Rebeca (Valentina Herszage) luta para ficar com o filho, Yosef (rafael fuchs), e sobreviver à opressão do cafetão Tzvi (Caco Ciocler): conflitos históricos que permanecem atuais -  (crédito: ique esteves/divulgação)

Rebeca (Valentina Herszage) luta para ficar com o filho, Yosef (rafael fuchs), e sobreviver à opressão do cafetão Tzvi (Caco Ciocler): conflitos históricos que permanecem atuais

crédito: ique esteves/divulgação

Da Polônia para o Brasil do início do século 20, do plural para o singular. “As polacas”, filme de João Jardim em cartaz em Belo Horizonte, promove uma série de deslocamentos geográficos e temporais para narrar uma história de opressão, mas também de esperança, baseada em fatos reais. Por meio da trajetória de uma jovem mãe, Rebeca (Valentina Herszage, a Veroca de “Ainda estou aqui”), o longa-metragem sintetiza a trajetória de dezenas de judias que, trazidas da Europa, foram forçadas a trabalhar como prostitutas no Rio de Janeiro.

 

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Tráfico humano, machismo e apagamento histórico estão entre os temas levantados na trama forte, impulsionada pelo esforço incessante da mulher que, mesmo fragilizada pela morte do marido e pela ausência de vínculos no país com uma República recém-constituída, se insurge para assegurar o direito à liberdade e de viver com o filho.


O roteiro de “As polacas” foi escrito por Jacquelinee Vargas e Flavio Araújo a partir de “El infierno prometido”, livro de Elsa Drucaroff, e “La Polaca”, de Myrtha Schalom. O experiente George Moura (dos filmes “O grande circo místico” e “Linha de passe” e de séries como “Amores roubados”, “Onde nascem os fortes” e a ainda inédita “Guerreiros do sol”) assina o roteiro final. Ele retoma a parceria com o cineasta João Jardim, com quem havia trabalhado no longa-metragem “Getúlio” (2014), estrelado por Tony Ramos. “Acho que tivemos os corações abertos e a franqueza de trabalhar com liberdade entre a âncora da realidade e as asas da imaginação”, conta George Moura, nesta entrevista ao Estado de Minas.


A delicada direção de fotografia, de Louise Botkay, e a atenta direção de arte, de Camila Moussallem, são dois trunfos do filme produzido por Iafa Britz.


Judia e descendente de poloneses, Britz acredita que “As polacas” pode ajudar a promover uma espécie de reparação. “Em certos períodos da história, a gente precisa se curar de coisas que aconteceram. Acho que falar dessas coisas tem um certo poder de cura”, afirma, lembrando que a exploração de corpos femininos permeia a história da humanidade.

 


“O filme é um recorte de nossa história e dos abusos e escassez impostos por ela. Ao mesmo tempo, é extremamente inspirador ver a força e a sororidade destas mulheres num país em que sequer conhecem a língua. São pessoas absolutamente vulneráveis que juntas criam afeto, esperança e recursos para viver de forma mais digna”, diz Iafa, referindo-se à união das mulheres escravizadas que, sob a alcunha de Sociedade da Verdade, conseguiram a autorização de um cemitério no Rio de Janeiro para que lá fossem enterradas.


Moura define “As polacas” como um filme sobre a Mãe Coragem “que revela a insidiosa e cruel opressão entre cidadãos da mesma pátria e da mesma raça. É uma história sobre a infinita força e capacidade de transformação que tem o amor”.. Leia ao lado a entrevista do roteirista ao Pensar do Estado de Minas.

 

 Entrevista/ George Moura - Autor do roteiro final de “As polacas”

 

“Voltar ao passado para contar essas  histórias é vislumbrar o futuro do país”

 


Quem é Rebeca e qual a grande motivação dessa personagem? Quais os cuidados na criação da trajetória dessa protagonista?


Rebeca (Valentina Herszage) é uma jovem mulher, mãe, que foge da opressão, busca proteção para o filho e deseja ser livre. Um dos cuidados na construção da personagem foi evitar a vitimização de Rebeca e mostrar que a força desta mulher está em sua resiliência e em seu amor à liberdade.


Por meio da personagem-título de ‘Mãe Coragem e os seus filhos’, Bertolt Brecht formula a crítica às causas e os efeitos de uma guerra. E, por meio do sentimento de maternidade de Rebeca, o que é possível vislumbrar sobre a condição feminina no início do século 20?


Rebeca é uma Mãe Coragem, como muitas outras que viveram naquele período no Brasil e no mundo. Às vezes, ela até precisa se submeter à opressão para sobreviver e ganhar forças para se libertar do jugo de um homem opressor, que era o cafetão Tzvi (Caco Ciocler), explorador de mulheres vulneráveis. O que podemos vislumbrar em Rebeca é que, na dramaturgia, a saga de uma heroína não precisa ser necessariamente um panfleto politicamente correto. Rebeca tem suas contradições e isso a torna ainda maior e mais complexa.


