“As relações de gênero e a problemática que elas implicam é que dão tom ao livro. Isso, naturalmente, envolve machismo, misoginia e homofobia. (…) Mas em última instância me parece que a história gravita menos ao redor das mulheres do que em torno da mentalidade patriarcal que as oprime. E eu tentei observar isso do meu lugar de homem hetero, é necessário lembrar”.

 

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Assim o escritor gaúcho José Falero define seu novo e melhor livro, que está sendo lançado em várias cidades do país neste fim de ano. Depois de “Vila Sapo” (contos), “Os supridores” (romance) e “Mas em que mundo tu vive?” (crônicas), que retratam situações diversas de desigualdade e injustiça social, “Vera” apresenta mulheres – entre parentes e amigas – sufocadas pela opressão social e pelo machismo.

 



 

Elas lutam para garantir a própria sobrevivência numa vila da Lomba do Pinheiro, comunidade abandonada pelo poder público na periferia de Porto Alegre. São as chefes de família, porque os homens, de uma maneira geral, estão ausentes ou são violentos. Na obra de Falero faxineiras, porteiros, motoristas, gente desempregada, explorados e “invisibilizados” pelas elites, ganham protagonismo. Mas longe de serem apenas vítimas oprimidas, são fortes e resilientes da forma que for possível contra a mentalidade patriarcal citada pelo autor.

 

Um mérito de “Vera” é o antagonismo de pontos de vista entre oprimidos e opressores, sem mera vitimização. Outro mérito é a linguagem coloquial dos personagens que arrebata o leitor pela realidade nua e crua. E em “Vera” eles são mais diversificados em relação às obras anteriores do autor.

 

 

“Vera” também mostra uma evolução narrativa de Falero, como a inclusão de ambientes naturais para compor, em tom poético e sofisticado, o drama cotidiano. “Um vento seco se instalara em Porto Alegre depois da última chuva, havia duas semanas, e por alguma razão misteriosa seguia a circular pelas ruas da capital gaúcha com a curiosidade de um turista. (...) Mas a beleza e a agradabilidade de um dia costumam ser proporcionais ao desgosto de quem se encontra impossibilitado de aproveitá-lo”.

 

Embora Falero, em entrevista ao Pensar, discorde da análise de que seu novo livro escancare os muitos abismos no Brasil (machismo, misoginia, homofobia, opressão social e repressão policial), eles estão presente na obra como microcosmos. Estão latentes em várias situações: o porteiro casado que quer fazer sexo com a faxineira no prédio onde trabalha e trata a esposa como empregada e a espanca; os policiais que agridem o adolescente que fuma maconha; o desdém de um supervisor com os subordinados e com as mulheres; o adolescente ridicularizado pelos amigos por ser gay. As relações de gênero levam inapelavelmente a outras mazelas inerentes ao contexto social, como o próprio autor destaca.

 

Vera, que dá nome ao livro, trabalha num apartamento de luxo. Enfrenta longas caminhadas e ônibus lotados, principalmente, para sustentar, numa moradia miserável, o filho, Vanderson, que vive nu porque não tem o que vestir. Enquanto o menino implora à mãe para levá-lo ao circo e fica “hipnotizado” pela TV usada que ela ganhou, Vera sofre assédio implacável de Marcelo, porteiro do prédio no qual trabalha, e de Petersen, o marido da patroa. Assim como as demais mulheres da comunidade, está sujeita a todo tipo de abuso, como dentro de coletivos superlotados.

 

Outro microcosmo em “Vera” representa a repressão policial. Há apenas uma passagem nas 300 linhas do livro, também intricada com relação de gênero. Diego e Davi são flagrados por policiais fumando maconha na praça. Um escapa e o outro é abordado e agredido. E quem acaba com o abuso é a determinada dona Delci. “Mas então tô louca, então, que vão abusar do meu neto! (…) Este guri aqui foi tu quem pariu, por acaso? (…) Dois machão, né? Olha aí, minha gente, dois machão. Mas acontece que de arma na mão até eu sou machão”, diz ela aos incrédulos policiais.

