A Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 76 anos neste mês de dezembro. Próximo de ser octogenário, o documento escrito na ainda jovem Organização das Nações Unidas (ONU) é uma das principais manifestações em defesa dos direitos fundamentais humanos. Hoje, a mesma entidade responsável pela redação enfrenta o desafio de fazer valer o que foi escrito apenas quatro anos após a Segunda Guerra Mundial, período em que, como hoje, o direito à existência com dignidade foi desafiado.

 

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Próximo de ser octogenário, a história do pensamento por trás das bases do documento merece ser lembrada. É o que faz o historiador Rui Tavares no seu livro “Agora, agora e mais agora” (Tinta-da-China Brasil), uma coletânea de memórias do último milênio que foi publicada originalmente em formato de podcast pelo jornal português Público, em tempos da pandemia de Covid-19.

 



 

O português traça uma linha de raciocínio que, em primeiro momento, pode pegar o leitor desavisado, mas o fato é que o historiador foge do óbvio ao percorrer quase mil anos entre o ano 900 e 1948. Rui Tavares é ousado ao adentrar o que chamou de lado B da história, como bem descreveu na quarta memória, quando finalmente decidiu tentar revelar o tema do livro.

 

A ideia de fazer um livro sobre a história de ideias que não são dominantes vem dos discos de vinil, onde as músicas do lado B não eram as de maior sucesso, mas cresciam a cada audição. É nesse sentido que o autor abre as conversas com a história do filósofo muçulmano Al Farabi, o mesmo que hoje dá nome aos alfarrábios - livros velhos, ou de pouca importância. O pensador que possivelmente saiu de Sogdia em direção a Bagdad, uma das principais cidades do mundo na época, era um entusiasta do grego Aristóteles e recupera a ideia de que as pessoas são capazes de pensar a mesma coisa e, por tanto, se colocar no lugar das outras. Ele faz parte do que o autor chamou de “Iluminismo Perdido da Ásia Central”.

 

 

Esse é o pilar do “Agora” de Rui Tavares, também deputado na Assembleia da República de Portugal e fundador do Livres, partido de esquerda verde. Com o decorrer do milênio, essa ideia é desenvolvida por outros pensadores como Averróis, Dante Alighieri, Pico Della Mirandola, Thomas More, até Eleanor Roosevelt, primeira presidente da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Hoje, o intelecto ativo compartilhado é a base dos direitos fundamentais, mas o caminho até chegar no século 20 foi ameaçado pela polarização, pelo fanatismo religioso e pelo ódio.

 

Representação da Europa como mulher (1581)

Heinrich Bu¨nting/Reprodução

 

Sim, são ameaças comuns dos Direitos Humanos modernos, mas também são conceitos antigos. Antes de esquerda e direita, por exemplo, havia os guelfos e gibelinos. Antes da atual política neopentecostal ou o extremismo do oriente, havia a inquisição cristã. Antes da intolerância contra palestinos e árabes, houve o nascimento do antissemitismo francês com o caso Dreyfus. Tudo isso quase colocou tudo a perder, e ainda nos coloca no fio da navalha para regressar há uma época de terror.

 

Muitas pessoas passaram pela história desenvolvendo os pensamentos da dignidade humana, mesmo a custo de muito sacrifício, como mostra o livro. Mas se nós caminharmos para o regresso, ainda é possível salvar esses pensamentos? Rui Tavares assume o papel de otimista trágico e responde que sim: se tudo der errado, há espaço para voltar.

 

 

“É um pouco como alguns dos personagens que estão em ‘Agora, agora e mais agora’, às vezes eu leio os seus textos e ao considerar os seus gestos dá a sensação que alguns desses personagens sabiam que a porta estava a fechar, sabiam que seriam entaladas nesse fechamento e o máximo que poderiam fazer era passar um bilhetinho para o futuro esperando que alguém pudesse ver a sua mensagem, e isso é em grande medida fomos nós. Portanto, caso a porta se esteja a fechar, também esse será o nosso papel, deixar esse bilhete para o futuro”, declara o historiador ao Estado de Minas.

 

Confira a íntegra da entrevista de Rui Tavares ao Pensar

 

No livro, o senhor trata de uma pluralidade de temas que, mesmo se passando um milênio, são muito comuns atualmente. Qual foi o desafio de organizar tantas ideias?


