Graça Ramos

Especial para o EM

 

A escritora portuguesa Lídia Jorge escreveu “Misericórdia” para atender a um reiterado desejo da mãe, que lhe pediu um livro com o título-tema. A submissão resultou em escritura sobre a compaixão – sentimento tão raro nestes tempos de fereza aguda. O romance também rendeu uma deliciosa discussão a respeito de como escrever narrativas ficcionais.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia

 

Podemos pensar em espécie de coautoria ao ler as páginas do livro publicado em 2022, ganhador de sete importantes prêmios europeus, entre eles o francês Médicis Étranger. A ficção de Lídia Jorge nasce de relatos feitos por sua mãe, Maria dos Remédios, a um pequeno gravador, que resultaram em 40 horas de depoimento sobre sua vida em uma casa de acolhimento de idosos.

 



 

Na trama, quem assume o protagonismo é Maria Alberta Nunes Amado, mais conhecida por dona Alberti, que vive em casa semelhante, intitulada Hotel Paraíso, localizada em Portugal. No intervalo de um ano, entre 2019 e 2020, ela narra o dia a dia no hotel, o novo nome para lar de longa permanência de idosos. São setenta seres a compartilhar o período derradeiro da vida em uma instituição que os trata sem muito esforço de individualização.

 

Distante do universo de relatos concentrados em tratar dos dissabores finais de uma longa vivência ou de livros a romantizar o envelhecer, a navegação proposta por Remédios-Lídia inscreve-se no poder da resistência: na capacidade de ainda se revoltar com injustiças, na possibilidade de enamoramento, no exercício da empatia com a diferença, na luta por preservar algo de íntimo no espaço coletivo e, por vezes, no efeito disruptivo da alegria.

 

 

Naquele exílio, dona Alberti luta para se manter íntegra. Rabisca palavras com um lápis, sempre usando a mão esquerda; mantém a bolsa de pano, esconderijo de segredos, atada ao peito e o celular carregado, caso precise falar com a filha. Necessidade muitas vezes trazidas por outra personagem: a noite. Há dias em que o escurecer provoca muita ansiedade, esquecimentos – como no dia em que não se lembrou a localização da cidade chamada Baku e isso desencadeou uma madrugada de agonia. A noite ganha formas por vezes assustadoras, pode ter duração superior à dos relógios e está simbiotizada à solidão.

 

A personagem que fala em primeira pessoa também é uma escutadora singular. Acolhe outros e, especialmente, outras hóspedes, como dona Joaninha, que não sabe ler – e não pretende morrer sem aprender –, dona de forte poder erótico capaz de lhe possibilitar relacionamentos amorosos com companheiros internados. Na velhice, como na juventude, a chama de Eros nem sempre corresponde à flecha endereçada, sendo a protagonista-narradora envolvida em um desses jogos de sedução.

 

Ainda que fale das dificuldades inerentes aos corpos e mentes envelhecidos, limitados por quedas, quebras e lacunas cognitivas, a régua a dominar a narrativa está focada nas observações e ações da narradora. Personagem cativante, mãe solteira em tempos preconceituosos, dona de natureza forte e olhar atento ao mundo.

 

Tão atenta a ponto de ter tornado um globo terrestre em objeto preferencial, que ela se recusou a levar para a instituição de acolhimento por entender ser pertencente à morada originária. Dona Alberti sente falta dos cheiros da antiga casa, das plantas e da paisagem vista da janela. Lar deixado voluntariamente após uma queda limitadora de movimentos. Mas aceita o fato de tudo isso estar no tempo passado.

 

Durante as visitas da filha escritora, dona de olhos de vidro, dona Alberti a crítica por escrever romances difíceis, pouco lidos. “No conjunto, os teus livros são um vale escavado num deserto de gente pobre”, diz dona Alberti. A filha, nunca nomeada, indaga: “Então, o que me aconselha?”. “E eu pergunto, no teu caso, se tanto gostas dos desvalidos, porque não escolhes um desvalido notável?”, retruca a mãe.