 

“Atacados em sua masculinidade, por fim, eles trataram de guardar os revólveres, balançando a cabeça e deixando-se cair num silêncio de constrangimento mal disfarçado”. Indagados pelo adolescente se pode ir embora, vem a resposta: “Vai, vai, vai, leva essa véia louca daqui, pelo amor de Deus!” Uma cena tragicômica explicitada pela verve literária do autor, que mostra a vitalidade das personagens femininas.

 

A força da obra de Falero vem da sua própria origem. Isso faz a diferença. É ficção e, ao mesmo tempo, realidade entre mundos em contraste. “Como escritor profissional tenho circulado em espaços de poder os mais variados, desde tribunais a universidades, passando pelas feiras e festas literárias. Consegue imaginar o que é isso pra uma pessoa como eu, que veio de onde eu vim? O contraste entre o mundo de onde vim e o mundo onde circulo é assustador, e não poderia ter outro efeito em mim senão um aumento da minha indignação”, diz o escritor.

 

“VERA”


De José Falero
Todavia
304 páginas
R$ 69,90 (livro)
R$ 49,90 (digital)


Lançamento em BH: Dia 17/12, às 19h, na Livraria Jenipapo, Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi, dentro do projeto República Jenipapo

 

ENTREVISTA

 

Nos seus três livros anteriores, os homens são os protagonistas. Agora, em “Vera”, as mulheres assumem o protagonismo com contundência, em contraponto ao machismo exacerbado de quase todos os homens? Você sentiu necessidade dessa guinada feminina para expor essa realidade opressora que está dentro das casas, das empresas e nas ruas, inclusive do ponto de vista dos homens? Houve cobrança de leitoras?


Se a gente pensar somente nos personagens-pessoas, digamos assim, é correto dizer que nesse meu novo romance as mulheres têm maior protagonismo do que os homens; especialmente a Vera, que inclusive dá título ao livro. Mas em última instância me parece que a história gravita menos ao redor das mulheres do que em torno da mentalidade patriarcal que as oprime.

 

As relações de gênero e toda a problemática que elas implicam dão o tom desse livro, e eu tentei observar isso do meu lugar de homem hetero, é necessário lembrar. Evidentemente tentei desenvolver um olhar crítico em torno disso, e não um olhar propagandeador, mas ainda assim é um olhar de homem hetero.

 

Não houve cobranças das leitoras. Não que eu saiba. Mas, de todo modo, se tivesse havido, não me sinto inclinado a levar em consideração a opinião de quem acompanha o meu trabalho. Isso, inclusive, em respeito a essas pessoas. Nada me seria mais fácil do que aproveitar as minhas publicações para observar o que funciona e o que não funciona com o público e, então, deduzir daí uma fórmula, uma maneira de escrever que tivesse mais chances de agradar todo mundo, ou a maioria das pessoas. Não quero fazer nada parecido com isso.

 

Me cheira a suborno. Quero escrever o que faz sentido pra mim, quero escrever coisas que eu considere relevantes, quero escrever livros que atendam ao meu gosto estético. Os leitores e as leitoras ficam livres para ler se quiserem, se acharem que a proposta faz sentido. Não quero inverter a ordem das coisas, entende? Pra mim, a ordem correta é esta: eu escrevo coisas que me dão vontade, depois as pessoas leem e ou gostam ou não gostam. Não gosto da ideia de inverter isso.

 

O gosto dos leitores não pode vir primeiro, isto é, o que eu percebo que as pessoas gostam não pode determinar o que eu vou fazer em seguida. Afinal, sou um artista e não uma franquia de fast food. Mas preciso dizer que Dalva, minha namorada, ela, sim, me influencia muito. Inclusive, a concepção e o desenvolvimento desse novo trabalho não seriam possíveis sem a minha convivência com ela. Mas mesmo a influência da Dalva sobre mim não se opera de forma simples ou rasteira; não é uma mera cobrança. A convivência com ela, dia após dia, vai transformando o meu modo de pensar e de ver o mundo, ao ponto de, depois, isso refletir nas minhas escolhas de elaboração ficcional.

 

Entende? É claro que Dalva chamou a minha atenção pro fato de que as personagens mulheres eram pouco frequentes em tudo que eu tinha escrito até então, e que as poucas personagens mulheres geralmente ocupavam papel secundário. Mas se tivesse sido só isso, eu não teria escrito esse livro. Na nossa convivência, os debates sobre as relações de gênero são longos e diários. Foi isso que fez a diferença.

