“Mais cedo ou mais tarde, através de alguma organização, que a consciência da sociedade despertasse para o fato de que o pobre tem tanto direito a uma assistência à mente quanto tem agora às cirurgias e que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos que a tuberculose e não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade. Quando isto acontecer haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados de modo que os homens, que de outra forma cederiam à bebida, e as mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, as crianças para a quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam se tornar capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo até que o Estado chegue a compreender como são urgentes os seus deveres.” (Freud, 1924).
“Depois deste livro podemos morrer em paz.” Destas palavras de Christian Dunker depura-se o impacto causado por “O desejo de psicanálise: exercícios de pensamento lacaniano” (Boitempo), de Gabriel Tupinambá. Uma proposta de uma psicanálise para o século 21 capaz de beneficiar-se da aproximação de uma política esquerdo-marxista, da filosofia de Badiou, da dissidência de Slavoj iek, filósofo esloveno pesquisador do Instituto de Sociologia de Liubliana, prefaciador da obra.
Gabriel Tupinambá enaltece a ideologia lacaniana e, sem demérito, expõe inconsciências e uma série de limitações que, a seu ver, impediram Lacan de implantar completamente os potenciais de seus avanços teóricos. Uma suplementação proposicional e aprofundamento que requer do leitor reflexão maior.
Dentre as dificuldades, acusa o psicanalista de um privilégio epistemológico radical de se conferir status de superioridade frente a outros discursos: na ciência a cegueira na forclusão do sujeito, na filosofia o encobrimento da impossibilidade e na política, o domínio das identificações imaginárias.
Numa escrita documental, critica a posição da AMP – Associação Mundial de Psicanálise, instituição dirigida por Jacques-Allain Miller, genro e herdeiro do acervo de Lacan ainda não toda estabelecida, em que pesem os 43 anos de sua morte. A crítica se estende ao caráter formal das instituições com estatuto próprio para controlar, distinguir, nomear, acolher e expulsar conforme condução milleriana, por exemplo, no movimento Zadig (2017) que legitima, em termos lacanianos, a escolha por Macron, do partido democrático-liberal.
Igualmente considera a transferência interminável que mantém os analisantes cativos à submissão a um líder idealizado que produz fenômenos de grupo indesejáveis em torno de um ideal comum, no formato Igreja ou Exército, contrariando a orientação psicanalítica de um sujeito radicalmente singular e um desejo único.
Das relações assimétricas entre diferentes campos, exemplo política e psicanálise, de correlação democrática na medida em que a psicanálise reivindica uma orientação pela alteridade radical do modo de gozo de cada sujeito e a democracia na qual posições divergentes e até contraditórios coexistam num espaço heterogêneo. Também a compossibilidade, segundo Badiou, a saber, que ambas as formas de pensar sejam possíveis em um mesmo mundo. Ou incompossibilidades.
Percorre o lacanismo em todos os seus períodos, bem como a teoria lacaniana que, em determinados momentos, produz viradas de “Lacan contra Lacan” ou quando, compelido eticamente a importantes rompimentos e dissoluções por uma Escola sustentada pelo desejo como causa, pelo real em jogo na formação dos analistas imprescindível à sobrevivência da psicanálise no mundo, e finalmente, por um trabalho que, no campo aberto por Freud, restaura a lâmina cortante de sua verdade e que denuncie os desvios e compromissos que amortecem seu progresso, degradando sua utilização.
A forma do Outro e seu cerceamento institucional, a fundamentação para uma metapsicologia dos ideais, a ideia do passe, o manejo do dinheiro, a transformação no acesso à formação são apenas alguns aspectos abordados.
Gabriel Tupinambá provoca uma variação do sintagma desejo do analista, momento do fim do processo de análise quando o analisante, esvaziado da própria subjetividade, inscreve-se como desejante o que implica numa destituição de si mesmo com o atravessamento de sua fantasia fundamental. Propõe com “O desejo de psicanálise” a transformação coletiva, um des-ser da própria psicanálise enquanto único campo autorizado a se valer desse mecanismo de destituição, uma vez que nem todos os analisantes, por dinheiro, podem recorrer à análise em condição de igualdade a ponto de chegar ao final.
Uma horizontalização que fez parte do sonho freudiano de acesso da psicanálise às classes mais baixas da comunidade em como de fugir à lógica identitária e das violências que daí decorrem. A obra busca uma nova perspectiva do pensamento lacaniano. Interessa ao interlocutor diferente, um novo destinatário talvez de subconjuntos mais restritos, outros campos, que, encontrando impasses práticos, organizacionais e conceituais se preocupam em contribuir na sua instituição com o pensamento psicanalítico.
REGINA TEIXEIRA DA COSTA é psicanalista, mestre em psicologia social e colunista do Estado de Minas
“O desejo de psicanálise: exercícios de pensamento lacaniano”
De Gabriel Tupinambá
Boitempo Editorial
296 páginas
R$ 85
“Em tempos de elogios fáceis e autorreferidos, é difícil dar a essa afirmação seu devido peso. Ainda que comece e se concentre em objeções milimétricas ao millerianismo, seu texto serve para qualquer derivação ou assimilação do pensamento lacaniano – e isso só poderia ser feito por alguém com pleno domínio de áreas tão díspares quanto a formalização lógica, as políticas marxistas revolucionárias e a viva experiência de instituições e movimentos sociais ‘tais como eles são’.”
Christian Dunker, sobre “O desejo de psicanálise”, de Gabriel Tupinambá