Este é, talvez, o meu único livro de história em que escrevi como imagino que um romancista escreve um romance. Eu escrevi aquilo que tinha vontade de escrever e na sequência em que eu tinha vontade de escrever, claro que sempre trazendo uma certa consistência de temas e de perguntas que acaba por ser o vício do historiador, que às vezes faz textos mais monográficos e tenta fazer as coisas mais organizadas.

 

Eu tento compensar esse lado do livro que é quase um certo fluxo, quase como se fosse um rio em que a imagem que vai aparecendo, com uma estrutura que é muito clara. São seis memórias de cinco conversas cada e com um epílogo que também tem, mais ou menos, o mesmo tom. Portanto, são sete livros que de certa forma são os meus sete pilares da sabedoria.

 

O tema é como uma ideia para se firmar na consciência coletiva tem que nascer muitas vezes. Todo o livro é atravessado pela ideia de dignidade humana, a ideia de direitos humanos, e a ideia de que todos os humanos partilham, de certa forma, a mesma mente, que toda inteligência humana parte da mesma substância. Isso faz com que a ideia que uma pessoa tenha, a outra também possa ter. Não é exatamente igual, porque nunca é exatamente igual, mas nós podemos, ao contrário do que às vezes nos dizem, de fato nos colocar no lugar do outro. Aliás, é essencial para sermos humanos que a gente faça a experiência recorrente de tentarmos nos colocar no lugar do outro. Esses temas acabam atravessando todo o livro e, espero eu, dão-lhe uma unidade do princípio até ao fim.

 

Nota de 200 teng (1999), Banco Nacional da República do Cazaquistão. Rosto de Al-Farabi

Banco Nacional Republica Cazaquistao/Reprodução

 

O senhor começa o livro com a filosofia muçulmana de Al-Farabi, e acaba encerrando na filosofia de Al-Khwarizmi - o que descreve como ‘Iluminismo perdido da Ásia Central’. O que te chama atenção nessas correntes filosóficas? E por que nos esquecemos delas?


A gente esqueceu essas ideias porque, ao contrário do que nós muitas vezes imaginamos, os “iluminismos ou os renascimentos”, por assim dizer, eles muitas vezes terminam em fases de intolerância. Há interesse por parte das hierarquias passadas, das estruturas de autoridade, de combater, e até enterra esse “iluminismo”.

 

Muitas vezes eles são uma espécie de lampejos de iluminações que duram algum tempo, mas que depois ficam enterradas e precisam ser redescobertas pelas gerações futuras, que por sua vez vão tomar uma parte no que é a redescoberta da história e outra no que é a invenção da sua própria tradição.

 

Elas são esquecidas porque houve interesse dos poderes em fazer elas serem esquecidas, assim como Al-Farabi e sua filosofia que tentava beber dos gregos antigos, sempre em uma tensão difícil com a religião e a verdade revelada pelo Alcorão, acaba por ser suplantado na Ásia Central e no Oriente Médio pela teologia de um autor chamado Al-Ghazali que achava que a filosofia não poderia dar em felicidade, uma vez os filósofos não achavam todos a mesma coisa e, portanto, eles tinham contradições.

 

Naquela região do mundo Al-Farabi foi enterrado e esquecido. Só que na Península Ibérica, em que metade dela era dominada por muçulmanos, mas que também estava geograficamente distante desses acontecimentos, as ideias do Al-Farabi sobreviveram e foram aproveitadas por um outro filósofo chamado Averróis de Córdova, na atual Espanha, que escreveu uma resposta a essa intolerância do Al-Ghazali.

 

E por que no fim reaparece o Al-Farabi ao lado de um contemporâneo que foi Al-Khwarizmi? Por que Al-Khwarizmi era um matemático e é do nome dele que vem a palavra algoritmo. Hoje em dia vivemos no tempo dos algoritmos, eles escolhem os nossos conteúdos por nós, eles escolhem quem nos querem mostrar, eles escolhem se a nossa rede social vai ser pacífica, ou se será uma rede de divisão e ódio. Os algoritmos escolhem sem a nossa intervenção.