 

Além do machismo, a misoginia também está presente no livro, e também do ponto de vista dos opressores, como o desrespeito manifestado pelos personagens Marcelo, Charles e Diego. E a homofobia corriqueira, no caso de Davi, pressionado para ser macho. Mais do que nos outros livros, “Vera” desnuda, “numa tacada só”, grandes “abismos” da sociedade brasileira: machismo, misoginia, homofobia, opressão social, repressão policial... Foi difícil esse processo de criação, denunciar tantos preconceitos e discriminações numa obra literária?

 

Eu não concordo que o livro aborde todos esses temas que tu citou. Conforme eu disse na resposta anterior, acredito que as relações de gênero e a problemática que elas implicam é que dão tom ao livro, ao meu ver. Isso, naturalmente, envolve machismo, misoginia e homofobia. Outras coisas que eventualmente apareçam são claramente secundárias, estão fora do foco.

 

Farei uma pequena analogia para ilustrar o que eu quero dizer. Se eu te conto uma história sobre um galo que atravessou uma rua de terra para encontrar a sua amada galinha, não seria correto dizer que é uma história sobre a rua de terra. É uma história de amor. A rua de terra não passa de um mero detalhe de ambientação. Assim também acontece no meu romance.

 

É uma história sobre relações de gênero, mas boa parte dessa história se desenrola na periferia, com personagens que vivem na periferia, e nesse ambiente a opressão policial e a precariedade das coisas, por exemplo, estão sempre presentes, fazem parte do cenário, digamos assim. Eu acharia muito equivocado escrever uma história que se passa na periferia sem trazer esses elementos para compor o quadro, mas a história em si nem de longe desenvolve esses assuntos.

 

Você faz sutil analogia com tomates para denunciar a injustiça social: “O tomate que Lúcia picava [no fundo de um beco] tinha a metade inferior verdolenga e uma série de machucados marrons em cima, ao redor do umbigo; já o tomate que Vera picava, pago com o dinheiro da patroa mas escolhido pela própria Vera numa supermercado de alto padrão (…) era tão perfeito, mas tão perfeito, que picá-lo daquela maneira inspirava certo dó na empregada (….) parecia tão errado reduzir a pedaços algo tão vistoso, de proporções tão harmônicas, de vermelho tão uniforme.” O fato de ter se tornado escritor te deixou mais perspicaz e indignado com as mazelas do país?


Eu diria que é o contrário. Acho que o fato de eu ser tão indignado com as injustiças é que faz de mim o escritor que eu sou. Mas também precisamos pensar o que significa “ser escritor”. Uma porção de significados me ocorrem, mas aqui, para a nossa pequena conversa, vamos considerar apenas dois sentidos possíveis:

 

1) pessoa que escreve e 2) pessoa cuja profissão é escrever. No primeiro sentido, pessoa que escreve, não sinto que a condição de escritor tenha me tornado mais indignado com as injustiças, como já respondi. Mas algo parecido com isso que tu propôs aconteceu, sim, se considerarmos o segundo sentido, pessoa cuja profissão é escrever.

 

A condição de escritor nesse sentido específico fez, sim, crescer a minha indignação com as injustiças. Porque como escritor profissional tenho circulado em espaços de poder os mais variados, desde tribunais a universidades, passando pelas feiras e festas literárias. Consegue imaginar o que é isso pra uma pessoa como eu, que veio de onde eu vim? O contraste entre o mundo de onde vim e o mundo onde circulo é assustador, e não poderia ter outro efeito em mim senão um aumento da minha indignação.

 

Após quatro livros em que os protagonistas não são milionários, viajantes, intelectuais, gente bem-sucedida, nem mesmo gente de classe média, são faxineiras, porteiros, desempregadas, quem que não tem o que comer e o que vestir, como tem sido a recepção do público em geral? De surpresa, indiferença ou naturalidade? Afinal, é o Brasil real, não dá mais para falar em pessoas “invisíveis”.