Do ponto de vista dramatúrgico, o que foi mais atraente e mais desafiador na representação da Sociedade da Verdade?


O mais desafiador é retratar um momento tão importante historicamente evitando o didatismo e os diálogos expositivos, que muitas vezes falsificam e enfraquecem a dramaturgia. É tentar construir cenas que façam o espectador entrar na história, sem a sensação de que está numa sala de aula ou diante de uma pregação pedagógica.

 


Em uma obra audiovisual baseada em fatos históricos, em que momento termina a pesquisa e quando começa a invenção?


O limite entre pesquisa e invenção é tênue, mas acredito que pesquisa e invenção devem se misturar com o objetivo de tornar a dramaturgia verossímil. Como já foi dito: a grande diferença entre a vida real e o roteiro, é que o roteiro precisa fazer sentido. Não basta dizer: foi assim na vida real. É preciso reconstruir a história real no roteiro do filme de uma forma que o espectador embarque na viagem que foi proposta.


Você trabalhou anteriormente com João Jardim em outro longa-metragem que recria um outro episódio histórico ocorrido no Brasil do século 20, só que muito mais conhecido: “Getúlio”. Poderia comparar os dois trabalhos? O fato de, dessa vez, a história ser quase desconhecida de boa parte da população brasileira trouxe maior liberdade de criação?


De fato, a ligação do diretor João Jardim com o cinema documental nos levou a dois filmes de ficção a partir de fatos históricos. Acho que tivemos os corações abertos e a franqueza de trabalhar com liberdade entre a âncora da realidade e as asas da imaginação. A relação do então presidente da República Getúlio Vargas com a filha Alzira tem muito de construção inventada, mesmo estando documentada nos diários de Getúlio e no livro escrito por Alzira. Com “As polacas” não foi diferente. Tivemos apoio de documentos, livros e pesquisadores para não incorrer em erros históricos, mas Rebeca é uma síntese de várias mulheres oprimidas e não a biografia específica de uma única pessoa real.

 


Você escreveu duas histórias recentemente que, mesmo bem diferentes, se passam no mesmo período histórico – o Brasil no início do século 20: ‘Guerreiros do sol’ e ‘As polacas’. O que é mais desafiador ao escrever dramaturgia ambientada nesse tempo do país, logo depois da abolição da escravatura e no início da República?


É um momento muito rico, pois é quando se dá a tentativa de construção do Brasil moderno, embora sobre bases ainda bem arcaicas. Na série de cangaço “Guerreiros do sol” é o sertão, em que o Estado se mostra ausente, e a lei não é a escrita no papel e sim a lei do mais forte. No universo de “As polacas”, a exploração sexual de mulheres se dá em conluio com a polícia e os poderosos. Isso é lastimável, mas é de grande potencial dramático para se entender as contradições de um país como o Brasil, que segue com essas questões até os dias de hoje. Voltar ao passado para contar essas histórias é vislumbrar o futuro do país.

 

Por meio do personagem Isaac, é possível vislumbrar a situação dos escravizados que haviam conquistado a abolição, mas ainda dependiam financeiramente de homens brancos. Como a trajetória dele na trama simboliza essa condição?


Isaac (Amaurih Oliveira) é a encarnação de que há várias formas de escravidão. E também de que uma lei de abolição não resolve todos os problemas e muito menos cura todas as feridas abertas da sociedade. Isaac, mesmo liberto, vive uma espécie de servidão voluntária ao seu patrão Tzvi (Caco Ciocler). Mas há o momento em que ele não suporta mais ser um oprimido que recebe dinheiro para ser opressor e rompe com esse ciclo vicioso. Sem dar spoiler, é uma espécie de redenção trágica a vivida por Isaac no filme.


O filme começa com uma chegada e termina com uma partida. Em ambas, a busca da felicidade. Entre as duas esperanças, muitas situações de opressão e de violência. Como foi encontrar esse ponto de equilíbrio?


De fato, é um filme de personagens em movimento, sobretudo Rebeca e seu filho. Buscamos exatamente dosar a opressão e a esperança, sem perder a ternura. É um filme sobre a dura realidade que é a exploração de mulheres vulneráveis, mas há a preocupação de lançar luz no final do túnel.

 

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Como definiria “As polacas” em duas, no máximo, três sentenças?


Um filme sobre uma Mãe Coragem, que revela a insidiosa e cruel opressão entre cidadãos da mesma pátria e da mesma raça. É uma história sobre a infinita força e capacidade de transformação que tem o amor.