“Um fato hoje pode ser relido de outra forma amanhã. Memória é viva”, afirma Marcelo Rubens Paiva no livro “Ainda estou aqui”. “Um detalhe de algo vivido pode ser lembrado anos depois, ganhar uma relevância que antes não tinha, e deixar em segundo plano aquilo que era então mais representativo. E a prisão do meu pai (como a da minha mãe e da minha irmã) com o tempo ganhou outro significado, outras provas, testemunhas, releituras”.
Os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega seguiram a linha de pensamento do autor do livro que deu origem ao filme de Walter Salles. Mais do que uma adaptação, fizeram uma releitura do relato de Marcelo, publicado pela editora Alfaguara em 2015. “Para nós, ficou evidente que a única maneira de fazer justiça a essa personagem, que o próprio Marcelo aponta como alguém que ficou em segundo plano na vida real, era trazê-la para o protagonismo da história”, afirma a dupla, nesta entrevista.
Eles decidiram mudar o ponto de vista da narrativa, originalmente centrada na visão do escritor de sua mãe. A partir dessa decisão, tiveram maior liberdade para incluir – e criar – diversas cenas que não estão no livro. “Uma adaptação não é apenas uma transposição de meios, mas a criação de uma nova forma, as vezes até de uma nova história. E quando estamos criando uma nova forma, é importante deixar a criatividade buscar diferentes caminhos que a história pode tomar, ainda mais quando há uma alteração tão marcante como a mudança de protagonista, como nesse caso”, contam. “Na verdade, o relato do Marcelo funcionou, acima de tudo, como um disparador emocional do projeto”, resumem.
O trabalho, iniciado a partir de convite de Salles em 2016, foi recompensado com o prêmio de melhor roteiro na mais recente edição do Festival de Veneza, em júri presidido pela atriz francesa Isabelle Huppert. E, claro, foi fundamental para conquistar a atenção da crítica e a adesão do público brasileiro – mais de 2,5 milhões de espectadores já assistiram ao filme desde a estreia. Leia, a seguir, a entrevista de Murilo Hauser (que também foi responsável pelo roteiro de outra adaptação literária, “A vida invisível”, de Karim Aïnouz, a partir do romance de Martha Batalha) e Heitor Lorega ao Pensar do Estado de Minas.
ENTREVISTA
Qual a orientação inicial de Walter Salles em relação à adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva? O que primeiro ele pediu a vocês e qual foi o primeiro trabalho que fizeram com o livro?
O convite do Walter para pensarmos em um filme a partir do livro do Marcelo veio junto do convite para integrar uma edição do núcleo de desenvolvimento da VideoFilmes, projeto que começou com o Eduardo Coutinho há muitos anos. Isso foi no final de 2016. A partir do ano seguinte, começamos o processo de investigação das possibilidades do “Ainda estou aqui” virar um filme nessa espécie de laboratório/espaço de trocas com outros artistas. Vieram anos de pesquisa, de escrita e reescrita até a filmagem, quando acompanhamos o Walter no set todos os dias, revisando, reescrevendo e criando novas cenas de acordo com o que era filmado.
Desde o início já havia a decisão de mudar o ponto de vista do narrador e, em vez de ter a mãe apenas pelos olhos do filho (como no livro), trazer Eunice para o protagonismo total e dar mais espaço à visão e aos conflitos dela e de sua relação com as filhas?
