Gustavo Silveira Ribeiro

Especial para o EM

 

O tempo é elemento essencial da poesia. Distribuído em pequenas e regulares porções, ele se materializa no tecido do texto como ritmo. Aberto e variável, voltado para trás, o tempo confunde-se com a memória – e a memória é a zona de irradiação da poesia. Fixar o tempo presente (com num retrato elaborado) ou o instante que passa (como num flash) são tarefas ou atributos da poesia.

 

A própria imaginação do futuro, que a poesia às vezes encampa a partir da profecia ou do pensamento utópico, é um modo de configuração da temporalidade no discurso poético. Todos esses sentidos, e muitos outros mais, da relação entre poesia e tempo ocupam lugar central no mais recente livro do poeta e artista visual João Bandeira, “E depois também” (Círculo de Poemas/Fósforo, 2024), que ganha lançamento neste sábado em Belo Horizonte.

 




O título já informa isso: “e depois também” diz respeito, no seu arranjo coloquial, ao que virá, matéria e passagem. Verso final do poema “Dois”, a expressão é ainda uma promessa de continuidade e duração (logo, e paradoxalmente, de estabilidade e fixidez) que fala do amor; mas ela pode igualmente assinalar a inscrição agônica, no coração do livro, na disputa entre dispersão e conservação – efeitos e sentidos fundamentais do tempo.


A experimentação, traço fundamental da obra poética do autor, dá as caras logo de saída, mas não há predomínio do elemento visual sobre o verso, como ocorre em algumas seções dos seus outros volumes. A poesia de invenção aqui equilibra-se entre demandas lírico-expressivas e busca soluções estéticas diversas. Liga-se agora ao impulso de captar (e talvez de responder) as urgências do tempo presente, afinando-se em chave antes de tudo afetiva e política.

 

 

O primeiro poema do livro, anterior, por assim dizer, ao próprio livro, é uma peça visual impressa na parte interior da capa que envolve o miolo, “Tongue”. Nele veem-se cinco maçãs distribuídas em sequência por cores (verdes, amarela, vermelhas), por sobre as quais, na pele da fruta, foram escritos – o mais correto seria dizer escavadas – as palavras “thy tooth teaches my tongue”, uma em cada maçã.


O verso (‘teu dente guia a minha língua’) e a configuração imagética, sonora e cromática do poema remetem à relação entre erotismo e escrita, um componente recorrente em “E depois também”, bem como fazem referência à linguagem publicitária e ao mundo do consumo – é essa a linguagem, mais do que nunca, do nosso tempo de algoritmos e clicks. As maçãs e o texto oferecem-se, sedutoramente, ao leitor-consumidor: a simetria e as aliterações têm papel decisivo aqui. O tempo parece não incidir sobre as frutas, fotografadas contra um fundo branco, no presente eterno da linguagem artificial da propaganda, contrastada, em certa medida, pela opacidade do verso em outro idioma.

 

 

O paradoxo que se forma é significativo para compreender a poética que o livro delineia, feita de oscilações e tensão. O poema seguinte, o primeiro posto nas páginas do livro, é também uma fotografia. Nela o autor empilha livros antigos e novos para formar, com os seus títulos impressos nas lombadas, um poema-montagem que descreve, em tom de ameaça nebulosa (“o mal ronda a terra/sobre todas as coisas/o instante contínuo/sombrio ermo turvo”), um retrato da época em que foi composto, os últimos anos do governo Bolsonaro, anos da pandemia – datação que alguns outros versos deixam perceber: “o inominável/inimigo do povo/boca do inferno”.

 

O casuístico do ready-made aqui obedece lógica diversa: é construto antes de ser descoberta, mas quer dizer de um certo espírito do tempo. Até os objetos comuns querem dizer algo sobre tempos de exceção.


A passagem pela política é um dos modos de assumir a condição inescapavelmente temporal, a condição histórica, do discurso poético. E a política atravessa, ora discreta, ora mais direta e literal, boa parte dos poemas do livro. Mesmo quando voltam-se para o passado e a memória, num percurso francamente lírico, como em “Sentido Tijuca” – uma recriação inventiva da tópica clássica do ubi sunt que pergunta, ao longo das estrofes, onde estarão os carros (e não necessariamente as pessoas) vistos na infância, presos na lembrança – os poemas não permitem esquecer a história e os conflitos sociais.