A recepção do público têm sido muito diversa, mas vou destacar as três reações mais comuns. Os meus leitores com origem e experiência social parecidas com as minhas de modo geral gostam do meu trabalho. Se identificam. E é uma identificação que vai do conteúdo à forma, desde os temas que abordo até as escolhas mais estéticas do que políticas.

 

Já os meus leitores de classes mais confortáveis parecem se dividir em dois grandes grupos, cada qual reagindo ao meu trabalho de maneira diferente. Um desses grupos é de leitores que parecem encontrar no meu trabalho a oportunidade de ter uma noção de experiências sociais completamente afastadas das deles, o que de modo geral parece provocar um misto de interesse e espanto; já os leitores do outro grupo parecem inclinados a considerar o meu trabalho apenas de uma perspectiva sociológica, reconhecendo nos meus livros alguns valores dessa natureza, como, por exemplo, a denúncia das injustiças ou a apresentação de personagens e circunstâncias historicamente invisibilizados, mas sem considerar a dimensão estética do meu trabalho, isto é, o meu esforço de dar boa forma às coisas que eu escrevo, para além da escolha dos assuntos.

 

“Respeitável público”, diz o apresentador do circo, expressão que intriga Van e é explicada por Vera: “Ele está querendo dizer que a gente merece respeito” A miséria é tão grande que precisa-se de pouco para ser feliz na visão do pequeno Van: a sobra de comida da casa da patroa rica, uma peça de roupa para vestir, um aparelho de TV usado, um espetáculo de circo, um banheiro dentro de casa ou um ou pouco de terra para escavar como um arqueólogo. Na sua visão, por onde começa a solução para pelo menos reduzir “abismos” e garantir respeito à dignidade das pessoas? Pelo berço, pela educação? É insolúvel?


Eu sempre cito aquela famosa frase do Darcy Ribeiro: a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto. Pois é. Acontece que esse não é o nosso único projeto. Nosso país, tal como se apresenta hoje, é o resultado de muitos projetos, cada qual mais terrível do que o outro: são projetos racistas, patriarcais, homofóbicos, elitistas. Começo a te responder de uma perspectiva bastante abstrata: precisamos de novos projetos de país. Projetos inclusivos.

 

Projetos que sejam inegociavelmente contrários às tradições cruéis e desumanas que nos trouxeram a este contexto terrível. Na prática, só podemos alcançar isso através de políticas públicas. As ações afirmativas foram uma ótima iniciativa, mas precisamos de muitas outras iniciativas no mesmo sentido. Precisamos abolir a escala de trabalho 6x1, por exemplo.

 

O contexto de injustiça e de violência no Brasil é um problema gigante e complexo; um nó que nem na mais otimista estimativa poderia ser totalmente desfeito sem que com isso se gastem alguns séculos. E é por isso mesmo que precisamos começar já, elaborando e implementando políticas públicas não só visando esse longo prazo que o problema como um todo demanda, mas também medidas paliativas que possam melhorar a vida das pessoas imediatamente.

 

Trecho do livro

 

“Inquieta, Fátima cabeceou discretamente e fez pequenos gestos com as sobrancelhas, mas Vera, não entendendo nada, obrigou-a a sussurrar pelo canto da boca:

 

– Em pé, ali adiante, tá vendo...? De camisa laranja... Tá vendo...? É o nojento que esfregou o tico em mim.

 

Quando Vera por fim compreendeu a situação, foi instantaneamente contagiada pela inquietação da amiga. E, olhando de maneira disfarçada na direção que Fátima tinha indicado, sentiu o coração disparar, pois com efeito viu, no meio da massa compacta de passageiros, parte de um torso inconfundivelmente masculino metido numa regata laranja. O que mais a assustou, contudo, não foi a simples presença do sujeito logo ali, a dois ou três passos dela, e sim o fato de que, conforme o ônibus sacolejava e as pessoas mexiam, vez ou outra era possível vislumbrar o rosto barbudo e perceber que o homem ora olhava para baixo, como se observasse o próprio pênis, ora espiava ao redor, como se procurasse certificar-se de que ninguém se dava conta do que fazia. (…)

 

– Pega o tarado! – gritava Vera, apontando o dedo. – Olha ali, tá com o tico de fora! Tarado! Sem- vergonha!”

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