 

Como Al-Farabi dá nome aos Alfarrábios, que no Brasil se traduzem como livros velhos, no fim eu decidi fazer uma defesa, talvez um pouco lírica, do que seria bom para nós. Eu dou esse conselho aos leitores: às vezes é bom desligar um pouco os algoritmos e voltar aos alfarrábios. A leitura de um livro de fora da nossa época e das nossas polêmicas nos dá um momento de recolhimento por um lado, e por outro nos dá a possibilidade de nos colocar no lugar de outro viver, e isso é muito importante.

 

O senhor argumenta que essas ideias são esquecidas porque os donos do poder as combatem. Hoje, a ideia de Direitos Humanos está sob ameaça?


Os direitos humanos estão sob ataque, e eu entendo que a própria ideia de humanidade está sob vários ataques. Na América Latina é bem conhecida àquela ideia de “direitos humanos só para humanos direitos”, ou seja, os direitos só funcionam para alguns. Se os direitos humanos não são universais e indivisíveis, eles não são direitos humanos. Eles têm que valer para todos os humanos.

 

Por outro lado, também há muita gente, e às vezes encontramos mais progressistas que colocam dúvidas na ideia de direitos humanos dizendo que foram uma invenção ocidental e que não se verificaria em outras culturas. É algo que eu procuro desmentir na sexta memória que é a sobre a Declaração Universal Diretores Humanos. Lembrando que houve um inquérito em que filósofos e líderes religiosos de todo o lado do mundo participaram, e concordaram que havia ideias em diferentes tradições filosóficas que sustentavam a ideia de direitos humanos.

 

Agora, por que a própria ideia de humanidade está em risco? Porque ela está sob ataque daqueles que nos tratam meramente como consumidores sujeitos a essa maquinaria do algoritmo, e quem faz uma espécie de endereçamento direto da mensagem política. Mas está também sob ataque quando nós vemos a humanidade ficar dividida entre aqueles que trabalham até a exaustão e aqueles hiper-ricos que têm poder para comprar os governos. Eu creio que é preciso defender a ideia da humanidade.

 

Também há no campo progressista uma tentação de falar como se a humanidade não fosse importante, como se o papel do humano fosse equivalente ao de qualquer outro elemento natural. Não pode ser assim, porque a única maneira que nós temos de ter esse acesso à natureza é através do nosso próprio prisma de humanos. Como diziam os antigos, o humano é para si a medida de todas as coisas - tanto das que existem, como das que não existem, que é a parte da citação que normalmente é deixada de fora. É preciso revalorizar a ideia de ser humano, é preciso combater esses ataques contra os direitos humanos e procurar preservar para as próximas gerações.

 

O livro também traça as ideias que deram origem ao multilateralismo, citando a União Europeia, a unificação dos Estados Unidos e a própria ONU. Essas organizações têm falhado em fazer a defesa dos Direitos Humanos?


Elas têm falhado, pelo menos parcialmente. O que não significa que elas não sejam instituições que a gente deve preservar e salvar. Entre a primeira e segunda guerra mundial, também falhou a Liga das Nações, e teria sido melhor que não tivesse falhado. Nós corremos riscos permanentes com incoerências em relação à questão da guerra na Ucrânia, ou em relação àquilo que se passa em Gaza.

 

Estas organizações perdem a sua credibilidade, sua coerência, e ficamos pior porque a alternativa é: ou uma hegemonia norte-americana permanente, muito perigosa como a gente viu na guerra do Iraque, ou então esta ideia que é muito propalada por gente como Xi Jiping (Presidente da China) ou Vladmir Putin (Presidente da Rússia) que é uma espécie de sistema multipolar, mas em que só as superpotências têm o direito de mandar. Portanto, todos os outros países do mundo, eu diria que até os povos desses mesmos países, têm interesse em preservar as instituições internacionais.

 

E os ataques vêm de todos os lados. Nós vemos agora com essa decisão do Tribunal Penal Internacional de emitir um mandado de prisão tanto para o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e para Yoav Gallante, do lado do governo de Israel, quanto para um líder do Hamas. Imediatamente tivemos países como os Estados Unidos a dizer que o Tribunal não pode fazer isso, com gente defendendo que o Tribunal Penal Internacional só existe para julgar os países que não são democracias. Como, se por acaso uma democracia tivesse impunidade para violar Direitos Humanos.

