Cemitério de elefantes

Cemitério de elefantes

Poty/Reprodução

À margem esquerda do rio Belém, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro – ali os bêbados são felizes. Curitiba os considera animais sagrados, provê as suas necessidades de cachaça e pirão. No trivial contentam-se com as sobras do mercado.
Quando ronca a barriga, ao ponto de perturbar a sesta, saem do abrigo e, arrastando os pesados pés, atiram-se à luta pela vida. Enterram-se no mangue até os joelhos na caça ao caranguejo ou, tromba vermelha no ar, espiam a queda dos ingás maduros.
Elefantes malferidos, coçam as perebas, sem nenhuma queixa, escarrapachados sobre as raízes que servem de cama e cadeira. Bebem e beliscam pedacinho de peixe. Cada um tem o seu lugar, gentilmente avisam:
– Não use a raiz do Pedro.
– Foi embora, sabia não?
– Aqui há pouco...
– Sentiu que ia se apagar e caiu fora. Eu gritei: Vai na frente, Pedro, deixa a porta aberta.
À flor do lodo borbulha o mangue – os passos de um gigante perdido? João dispõe no braseiro o peixe embrulhado em folha de bananeira.
– O Cai N’Água trouxe as minhocas?
– Sabia não?
– Agora mesmo ele...
– Entregou a lata e disse: Jonas, vai dar pescadinha
da boa.
Lá do sulfuroso Barigui rasteja um elefante moribundo.
– Amigo, venha com a gente.
Uma raiz no ingazeiro, o rabo de peixe, a caneca
de pinga.
No silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de um e outro, assombrado com o farol piscando no alto do morro.
Distrai-se um deles a enterrar o dedo no tornozelo inchado. Puxando os pés de paquiderme, afasta-se entre adeuses em voz baixa – ninguém perturbe os dorminhocos. Esses, quando acordam, não perguntam aonde foi o ausente. E, se indagassem, para levar-lhe margaridas-do-banhado, quem saberia responder? A você o caminho se revela na hora da morte.
A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés disformes. Nas folhas do ingazeiro reluzem lambaris prateados – ao eco da queda dos frutos os bêbados erguem-se com dificuldade e os disputam rolando no pó. O vencedor descasca o ingá, chupa de olho guloso a fava adocicada. Jamais correu sangue no cemitério, a faquinha na cinta é para descamar peixe. E, aos brigões, incapazes de se moverem, basta xingarem-se à distância.
Eles que suportam o delírio, a peste, o fel na língua, o mormaço, as cãibras de sangue, berram de ódio contra os pardais, que se aninham entre as folhas e, antes de dormir, lhes cospem na cabeça – o seu pipiar irrequieto envenena
a modorra.
Da beira contemplam os pescadores mergulhando
os remos.
– Um peixinho aí, compadre?
O pescador atira o peixe desprezado no fundo da canoa.
– Por que você bebe, Papa-Isca?
– Maldição de mãe, uai.
– O Chico não quer peixe?
– Tadinho, a barriga d’água.
Sem pressa, despediu-se dos companheiros cochilando à margem, esquecidos de enfiar a minhoca no anzol.
Cospe na água o caroço preto do ingá, os outros não o interrogam: presas de marfim que indicam o caminho são as garrafas vazias. Chico perde-se no cemitério sagrado, as carcaças de pés grotescos surgindo ao luar.

 

 

Sobre o conto e o autor

 

Considerado por escritores como Marçal Aquino “a pedra fundamental do monumento literário que Dalton Trevisan construiu nos últimos 60 anos”, o livro “Cemitério de elefantes” foi publicado originalmente em 1964 e reúne alguns dos contos mais marcantes do autor paranaense, nascido em junho de 1925 e falecido no último dia 9, em Curitiba, aos 99 anos.

 

 

A versão do conto “Cemitério de elefantes” que o Pensar reproduz neste sábado, em homenagem a um dos maiores escritores brasileiros, está na 22ª edição, lançada em junho deste ano pela Record, com apresentação do argentino César Aira. A partir de 2025, a obra de Trevisan passará a ser publicada pela Editora Todavia.

 

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