 

 

Discussões sobre o escrever, o público que lê e os finais de texto em aberto se desenrolam a cada visita. O enfrentamento constrói-se afetivamente entre a leitora de formação mais conservadora versus a escritora de expressão contemporânea. Onde uma recua, a outra avança. Às vezes, a conversa endurece, a filha se retira, a mãe fica a soluçar. Em outra visita, aparam arestas e voltam ao tema para, novamente, se desencontrarem quanto à ideia de como escrever um romance.

 

O tema entre mãe e filha funciona à maneira das narrações de Scherazade, entretém a vida e despista a morte. Esse caráter de uma narrativa que se constrói no diálogo ganha reforço na estrutura do livro, feito como se fosse um diário datado, esse gênero textual por muito tempo vinculado à expressão feminina. As anotações das conversas expandem a compreensão da mãe sobre a filha e permitem mudanças de tom em encontros futuros.

 

Se dona Alberti defende a construção de um personagem “desvalido, mas notável”, a ironia positiva é ela expressar grande atenção, um olhar compassivo, para com os despossuídos do mundo atual, em especial os imigrantes – outro importante tema subjacente. Quase todos os funcionários da casa vêm de outros países, sobrevivem em condições difíceis e não possuem formação adequada. Na convivência, ela se torna conselheira de uma das cuidadoras, a jovem Lilimunde, brasileira de Marabá, no Pará, fascinada pelas comodidades tecnológicas do celular, pouco preparada para os embates da realidade.


Muitas personagens, inclusive masculinos, surgem ao longo do romance. São bem costuradas e com papéis organicamente estruturados. Contudo, à semelhança de outro romance da autora, “A noite das mulheres cantoras” (2012), o poder da narrativa concentra-se nas mulheres. Não se trata de uma escrita de inclinação feminista, como sugerem vários textos de Lídia Jorge. Em “Misericórdia”, o encadeamento das atitudes das personagens femininas soa mais como reconhecimento de modos de estar no mundo do que como denúncia.

 

As acomodações do Hotel Paraíso registram variedade grande de destinos. Alguns morrem à mesa enquanto comem, outros na cama, dormindo, e há quem organize fugas. O barulho das sirenes de ambulância avisa os habitantes da possibilidade de despedidas. Anúncio também de rotatividade de seres. Momentos que podem ser resumidos em um dos pequenos versos, a maioria de quatro estrofes, finalizadores de muitos dos capítulos: “Triste de tristeza/ contra a tua porta fechada, / a beleza – O belo foi-se embora não/ ficou nada”.

 

Junto a momentos brutais coexistem outros quase cômicos. Um desses é a invasão de formigas nos quartos dos internados, relato aproximado às narrativas do realismo fantástico sul-americano. Nada, porém, se compara à tensão da chegada de outro terrível inimigo, a exigir severas medidas de proteção e isolamento. Não está identificado, mas a descrição coincide com as medidas restritivas adotadas à época da pandemia de covid-19.

 

No real, a infecção causou a morte de Maria dos Remédios. Não cabe aqui “spoiler” sobre o destino de dona Alberti. Pode-se apenas assinalar serem emocionantes as páginas finais. Elas confirmam que Lídia Jorge transformou habilmente as memórias da mãe e fez de “Misericórdia” puro elogio à essência do ser.

 

GRAÇA RAMOS, mestre em Literatura e doutora em História da Arte, é autora de “O apagamento de Volpi: presença em Brasília” (Tema Editorial)

 

ENTREVISTA COM LÍDIA JORGE

 

Por Carlos Marcelo

 

Como era a relação da sua mãe com a sua atividade literária? Ela já havia feito um pedido tão direto como fez neste caso, sugerindo o título “Misericórdia”?


Como leitora, a minha mãe tinha os seus gostos e preferências que naturalmente nem sempre coincidiam com os meus. Mas, sendo uma leitora espontânea, sempre a escutei com atenção porque tinha intuição e, sobretudo, colocava-se na posição do leitor comum. A minha mãe era uma leitora de lápis na mão. Os seus sublinhados e anotações falavam por si.

 

Muitas vezes me diverti com os conselhos que colocava à margem. Devo-lhe esse envolvimento ao mesmo tempo crítico e afectuoso, para sempre. Mas o único título que me sugeriu, e que dadas as circunstâncias se tornou um pedido imperioso, foi sem dúvida “Misericórdia”.

