, Galega do Cemitério.


Na ordem do livro, começo pelo bestiário rural e vou indo para a cidade. Tem uma transição que é com a Comadre Fulozinha, com o Come-língua. Outra coisa que eu quis fazer e foi muito complicado foi evitar concentrar o bestiário em determinadas regiões do Brasil apenas. Você vê que ele passa pelo Centro-Oeste, por Mato Grosso, Goiás; vai para o Maranhão, Amazônia, Rio de Janeiro, São Paulo, vai para o Sul, com os índios guaranis. Teve uma preocupação de fazer uma espécie de painel.

 


Tem muito mais. Dá para botar mais 300 assombrações, porque é muito impactante esse bestiário brasileiro. Optei, em alguns casos, colocar assombrações que estão morrendo, que as pessoas não falam mais nelas. Pouca gente ouve falar da Onça Cabocla; nem todo mundo conhece o Vereiro Encantado do Piauí; o Fantasma do Poço Redondo, que é uma assombração do Cangaço pouco conhecida; o Come-língua. É uma tentativa de mapear os monstros, visagens e assombrações.

 

O subtítulo do livro é “Histórias como foram ouvidas por Luiz Antonio Simas”. Existem diversas versões?
Sim! É por isso que eu tive o cuidado de nem me colocar como Luiz Antonio Simas. São histórias que fazem parte do imaginário popular como eu escutei, como eu conheci, porque esse campo está muito ligado à tradição oral. Na oralidade tem várias versões sobre o mesmo mito, sobre a mesma história.


O (Luís da) Câmara Cascudo, por exemplo, dizia que ninguém vê um fantasma da mesma maneira. A gente pode até ver o mesmo fantasma, mas eu vou enxergar aquele fantasma de uma maneira, você vai enxergar de outra. Então existem versões diferentes sobre o lobisomem; sobre a mula sem cabeça; sobre o homem do saco; sobre a loira do banheiro; sobre as cantoras que aparecem em teatro de ópera, cantando depois de mortas.


É extraordinário que nesse campo do fantástico seja marcado pela oralidade. É que nem aquele jogo de criança em que você soprava uma frase no ouvido de uma criança, que soprava no ouvido da outra, que quando chega na última a frase já mudou.


Por isso é que quis que o livro fosse apresentado como as histórias do bestiário brasileiro conforme eu escutei. Boto uma série de referências de leitura no final, desde o Padre Anchieta, passando pelo Câmara Cascudo; Gilberto Freyre; Daniel Munduruku; Frederico Pernambucano de Mello, que fala muito do cangaço; Basílio de Magalhães; Ferreira Gullar, faço essas referências, mas prioritariamente são histórias relatadas como elas me chegaram. Tem coisa que é a lembrança como escutei da minha avó, do meu avô.

 




O nosso bestiário é violento. Você tem filho que mata mãe, gente que morreu assassinada, gente que foi degolada, tem de tudo. Tem a Ana Jansen, por exemplo, que cruza muito com o horror da escravidão.


Os monstros são muito atuais, eles estão aí! Um monstro urbano hoje poderia ser o monstro dos boletos. Você não sabe quem manda, quem entrega, aqueles boletos aparecem para você. As assombrações continuam. A gente vive o tempo todo assombrado, acossado.


No livro, o senhor diz que a obra é voltada muito ao jovem que fica no celular, no computador, no videogame. Esse mundo já tem monstros também?
Tem vários! Não vou virar e falar pra você 'larga'. É pra mostrar também que você pode ampliar o seu repertório. O horror se renova o tempo todo e é bom porque mostra que o mundo continua, em alguma medida, encantado.


A gente está tão acostumado pelo desencanto de uma vida corrida, individualizada, muito tragada pelo mercado de trabalho e esse espaço do fantástico, muitas vezes, é esquecido.


Para enxergar as assombrações, você precisa olhar. Hoje as pessoas estão tão grudadas na tela que, se bobear, vai passar uma assombração perto de você e você não vai estar nem aí para ela. Não é só o jovem não! A gente tem a mania de dizer que a criança fica vidrada em tela de celular, mas está todo mundo.


Por isso eu digo, as assombrações nascem e elas podem deixar de existir, porque se não tem mais ninguém que acredite nelas, elas não existem.


Como esses monstros e seres impactam na nossa cultura, no nosso dia a dia?
O ser humano, desde a alvorada da humanidade, tenta entender as coisas. Às vezes quando a gente não consegue encontrar uma explicação racional para aquilo, a gente busca outra explicação. Eu cresci ouvindo dizer que não podia deixar o chinelo virado porque atraía a morte para casa.