 

A mesma Tijuca, bairro tranquilo da classe média carioca dos anos sessenta, de onde os carros seguiam “buzinando em coro uníssono na lembrança”, não era apenas isso. O texto assinala, a partir da evocação pelo sujeito poético de uma “porta entreaberta do meu entendimento”, que naquele mesmo espaço pacífico ficava a sede do DOI-CODI, uma das moradas da tortura e do terror nos anos da ditadura civil-militar.


Não é só a memória traumática, mas as crispações do presente infiltram-se também na trama rítmica e conceitual dos poemas, seja no paródico quase-soneto “Laive”, que reflete ironicamente sobre a péssima representação dos indígenas através das épocas – representação estética colonial e representação política autoritária –, seja no longo poema “Lá no morro”. De resquícios épicos e reminiscências drummondianas (uma de suas referências, para além do citado “O recado do morro”, de João Guimarães Rosa, é o poema meditativo e peripatético “A máquina do mundo”) a peça apresenta, em versos livres quase sempre longos, a rememoração de uma viagem ao interior montanhoso de Minas, paisagem do “sem fio da literatura” rosiana, dos mistérios do interior da terra e do espaço sideral, território da cultura popular, mas também da atividade mineradora.


Em meio a uma experiência imersiva, deslocamento meditativo pelo espaço (“anônimo ali me distraí de mim/viagem na viagem/imerso em alguma promessa recolhida ou/desde sempre extinta”), o sujeito está disposto a acolher o dado transcendente que parece estar prestes a se revelar em meio ao cotidiano calmo. A recolha e o comentário (às vezes afetuoso, às vezes distanciado e quase irônico) das falas e dos pequenos movimentos dos moradores do local acrescentam uma dose de lirismo ao conjunto, o que vai, no entanto, ser contrastado violentamente com a notícia avassaladora do rompimento da barragem de Brumadinho (“bruma espessa estendida sobre o suave nome local”), que varreu do mapa toda uma região: “o entornar de lama suja represada/afogando tudo que respira pelo caminho”.


A escavação da memória pessoal e familiar pelo poeta revela um conflito da mesma natureza. O que parece idílico e mesmo apaziguador – a visita às terras de origem da mãe e dos avós – traz à tona o vazio, salientando a “imagem inexistente na caixa de fotografias” e a descendência futura (a que veio dar no próprio poeta) “que pouco cuidou de juntar gentes e louças”. Tudo conflui para uma meditação consequente e melancólica, ainda que realizada em tom menor, sobre si e sobre o tempo.

 

O amor, os momentos de intensidade epifânica das viagens, a contemplação fugaz do bem-te-vi ou da folha que se levanta para receber o orvalho – tudo isso em que toca uma ponta de desejo e contém certa força erótica (as meninas que “marulham/o dia/que escoa”) serve como anteparo à dissolução que cresce ao redor, e complexifica a imagem que o conjunto do livro oferece. Ainda que nela persista uma interrogação negativa do tempo, o halo dos fantasmas, nem tudo se perde. O instante da beleza, matéria da poesia, persiste.

 

GUSTAVO SILVEIRA RIBEIRO é professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFMG, docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PosLit, da UFMG. Editor-chefe do periódico “O Eixo e a Roda”, da UFMG. Um dos editores da Ouriço, revista de poesia e crítica cultural.

 

Capa do livro "E depois também"

arquivo

 

“E depois também”
• De João Bandeira
• Círculo de Poemas/ Editora Fósforo
• 40 páginas

• Lançamentos em Belo Horizonte neste sábado (23/11), às 13h, na Livraria Quixote, em bate-papo do autor com Gustavo Silveira Ribeiro e leituras de Ana Martins Marques, e na próxima segunda-feira (25/11), às 10h, na Faculdade de Letras da UFMG, no evento “Poesia e experimentação hoje”, em leituras do autor com Carolina Anglada e Gustavo Silveira Ribeiro.

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