 

O que mudou na sua visão sobre a iminência do fim da vida depois de testemunhar a experiência de sua mãe que a levou a escrever “Misericórdia”?


Fiquei a pensar que o fim da vida é simplesmente um episódio de vida. Fiquei a pensar que pouco se sabe sobre a vida se não se tem a experiência de acompanhar aqueles que vão deixar de viver. Fiquei a pensar que o mistério que envolve a nossa existência não encontra a resolução em silogismos lógicos. Reforcei a ideia de José Lezama Lima, o escritor cubano, de que o mesmo grito que se dá ao nascer é igual ao que se dá ao morrer.

 

Fiquei mais respeitosa pela existência humana no seu todo. Julgo ter compreendido melhor as várias fases da vida, desde o nosso nascimento, infância, juventude, até à maioridade. A forma como nos damos ao mundo, comanda o adeus que se dá. Sobre este assunto, o mais fundamental de todos, ninguém se pode gabar antecipadamente de nada, por isso espero não estar errada se disser que aprendi a ter coragem.

 

Qual foi a maior dificuldade em lidar com o tema?


A minha resposta foi literária. A maior dificuldade consistiu em ultrapassar a ideia de que a biografia de alguém tão próximo não deveria ser matéria de escrita para publicar. Sentia a experiência demasiado íntima, e receava que ao escrever sobre esta questão o meu livro fosse tratado ou como um simples desabafo ou como sociologia.

 

Eu queria que o que iria escrever fosse uma homenagem a um tipo de figura mas que fosse envolvida em forma artística. Isto é, a dificuldade consistiu em cruzar uma realidade agreste com um pensamento pacificador, e nesse cruzamento exigido pela arte, manter a pureza que a transfiguração exige.

 

O que mais a chamou atenção nos áudios e anotações deixados por sua mãe?


A sua capacidade de resistência, a sua consciência subtil de um percurso que mantinha a plenitude, a sua capacidade de envolvimento com a vida dos outros, a sua atenção ao mundo global, a sua noção de que se sentia uma cidadã de pleno direito. Para mim, foi uma experiência marcante. Ver uma pessoa com curiosidade pela vida até ao fim é muito forte.

 

A mesma curiosidade com que havia estudado o globo terrestre à sua maneira, era a mesma curiosidade com que espiava o que se passava em seu redor quando chegou a pandemia. Testemunhei como queria continuar a viver para perceber de que se tratava, se seria ou não o início do fim do mundo. Mas ainda o que mais me chamou a tenção foi ter feito da vida dos outros um elemento constitutivo da sua própria vida. Os outros eram parte de si mesma.

Como encontrou a estrutura narrativa do livro?


Desde o início o livro tomou a forma de um diário. Os materiais deixados encaminharam-me nesse sentido. Na verdade, fiquei a saber que os objectos que manteve consigo até ao fim foram os seus enfeites, brincos, colar, anel, e as pequeníssimas folhas onde ia tomando notas dos factos e dos pensamentos que lhe sobrevinham. Por vezes, apenas palavras soltas. Creio ter espelhado no livro a origem dessa estrutura.

 

A literatura, de alguma forma, ajuda a processar o luto?


Não encaro a literatura como um processo de terapia, por isso não estabeleço uma ligação directa entre a dor e a literatura. Mas a escrita deste livro, à medida que prosseguia, dava-me a ideia de que entrava num processo de triunfo sobre alguma coisa escura, abrindo caminho a um esplendor que ia para além das palavras, embora o meio para o atingir fosse o discurso.

 

De certa forma, esse é o processo da arte, que sempre lida com a oposição entre a destruição e a sobrevida. Quando cheguei ao fim, e ainda não sabia se “Misericórdia” era um livro para publicar, achei que tinha terminado uma tarefa indispensável e isso deu-me alegria.

 

Você declarou, em entrevistas recentes, que não quis escrever um livro sobre velhice, mas sobre a condição humana da resistência e da esperança. Esse foi o seu principal objetivo? Por que estabelece essa diferenciação?


