Num país construído com bases fincadas no tráfico de escravizados e exploração da mão de obra negra, a luta pelo direito dessa população e seus descendentes é comumente marginalizada, silenciada, até mesmo apagada. Esta estratégia é parte de um arcabouço institucional que visa impedir revoluções, manter um aparente estado de normalidade e democracia racial. Discussões silenciadas, entre várias causas, pela falta de acesso de pessoas pretas a espaços de poder e influência, como universidades, tribunais de Justiça, parlamentos, entre outros.
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Em “Assombros da casa-grande: A Constituição de 1824 e as vidas póstumas da escravidão” (Fósforo), Marcos Queiroz, professor de história e teoria do direito e direito constitucional no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília (DF), traz à tona alguns desses debates silenciados.
O ponto focal do livro é a Constituição de 1824, tida por muitos como marco do pensamento liberal e um avanço constitucional após a Independência, que serviu para prolongar a escravidão por décadas e, ainda, fortaleceu os laços umbilicais entre o escravismo e o constitucionalismo brasileiro. Na análise de Queiroz, o ensino no Brasil, tanto no direito quanto em outras áreas de humanas, é baseado em perspectivas e ideais eurocêntricos – a quebra deste paradigma é fundamental na luta contra o racismo. “O ensino no Brasil é o ensino eurocêntrico, que apaga a contribuição da população africana e dos seus descendentes, e também da população indígena”, detalha.
Ao longo dessa viagem do livro ao século 19, o professor apresenta e discute as proposições de intelectuais e políticos brasileiros que, à época, estabeleceram meios legais para a manutenção da escravidão, assustados com a Revolução Haitiana de 1791, na qual os negros lutaram para se libertar do domínio de seus senhores e, também, pela independência do país diante do sistema colonial escravista francês.
“A população negra desprovida dos lugares formais de cidadania era aquela que mais tinha uma concepção coerente do que é ser cidadão”, avalia Queiroz.
Entre as medidas estabelecidas naquele século que perpetuaram a marginalização dos negros brasileiros estão a Lei de Terras, que dificultava a ocupação por pessoas pobres, e a Lei Saraiva, que excluía do direito ao voto as pessoas analfabetas, o que só foi ter fim mais de 100 anos depois, em 1985. Na seara do racismo institucionalizado, a rebeldia mais recente dos marginalizados foi a luta pelas ações afirmativas no acesso ao ensino superior, discussão que assombrou, e ainda assombra, a casa-grande, que, da colônia à contemporaneidade, vive o temor de qual será a próxima revolução que terá de combater.
Em entrevista ao Estado de Minas, Marcos Queiroz explica como o combate à estrutura do racismo deve passar pelo ensino das relações étnico-raciais no ensino fundamental e superior, especialmente no curso de direito, no qual a doutrina pouco aborda a relação entre constitucionalismo e escravidão.
Sobre o autor
Professor do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), doutor em direito pela Universidade de Brasília (UnB), com doutorado sanduíche na Universidade Nacional de Colômbia (Programa Abdias Nascimento/ Capes) e na Universidade Duke (Fulbright), Marcos Queiroz é também editor da Revista Jacobina.
Ficha do livro
“Assombros da casa-grande: a Constituição de 1824 e as vidas póstumas da escravidão”
Marcos Queiroz
Fósforo Editora
256 páginas
R$ 89,90
Entrevista com Marcos Queiroz
Falar sobre o racismo no Brasil é quase como navegar num oceano interminável, devido à forma como ele foi institucionalizado e faz parte de todas as esferas da nossa sociedade. Por que trazer os “assombros da casa-grande” à tona justamente a partir da Constituição de 1824?
O primeiro motivo é a efeméride do bicentenário da Independência, em 2022, e, posteriormente, o bicentenário da Constituição do Império, este ano. Muitas vezes, quando passamos por essas efemérides, especialmente em relação ao século 19, há um grande apagamento, ou um grande silenciamento, em relação à escravidão.
O primeiro ponto era usar esta efeméride sobre a Constituição de 1824 para, junto com várias outras iniciativas articuladas por intelectuais negros no Brasil, podermos discutir a presença do racismo na formação social brasileira, suas consequências e a sua presença no Brasil contemporâneo.
O segundo motivo é que há um certo senso comum histórico no Brasil a respeito das relações raciais. E, do ponto de vista do ensino jurídico, nós precisamos enfrentar e tematizar o racismo no direito. Particularmente no caso do século 19, pensar como a escravidão montou e moldou as instituições imperiais. Portanto, o objetivo do livro era discutir racismo e escravidão dentro da história do direito, usando o recorte do século 19.