 

Ao defender a União Europeia não há nenhuma espécie de eurocentrismo, pelo contrário, eu acho que cada país e cada continente pode ser uma espécie de um lugar experimental em termos do que se pode fazer de novo nos direitos humanos. Eu olho com muito interesse, por exemplo, para o Tribunal de Direitos Humanos da União Africana que é muito recente e está ganhando algum vigor.

 

Acho que a União Europeia pode servir de inspiração há cerca de como países que eram rivais, que fizeram guerras uns aos outros, podem trabalhar em conjunto, mas na verdade o próprio movimento de integração europeu também foi procurar a inspiração daquilo que vocês no continente americano faziam. Há aqui uma troca de experiência que é muito importante, e agora mais necessária do que nunca porque com os Estados Unidos com um autoritário no poder, com a Rússia e a China com autoritários que já estavam no poder, eu acho que seria um momento muito adequado para a Europa e a América Latina trabalharem em conjunto.


O senhor teme que essas ideias de direitos humanos, esse multilateralismo, acabem sendo esquecidas no futuro?


Eu temo que a gente passe por uma fase na qual voltemos para alguns dos horrores do passado, e às vezes são coisas de uma tal magnitude que a imaginação humana não tem capacidade de acompanhar. Certamente que antes da segunda guerra mundial muitos procuravam gerir a sua relação com Hitler e com Mussolini não imaginando que ali viria uma catástrofe moral do tamanho do holocausto e, talvez, as pessoas não acreditem que isso pudesse acontecer hoje.

 

Nós tentaremos evitar o máximo que possa acontecer, mas não está de forma nenhuma excluída, até porque os meios de dominação tecnológica das pessoas, capacidade de armamento e os recursos de que dispõem esses oligarcas são maiores do que nunca. O meu papel é muito o do otimista trágico.

 

Alguém que, no meio das maiores tragédias, tenta tirar sentido das coisas e propor uma via de um futuro melhor e acreditar que ela é possível de acontecer, ou é alguém que acha que as coisas podem correr bem, mas alerta para tudo o que pode falhar. Se voltarmos a entrar em um túnel sombrio e perder essas ideias de direitos humanos, perder essas instituições multilaterais, essa capacidade de fazer a democracia não só em escala nacional, mas para lá das fronteiras do estado de nação, aí eu prevejo que a gente vai precisar reinventar isso tudo.

 

É um pouco como alguns dos personagens que estão no “Agora, agora e mais agora”, às vezes eu leio os seus textos e ao considerar os seus gestos dá a sensação que alguns desses personagens sabiam que a porta estava a fechar, sabiam que seriam entaladas nesse fechamento e o máximo que poderiam fazer era passar um bilhetinho para o futuro esperando que alguém pudesse ver a sua mensagem, e isso é em grande medida fomos nós. Portanto, caso a porta se esteja a fechar, também esse será o nosso papel, deixar esse bilhete para o futuro.

 

Ao contar a história dos guelfos e dos gibelinos, o senhor mostra que a polarização não é algo novo, mas também um conceito milenar. Hoje falamos muito entre esquerda e direita. É possível fugir da polarização?


Há várias polarizações, ela é um fato da vida humana, não é opcional. O que eu acho é que às vezes há um engano por parte dos teóricos, de achar que tem de haver sempre uma causa para a polarização, e aí as pessoas perguntam se é uma causa económica ou uma causa cultural. A polarização é a sua própria causa. Nós vemos isso até nas relações interpessoais quando temos uma discussão em casa, às vezes passa uns minutos e a gente já não se lembra do que começou a discussão.

 

Agora, há polarizações que são construtivas, que ajudam a sociedade avançar, ser mais criativa, a superar essas dicotomias, e há polarizações que são destrutivas. Quando nós temos uma política na qual a competição entre progressistas e conservadores, procurando cada um deles exprimir a sua mensagem da maneira mais eficaz possível, porque no fundo da mente de cada um de nós há sempre um lado que entende os argumentos mais progressistas ou mais conservadores, isso é uma polarização construtiva. Mas a partir do momento em que ambos os campos acham que qualquer “cedência” é uma humilhação, que qualquer compromisso é uma traição, aí a polarização começa a ficar uma polarização destrutiva.