 


A gente tem que lembrar também, nessa questão de impactar a cultura, que existe uma certa “pedagogia do medo” que marca diversas sociedades. O medo é um agente controlador social. Tem muitos mitos vinculados ao fantástico que demonizam a mulher que foge daquele comportamento normativo que sociedades patriarcais querem que a mulher tenha. É a mulher que trai e, por conta disso, vira monstro. É a mulher que vai se relacionar com padre e pode virar mula sem cabeça, nunca é o padre que é a vítima. O padre foi tentado pela mulher. É sempre a mulher.


Você tem mitos reguladores do comportamento da criança. Aqueles fantasmas que impactam a criança para que ela coma, durma, para que não seja malcriada com a mãe. Olha quantas assombrações que são crianças que desobedecem às mães e acabaram virando monstros terríveis, o Romãozinho, corpo seco. O imaginário é um sintoma da sociedade. É impressionante ver que os monstros têm uma função social ligada à organização da sociedade.

 

 

Qual é a relação do brasileiro com o Halloween?
O Halloween é, sobretudo, um elemento da cultura norte-americana, de fundamento anglo-saxão, a questão do Dia das Bruxas é uma imagem que a rigor não faz parte da formação cultural do Brasil, mas, ao mesmo tempo, não adianta ficar apostando em pureza porque é um fenômeno do Brasil, a partir de uma época, sobretudo do século 20 é uma aproximação com uma cultura de massas que é muito vinculada ao imaginário norte-americano.


Isso está ligado a maneira como as pessoas se vestem, as músicas que as pessoas escutam, a gente tem um contexto de guerra fria que o Brasil foi alinhado aos Estados Unidos, e os Estados Unidos adotam uma política de exportação de elementos da cultura norte-americana, como cinema, música.


Você tem um certo imaginário do Brasil urbano que pela música, pelo cinema, por tudo isso, vai ser muito impactado pelas influências vinculadas à cultura norte-americana. Acho que o Halloween vem nesse bolo. Que está ligado a Hollywood, ao cinema de entretenimento, num bolo que está ligado a esse padrão cultural norte-americano que acaba impactando no processo de urbanização do Brasil.


O Halloween vem nesse bojo de uma cerca classe média, uma certa classe mais abastada, que vai ter conexões com esse imaginário norte-americano, com essa estética hollywoodiana, com esse negócio todo. O Halloween acaba sendo um fenômeno bem recente e é um sintoma dos impactos desse processo de estadunização de elementos da cultura urbana brasileira.


No fim das contas, são referências que não fazem parte do processo da nossa formação cultural e isso impacta. Até porque o Brasil tem um imaginário fabuloso de visagens, assombrações e monstros que é riquíssimo. O imaginário afro, indígena, que tem referências de uma cultura europeia, marcadamente portuguesa, ibérica... Evidente que quando você tem um fenômeno de uma cultura de massas muito impositiva, do ponto de vista do mercado, traz problemas muito sério e impacta nosso processo cultural.


Acho particularmente uma pena, um negócio terrível. Você vai perdendo referências culturais importantes para a formação daquilo que a gente imagina que sejam os campos das brasilidades em nome de um fenômeno muito marcado por uma ideia de expansão da cultura como bem de mercado. Em relação à cultura brasileira, que é riquíssima, você não vê com tanta intensidade.

 

O senhor cita no livro os vikings e os samurais, mas temos muitas referências estrangeiras, como celtas e até de povos indígenas americanos. Por que isso acontece?
É um fenômeno que marca uma certa dificuldade até para a gente pensar a identidade cultural brasileira. De certa maneira, você tem um certo Brasil que não só não conhece, como também não gosta dessa brasilidade. O processo de urbanização do Brasil foi muito impactante e ele é recente.


Neste processo, a dificuldade do Brasil em se pensar, se projetar nele mesmo, naquilo que ele tem de fabuloso, naquilo que ele tem de horroroso. O Brasil é um país com dificuldade de se encarar, para o bem e para o mal. Nós temos um processo histórico muito complicado, mas acho que essa dificuldade da gente fazer um mergulho na brasilidade é difícil.


Esse livro faz parte de uma preocupação mais ampla que eu tenho, que é o que eu chamo de brasilidade, que é entender as referências que formam a nossa cultura. As nossas maneiras de brincar, festejar, celebrar, dançar, cantar e, por que não, os nossos medos, nossos assombros. Você conhece uma cultura por aquilo que ela teme e o repertório brasileiro nesse aspecto é vastíssimo. É um livro com uma pegada que é para leitores de todas as idades, mas é uma tentativa de apresentar esse panorama amplo de uma forma bem-humorada, uma forma que diz "isso faz parte da cultura brasileira".

 

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Esse livro tem uma preocupação que é trazer esse imaginário também para as chamadas assombrações urbanas. Você tem muitos registros das assombrações do Brasil rural, mas você tem um processo de urbanização que traz suas assombrações, visagens, monstros, seus medos e esse livro tem essa preocupação de mostrar que o fantástico brasileiro não é exclusivamente fantástico. Você tem o fantástico que é urbano também.