Não, essa decisão foi tomada depois de muita consideração, quando já estávamos trabalhando no projeto há algum tempo. No início Walter imaginava uma adaptação mais direta do livro, só que pra nós ficou cada vez mais evidente que a única maneira de fazer justiça a essa personagem, que o próprio Marcelo aponta como alguém que ficou em segundo plano na vida real, era trazê-la para o protagonismo da história. No livro, é Marcelo quem olha para a mãe, lembra dela, imagina o que ela passou nos momentos em que não estava junto. Mas nessa casa à beira-mar, sitiada grande parte do filme, há pelo menos mais cinco pessoas olhando pra essa mulher e tentando entender o que está acontecendo não só com ela mas com toda essa família, com o futuro deles, com o país todo. São outros pontos de vista sobre Eunice, que enriquecem não só a situação dramática mas também a personagem em si. Então conforme juntávamos outros relatos de outras pessoas fomos aos poucos tornando essa personagem mais complexa, mais tridimensional e mais contraditória. Foi então que emplacamos o plano de trazê-la para a frente da narrativa, e foi isso que norteou nosso processo de escrita até o final.
“Me lembro de coisas da infância porque vejo fotos”, escreve Marcelo, no livro. Como as imagens que a família Paiva fez ajudaram vocês a encontrar as cenas incluídas no roteiro?
As fotos da família foram fundamentais durante todo o processo. Em especial para nós, que não vivemos nessa época nem crescemos no Rio de Janeiro. Elas nos deram respostas para muitas perguntas, trouxeram algumas outras, nos inspiraram a criar cenas e ainda serviram como ferramenta narrativa estabelecendo um dos arcos de Eunice durante o filme – o de organizar as fotos da família. O trabalho minucioso da equipe de arte junto da Daniela Thomas e o próprio Walter para reconstruir essas imagens com o elenco foi de tirar o fôlego. Em alguns momentos era difícil dizer qual era a foto verdadeira e qual era a recriada. Boa parte desse material compôs os créditos finais do filme, que correm também sobre imagens da casa vazia. Estas cenas dos cômodos esvaziados, que são muito fortes nesse final, foram também uma provocação de roteiro quando, já em produção, trouxemos a ideia de registrar essa casa abandonada como uma metáfora do Alzheimer de Eunice e também do próprio Brasil, sem suas memórias.
Há, no filme, diversas sequências que não estão no livro. De onde elas vieram? De conversas com outros integrantes da família ou da criação de vocês? Até onde se pode criar quando se está adaptando uma história já escrita?
A construção de um roteiro se dá de uma forma muito particular, mesmo quando parte de algum material pré-existente. Uma adaptação não é apenas uma transposição de meios, mas a criação de uma nova forma, às vezes até de uma nova história. E quando estamos criando uma nova forma, é importante deixar a criatividade buscar diferentes caminhos que a história pode tomar, ainda mais quando há uma alteração tão marcante como a mudança de protagonista, como nesse caso. Na verdade, o relato do Marcelo funcionou, acima de tudo, como um disparador emocional do projeto. Ele lançou o Walter de volta para esta casa que ele conheceu quando criança, e nos ofereceu uma porta de entrada para este universo. Como não somos do Rio, nem dessa época, ler o Marcelo nos aproximou muito do mundo em que o filme se passa, e das personagens. Acima de tudo, foi ele que fez nos apaixonarmos por Eunice, claro. Agora de fato, concretamente, a maioria das cenas do roteiro não está no livro. O helicóptero que sobrevoa Eunice que boia no mar na cena abre o filme, o cachorro sendo encontrado na praia, a blitz e a festa de despedida de Veroca, Eunice vendo os caminhões do Exército passando em frente à casa, a carta/ filme Super 8 que Veroca manda de Londres, o banho de Eunice quando volta para casa depois dos 12 dias presa, o tapa que ela dá em Eliana, o retorno da família sem o pai à lanchonete, ela retirando as estacas que marcavam o terreno da futura casa…Todas essas sequências são originais e vêm de diferentes lugares. Muitas surgiram conforme avançamos nas pesquisas, coletando relatos e entrevistas, matérias de jornal, memórias das irmãs e colegas de trabalho e estudo de Eunice, do Walter e inclusive nossas. Não há como não se envolver e trazer nosso próprio universo para um roteiro, seja ele qual for.
Murilo, você adaptou outro livro protagonizado por uma personagem feminina, “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, para o filme de Karim Aïnouz. Quais as semelhanças e as diferenças entre os dois processos?