Na minha perspectiva, distinguir os dois posicionamentos é fundamental. Escrever sobre a velhice conduz àquilo que é o relevo dos lados deformadores da existência. Veja quando se fala da velhice, como as pessoas ilustram esse estado com mãos cheias de rugas, manchas, rostos deformados, cabeças sem cabelo. Um desrespeito.

 

A velhice é um estado interior, são palavras, são sonhos, são arrependimentos, são rostos belos de encontro à luz do dia. Como ousam reduzir a velhice à representação do corpo? Em todas as idades o corpo oferece ângulos que não são belos.

 

Eu quis respeitar o íntimo dos seres humanos. No capítulo sobre as fotografias a que Dona Alberti recusa ser modelo, encontra-se bem explícita a razão por que preferi escrever sobre a resistência na velhice em vez de anatomizar os seus processos biológicos. Detesto essa abordagem. Ela faz parte da crueldade que atinge o nosso mundo.


Como o Brasil aparece no livro?


O Brasil aparece neste livro só a partir de uma das representações que o Brasil hoje em dia assume em Portugal e na Europa. O Brasil, para nós, são cidadãos que têm música mais contagiante que existe à volta da Terra, criativos, desenvoltos e ternos. A língua portuguesa que os brasileiros trazem para a Europa adoçam os nossos hábitos e a nossa vida.

 

Mas o brasileiro que chega a Portugal vem com o estatuto de imigrante. A personagem Lilimunde que entra nesta história é a segunda mais importante do livro. Ela é o espelho de dona Alberti. É a vida passada da protagonista deste livro, actualizada em Lilimunde. Coloquei nela tudo o que sei sobre a descrição de uma personalidade. Neste livro, a frágil Lilimunde representa a grande força do futuro.

 

Mas quando estava a escrever o livro, eu apenas ia criando em torno dessa jovenzinha uma síntese das jovens da sua condição que fui conhecendo ao longo dos últimos anos. Enquanto literatura, amo Lilimunde tanto quanto amo dona Alberti.

 

Do que leu de autores brasileiros, dos clássicos e dos contemporâneos, os que mais aprecia?


Resposta difícil. Desde a adolescência que me envolvi com os autores brasileiros. Como era natural, Jorge Amado, nessa altura, andava por todo o lado. Daí andei às arrecuas, e fui até “O Guarani”, de que passava uma novela na rádio. Quando o Guarani sumia na floresta, eu sentia uma pena de morrer. Depois, já na Faculdade de Letras, estudei os clássicos brasileiros, de Machado de Assis a José Lins do Rego, Guimarães Rosa, e todos os outros.

 

Não dá para enunciar. E, depois, vieram os meus amigos directos, Moacyr Scliar, Lígia Fagundes Telles, Nélida Piñon, todos já do outro lado do mundo, mas os seus livros estão na minha mesa. E, muito presentes, António Torres e Ignácio de Loyola Brandão, com quem me escrevo dia sim, dia não. E agora, os jovens escritores brasileiros! Encontro-os por toda a parte.

 

Portugal recebe-os bem. Os seus nomes são tantos, escrevemo-nos, falamos. Quando nos encontramos, rimos imenso. Não posso fazer uma pirâmide para dizer quais mais aprecio. A literatura brasileira é um tumulto bem-vindo.

 

Trecho

(De “Misericórdia”, de Lídia Jorge)



A minha filha disse – “Mãe, não posso responder positivamente às suas propostas. Sabe porquê? Porque eu não me sento à mesa daqueles que fazem a História, a cada um o seu lugar. Mesmo quando me aproximo dessa mesa, é para me sentar embaixo dela, encoberta pela toalha, sem que ninguém me veja, e fico entre os pés, ouvindo o que dizem e o que fazem os comensais. Registro sobretudo como caem no chão as suas migalhas, cheiro-as, avalio-as, trinco-as, como-as às vezes, para saber de que se alimentam os que participam do banquete, e como vivem de migalhas os outros, os que ficam às tenças dos seus actos e palavras. É aí que a sua filha se encontra, escondida, à escuta, debaixo da mesa. Uma espia da História, mais nada”.

 

“Misericórdia”
De Lídia Jorge
Autêntica Contemporânea
384 páginas
R$ 74,90

compartilhe