 

Além disso, há, também, e isso é particularmente importante nos últimos anos para países como o Brasil e Estados Unidos, momentos em que a polarização é assimétrica. Não significa que os dois polos sejam exatamente equivalentes. Se um polo está interessado em destruir a democracia e o estado de direito, e o outro está procurando preservar, independentemente das diferenças que a gente possa ter um com o outro, a gente não pode dizer que os dois são iguais.

 

A questão é que em muitas sociedades, eu diria que em demasiadas, a assimetria dessa polarização que leva alguns a assumirem a posição de procurar um novo autoritarismo faz com que o polo da defesa da democracia, dos direitos fundamentais, seja obrigado a tornar-se mais amplo. Já não é só a esquerda, mas é esquerda e o centro, já não é só à esquerda e o centro, mas é a esquerda, o centro e a direita democrática. Nós acabamos de ver isso nas eleições norte-americanas, vimos no caso brasileiro com Lula e Alckmin na mesma chapa.

 

O senhor é fundador de um partido de esquerda verde, e hoje se cobra muito uma autocrítica do campo progressista que supostamente teria abandonado as pautas de classe pelas pautas identitárias. Como o senhor enxerga essa questão?


Eu acho que esse debate está sendo feito de uma forma que não é útil, acho que perdemos um tempo enorme com um debate que é um falso debate. A esquerda precisa sim fazer uma autocrítica, mas é naqueles momentos em que a sua defesa dos direitos humanos, da democracia e do estado de direito não foi tão forte quanto deveria ser por razões táticas de solidariedade ou de alianças. Isso minou a nossa credibilidade. Quando a esquerda diz que um país viola os direitos humanos, mas como ele é anti-imperialista tudo bem, aí a esquerda já está a falhar e inevitavelmente vai pagar o preço dessa contradição. Isso foi um problema grave para nós.

 

Agora, fazer uma autocrítica em relação ao que é melhor, se é defender os trabalhadores pelos seus interesses económicos, ou se o que é melhor é defender o direito da pessoa em firmar a sua própria identidade, parece-me uma oposição completamente falsa, porque nós devemos defender todas essas coisas. Todas essas coisas são no fundo parte daquela ideia dos direitos humanos. Os direitos humanos são cívicos, econômicos, sociais e culturais.

 

É o direito de poder ter um emprego, mas, também, o direito de poder ser quem a pessoa é. Creio que a esquerda precisa encontrar o que eu chamo de “objetos de desejos políticos”, ou seja, novas conquistas que chamem a atenção das pessoas, que mobilizem as pessoas, e que promovam uma mudança para melhor. Assim, conseguimos contrariar aquilo que a extrema direita tem, que é precisamente uma teoria da atenção, uma teoria da mobilização, e uma teoria da mudança. Esta é a estratégia deles, mas não pode ser a estratégia dos progressistas, ela não pode ser uma imitação da estratégia da extrema direita. O tipo de cultura e liderança da esquerda progressista é naturalmente diferente, no entanto, a gente precisa captar a atenção das pessoas, mobilizar e fazer a mudança, uma coisa sem outra não funciona.

 

Muitas vezes, na esquerda, as pessoas falam do tipo de mudança que iriam operar no sistema, miudezas e preferências ideológicas, quando não pensaram ainda em como conseguir uma maioria. Na democracia a gente só pode fazer mudanças quando contém a maioria, e para ter uma maioria a gente precisa ter mobilizado essa maioria, e para mobilizar essa maioria a gente precisa ter chamado a atenção dessa maioria. E como é que a gente faz isso?

 

É propondo coisas novas, como já fizemos no passado, mas com outros objetos que são os novos direitos trabalhistas, novas instituições públicas, as novas formas de fruição da vida e de florescimento na vida, sempre numa tentativa de uma espécie de autorrealização individual e coletiva, que é aquilo que nós na esquerda chamamos de emancipação.

 

Isso ainda está tudo vivo e temos que procurar, às vezes são coisas muito pequeninas como fazer veredas urbanas, caminhos na cidade onde a gente possa andar como se estivesse no campo, com sombras, de regata correndo, com o cheiro da terra e com a caminhada debaixo das árvores. Se me perguntam: “melhor salário ou o direito das pessoas viverem a sua vida?”, eu digo que é melhor uma coisa, e é melhor a outra. Essas coisas mobilizam pessoas diferentes, é possível construir um programa com todas essas coisas. Nós estamos vendo políticos muito talentosos.