Apesar de algumas semelhanças entre os filmes, escrever “A vida invisível” foi um processo muito diferente do “Ainda estou aqui”. Primeiro porque trata-se de uma ficção, então nossa liberdade era muito maior, claro. De largada decidimos que o filme seria outro gênero que o livro, que é mais cronista e leve do que o melodrama que fizemos. Com isso em mente, propus ao Karim nos afastarmos da estrutura narrativa utilizada pela Martha Batalha e nos concentrarmos em apenas um fragmento do livro: a separação das duas irmãs. Depois que estávamos alinhados quanto ao caminho que seguiríamos decidimos que nunca mais voltaríamos ao livro durante a feitura do filme, e foi assim que operamos. A escrita foi como a de um roteiro original, imaginando um arco novo para cada irmã e entrelaçando os dois em um roteiro com duplo protagonismo, o que é um desafio estrutural à parte. Em um exercício de comparação do livro com o roteiro fica claro o quão distante o filme está do material que deu origem ao processo. No romance há muitas outras histórias e personagens, e mesmo a jornada de Eurídice e Guida toma outros caminhos completamente diferentes, com um desfecho radicalmente distante do final do filme. Em “Ainda estou aqui”, também acabamos nos afastando bastante do livro, criando novas cenas e arcos que não estavam na obra original, mas ele sempre esteve lá, como uma espécie de guia emocional. Afinal, o livro não só é o relato de uma história real como apresenta muitos personagens que seguem vivos e que nos deram depoimentos, então a nossa ligação com o material de origem se manteve muito mais profunda até o final do processo.
Há, no filme, o trecho de uma carta, “saudade de todos”, que remete à última carta lida por Dora (Fernanda Montenegro) em “Central do Brasil”. A alusão foi intencional? Como avaliam o roteiro de “Central”?
Não seria exagero dizer que “Central do Brasil” nos trouxe até aqui de certa maneira. Ele e muitos outros filmes que acenderam a nossa paixão pelo cinema, e que constroem juntos uma identidade nacional. Mas “Central” em especial marcou uma geração de brasileiros e ficou gravado em nossa memória coletiva. Dito isso, não houve nenhum gesto intencional nosso para fazer uma alusão direta a ele no “Ainda estou aqui”.
Quais são os trabalhos de roteiristas que vocês admiram no audiovisual brasileiro, do passado e/ou contemporâneos?
Brasileiro é muito bom de contar histórias, não tem pra ninguém. Desde Nelson Pereira, Leon Hirszman, Roberto Farias, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, passando pela geração da Boca do Lixo com Carlos Reichenbach, Rogério Sganzerla, Arnaldo Jabor, depois por Hilton Lacerda, Anna Muylaert e Kleber Mendonça, até nossos queridos parceiros Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, chegando em uma nova geração tão brilhante e inspiradora com nomes como Nina Kopko, Geovani Martins, Manuela Cantuária e Jaqueline Souza. A lista é grande e não para de crescer, ainda bem.
Que exemplos poderiam citar de adaptações cinematográficas que consideram bem-sucedidas de livros brasileiros ou internacionais?
Difícil medir o sucesso de uma adaptação, ou mesmo de um filme. É tudo muito relativo, e não costumamos pensar em termos de algo ser bem-sucedido ou não. Mas na nossa parceria gostamos muito de assistir a filmes adaptados baseados em peças de teatro. Podemos citar aqui no Brasil os grandes ‘Eles não usam black-tie’, a partir da peça do Gianfrancesco Guarnieri, e ‘A falecida’, a linda adaptação do Nelson Rodrigues (ambos filmes dirigidos por Leon Hirszman). Pensando internacionalmente, a longa lista vai desde “Blow-Up” a partir do conto do (Julio) Cortázar, “Vertigo” (“Um corpo que cai”, de Alfred Hitchcock), baseado em “The living and the dead” de Boileau-Narcejac (lançado no Brasil pela editora Vestígio em 2016), passando por “Glengarry Glen Ross” (“O sucesso a qualquer preço”), do (David) Mamet, e chega até um filme que gostamos como forma de ilustrar os caminhos possíveis do nosso trabalho que é “Adaptação”, escrito pelo americano Charlie Kaufman, baseado no livro de não ficção “The orchid thief”.