Muitos dos seres mencionados no livro encontram similares na Argentina, Portugal, Espanha...
É uma questão que o livro traz. Como que tem um entrecruzamento entre culturas, mas terá particularidades brasileiras. Tem fenômenos que fazem parte da humanidade. Por exemplo, a humanidade lida muito mal com a morte. O que vai acontecer com os mortos? Os mortos continuam interagindo com a gente? A morte significa o completo desaparecimento? Os espíritos continuam?


Em diversas culturas, os mortos continuam interagindo com os vivos. Em culturas africanas, européias, asiáticas... o barato é que você tem elementos recorrentes em várias culturas, mas cada uma delas lida com isso de uma maneira particular.


A morte nos coloca diante do temor, receio, medo. É por isso que eu falo que nós temos os nossos monstros porque é importante ver que a nossa cultura também é marcada por isso. Boa parte dos seres retratados são de origem indígenas ou europeias e apenas o saci tem uma referência africana


O saci é meio cruzado entre uma questão africana e uma questão dos guaranis. Tem um elemento africano, que ainda não seja explícito, ele está presente em diversas assombrações. Por isso digo que ele está presente no livro. Para os povos africanos de forma geral, os mortos continuam o tempo todo interagindo com os vivos, continuam vivendo no seio da família, da comunidade. O monstro é aquele que é disforme. Que foge ao padrão de uma determinada sociedade é monstruoso. O que é monstruoso para uma sociedade pode não ser para outra. A visagem é aquela imagem extraordinária que de repente você vê.


A assombração é isso, mas é mais, muitas vezes não é visível. É a janela que bate, o vento que sopra, é o barulho esquisito. Então, de certa maneira, o nosso imaginário é rural e muito indígena, e é importante isso porque você vê que a presença do indígena na formação da cultura brasileira é importante.


É um imaginário europeu, mas é o tempo todo atravessado por essas percepções de diversas comunidades africanas de que a morte não é o fim, em hipótese alguma.

Essa mitologia africana com seres fantásticos não se faz muito presente na obra...
A mitologia africana que prevalece entre nós tem um aspecto, no processo de formação brasileiro, que é um pouquinho diferente. É um aspecto que ganha características, isso é muito bonito e sofisticado, no campo da religiosidade. Eu tive um cuidado enorme para não tratar as religiosidades africanas como elementos de um bestiário fantástico brasileiro. Você poderia falar de mitos ligados a orixás, inquices, mas é outro papo. Acho que temos que entender mesmo como práticas religiosas sofisticadas e que não ficam nada a dever a outras.


A rigor, quando a gente fala, por exemplo, da aparição de Jesus Cristo depois que ele levanta dos mortos. Morre na cruz, enterrado e aparece, uma cultura que não é cristã pode considerar a aparição de Cristo, a aparição de um fantasma, mas eu jamais faria isso. Eu tive cuidado.


O que é fantasma, monstro para uma cultura, para outra não vai ser. Por isso tive um cuidado muito grande para não tratar o complexo mítico africano que se expressa muito no campo religioso pelo viés do bestiário. A gente tem que tratar de uma questão mais ampla que é vinculada às histórias das religiosidades, como as cosmogonias indígenas, as divindades e outros. A gente tem que ter discernimento para entender o que a gente está chamando de monstro, visagens e assombrações


Existe um certo fascínio com a decapitação. Nestes seres fantásticos sempre têm alguém sem cabeça ou procurando uma cabeça. Por que isso é tão comum?
Isso, pra mim, tem a ver com uma certa tradição que algumas culturas têm de tentar entender a mente como algo desvinculado do corpo. É uma hipótese. Tem muitas culturas que acham que o corpo é uma coisa e a mente é outra. A cabeça está muito ligada a ideia do lugar do pensamento, lugar da reflexão, então é muito comum que você tenha o fenômeno da cabeça que se separa. Tem diversas, vai ter a Cumacanga que é a cabeça que se separa.


Em diversas culturas a forma mais comum de pena de morte, durante séculos e séculos, foi a decapitação.

 

O que te assombra no Brasil de hoje?
No Brasil de hoje, o que me assombra são os vivos. Às vezes a assombração é melhor. No Brasil de hoje, o que me assombra mais é quem está vivo. É um Brasil de intolerância, raivoso, desencantado, esse Brasil, te confesso, me assombra.


Falo isso muito com meu filho, que tem 13 anos, sempre digo 'quando ouvir um barulho de noite, na dúvida, sempre prefira que seja uma assombração, morto. Com a assombração você sabe lidar, já com o vivo a gente não sabe do que ele é capaz.

 

“Bestiário Brasileiro: Monstros, Visagens e Assombrações”
• De Luiz Antonio Simas
• Editora Bazar do Tempo
• 192 páginas
• R$ 84,00

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