 

Para dar um exemplo brasileiro, quando a gente vê a Erika Hilton propor a semana de quatro dias, no início, talvez, muita gente disse que ela é uma deputada do identitário porque é uma mulher trans, mas afinal é essa deputada que pega um assunto cotidiano. Toda a gente trabalha e toda a gente gostaria de ter mais tempo para a família, toda a gente gostaria de ter tempo para descansar.

 

O senhor fala que o seu livro é uma coletânea do lado B da história. Hoje, quais seriam os personagens do lado B da nossa história?


Não me costumam fazer essa pergunta. Acho que a Erika Hilton, talvez, caiba um pouco nesse lado B, o que não quer dizer que ela não possa vir a ser um lado A. O que me importa no livro e também nesta resposta é fazer um elogio do lado B. É importante saber ser do lado B. Nos Estados Unidos, eu até fiz campanha para ele, se tem o Bernie Sanders (Senador) que nunca tendo sido presidente pode vir alguém que a gente olhe no futuro e pense como um dos personagens mais importantes da política progressista norte-americana do século 21 porque tem um percurso absolutamente ímpar.

 

Em Israel, por exemplo, morreu há pouco tempo, mas é alguém que eu admirava muito, que era o Uri Avnery. Ele foi um cronista, foi fundador de um pequeno partido pacifista. Foi alguém que vindo de uma família sionista, até com opções políticas bastante extremistas se apercebeu que aquilo era um caminho ruim tanto para árabes, quanto para israelitas, e que durante toda a vida defendeu a solução dos dois estados.

 

O historiador Eric Hobsbawm descreve o século 20 como "o breve". Como o senhor descreveria esses mil anos do seu livro em uma frase?


Eu descreveria esses mil anos como um milênio que tem um arco narrativo invulgar, porque no início dele todo mundo pensava no fim do mundo, acreditava que o fim do mundo estava para muito breve e que ia ser durante esta geração. E esse fim do mundo não vinha, nem podia vir, quer dizer as pessoas acreditavam que ele viria de Deus, mas ele nunca veio.

 

A inversão que se deu é curiosa, porque hoje se tem os meios para provocar o fim do mundo, os meios nucleares, ou os meios tecnológicos que todos os dias, com o aquecimento global, nos afastam de um mundo no qual é sustentável viver. No entanto, a gente vive como se nunca pensasse no fim do mundo.

 

Essa grande cambalhota da história é muito interessante. Hoje estamos em uma fase em que é possível o fim do mundo, alguns diriam é até provável, mas a gente vive como se não houvesse amanhã. Como eu sou um otimista trágico, gosto sempre de dizer que isso pode acontecer, mas acredito que a gente tem capacidade de dar a volta e que a história não acaba nunca. 

 

Sobre o autor

 

Nascido em Lisboa em 1972, Rui Tavares é historiador pela Universidade Nova de Lisboa e mestre pelo Instituto de Ciência Sociais da Universidade de Lisboa, doutor na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Deputado na Assembleia da República pelo Livres, partido de esquerda verde que ajudou a fundar em 2014, foi deputado no Parlamento Europeu (2009-14) e vereador em Lisboa.Autor de “O pequeno livro do Grande Terremoto” (Tinta-da-China Brasil, 2005); “Esquerda e Direita: um guia para o século XXI” (Tinta-da-China Brasil, 2016) e “Agora, agora e mais agora: seis memórias do último milênio” (2024).

 

“Agora, agora e mais agora”
De Rui Tavares
Tinta-da-China Brasil
536 páginas
R$ 249,90


Rui Tavares no Brasil

 

1º Festival Literário Internacional da Paraíba - FliParaíba
Mesa "Territórios da palavra, nossas histórias e identidades" com José Eduardo Agualusa, José Manuel Diogo e Rui Tavares
Sábado, 30/11, às 16h
Centro Cultural São Francisco, João Pessoa

 

Lançamento de Agora, agora e mais agora em Brasília
Bate-papo com Rui Tavares, mediação do cientista político Mathias Alencastro
Domingo, 01/12, às 17h
Livraria Platô
CLS 405, Bloco A, Loja 12. Asa Sul, Brasília

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