Como o prêmio que vocês receberam em Veneza pode redimensionar o trabalho dos roteiristas brasileiros? Esse ofício recebe o devido reconhecimento em nosso país? O que falta?
Nossa parceria com o Walter neste filme e o prêmio de Veneza infelizmente são exceções na vida dos roteiristas no Brasil. Nossa profissão é tradicionalmente desvalorizada na cadeia do cinema e isso ficou mais uma vez evidente na longa greve que aconteceu no ano passado nos Estados Unidos.
Não são poucas as vivências de colegas que foram muitas vezes passados pra trás em contratos kafkianos de produtores, canais e streamers, onde tudo que se busca é tirar todo e qualquer direito do roteirista sobre a obra que ele cria.
É curioso, no mínimo, pensar que o projeto fica cinco, seis, 10 anos apenas na mão de quem escreve incansavelmente para desenvolver uma história envolvente e marcante para o público, mas na hora de lançar o filme esses profissionais sofrem apagamento na divulgação da obra. Isso nos parece muito estranho, pois o que fica para o público em grande parte das vezes não é a direção, nem a fotografia, muitas vezes nem as interpretações, mas a história.
Quando alguém vai contar um filme a que assistiu, sintetiza os grandes movimentos dramáticos que mexeram com seu emocional, e que foram pensados e estruturados pelos roteiristas muito antes da filmagem.
Felizmente, cada vez mais a classe está se unindo para lidar com os problemas coletivamente com organizações como o Gedar (Gestão de Direitos de Autores Roteiristas) e a Abra (Associação Brasileira de Autores Roteiristas), que lutam pela regulamentação do nosso trabalho, dos nossos direitos e da nossa remuneração.
O que é preciso para ser roteirista no Brasil?
Paciência!
“Ler o Marcelo nos aproximou muito do mundo em que o filme se passa, e das personagens. Acima de tudo, foi ele que fez nos apaixonarmos por Eunice. Agora, de fato, concretamente a maioria das cenas do roteiro não está no livro. O helicóptero que sobrevoa Eunice que boia no mar, o cachorro sendo encontrado na praia, a blitz e a festa de despedida de Veroca, Eunice vendo os caminhões do Exército passando em frente à casa, a carta/filme Super 8 que Veroca manda de Londres, o banho de Eunice quando volta para casa depois dos 12 dias presa, o tapa que ela dá em Eliana, o retorno da família sem o pai à lanchonete, ela retirando as estacas que marcavam o terreno da futura casa... Todas essas sequências são originais e vêm de diferentes lugares.”
Assim na tela como no livro
“Ela apontou trêmula para a TV e começou a dizer, aflita, chamando a nossa atenção e a atenção da própria memória.
– Olha, olha, olha!
Na TV, um noticiário sobre Rubens Paiva. Neste 2014, apareciam todos os dias notícias sobre o caso Rubens Paiva. Todos os dias, novidades. Ela sentadinha inerte na cadeira de rodas. Apareceram fotos dele de arquivo na tela. Era a foto do seu ex-marido, era o nome dele, falavam dele, desvendavam segredos sobre a morte dele:
– Olha, olha, olha!
Ela olhava. Com lágrimas. Ouviu a notícia. Começou a dizer baixinho:
– Tadinho, tadinho, tadinho...”
Trecho de “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, que se tornou
uma das cenas mais marcantes do filme de Walter Salles, com Fernanda Montenegro (acima) interpretando Eunice Paiva já com Alzheimer