Essa é uma discussão silenciada até hoje, basta olhar para os currículos. Pouquíssimas faculdades implementam as diretrizes do próprio curso de direito, aprovadas pelo MEC e pelo Conselho Nacional de Educação, que devem debater o ensino das relações étnico-raciais no Brasil. É um silêncio estrutural.
A terceira razão era retomar o protagonismo negro na história. Por mais que o livro seja focado na construção dessa desigualdade por meio do direito, é um texto também formado pelo pensamento negro e pela contribuição dos intelectuais negros. E, além disso, é um livro que resgata a agência da população negra na diáspora para pensar como o direito moderno é forjado em disputas nas quais a população negra é uma das protagonistas.
E também colocar na história do direito as revoltas, as revoluções, como é o caso da Revolução Haitiana, e as insurgências, como é a Rebelião dos Malês. Colocar agências individuais, como as de Emiliano Mundurucu. Mostrar que o direito foi disputado também pela população negra, a despeito das condições absolutamente adversas na qual ela se encontrava no século 19.
A doutrina que monopoliza os cursos de direito é feita sob a ótica de autores brancos, que nunca foram grandes estudiosos do escravismo brasileiro e sua relação com o constitucionalismo. O livro trata sobre como este cenário perpetua mitos, como o de que a Constituição de 1824 não está necessariamente atrelada à escravidão. Você enxerga, hoje, a necessidade da revisão das doutrinas utilizadas no ensino do direito brasileiro?
Totalmente. Eu acho que o racismo, por ser um fenômeno complexo, e, de certa forma, constituir a base da nossa lógica social, vai requerer uma série de iniciativas para ser desmontado e desgastado. Vai requerer, por exemplo, presença negra em determinados espaços e mudanças nos nossos referenciais de mundo. Quem a gente lê, quais assuntos estudamos, como é que estudamos. E isso, do ponto de vista do ensino, envolve curricularizar o ensino das relações étnico-raciais, que é uma demanda histórica do movimento negro.
O ensino no Brasil é o ensino eurocêntrico, que apaga a contribuição da população africana e dos seus descendentes, e também da população indígena. Além disso, estabelece como parâmetro de mundo valores, estética e política de base eurocêntrica. Temos que mudar isso. É mudando os referenciais, os autores, as perspectivas que se formam melhores profissionais, que não só manuseiem uma compreensão mais aguçada sobre o racismo, mas que na sua atuação, como jornalista, advogado, médico, engenheiro, sociólogo, tenha melhor compreensão de que sociedade é essa com que ele vai ter de lidar.
A Constituição Haitiana após a libertação dos escravizados apresenta um conceito de propriedade que difere dos textos brasileiros, como o da Constituição de 1824, que garantia que os escravizados, ou seja, vidas humanas, fossem propriedades. O quanto esse conceito de propriedade influenciou no nosso arcabouço jurídico e na vida das pessoas?
Tem uma citação de Achille Mbembe (filósofo e cientista político camaronês), no “Crítica da razão negra”, que diz que “o africano escravizado é o protótipo e o prenúncio de toda a propriedade que surgirá posteriormente na modernidade”. Mbembe mostra como o sistema mercantil, que vai dar origem ao capitalismo no século 18, tem uma forma de produção de valor em torno de uma “coisa”, de um ser humano que foi coisificado, objetificado, para se tornar mercadoria. E o que passa essa coisificação é a própria raça, é desumanizá-lo por meio do racismo.
Mbembe mostra que a formação desse sistema vai ser possibilitada justamente pelo comércio de pessoas. Aquilo que possibilita a presença europeia na África e nas Américas é justamente a circulação de pessoas negras africanas e seus descendentes enquanto propriedade. Os haitianos, por terem sido vítimas desse processo de uma forma extremamente radicalizada, vão logo colocar na sua Constituição: se reconhece a propriedade, no entanto, se afasta a apropriação do trabalho alheio como propriedade.
O que significava essa propriedade sobre outro ser humano? Com esse ser humano você poderia fazer absolutamente tudo, que é aquilo que eu chamo de propriedade absoluta. Eu poderia emprestar o meu escravo, poderia doá-lo, arrendá-lo, colocá-lo de novo no mercado. Eu poderia, como aconteceu na fundação do Banco do Brasil, depositá-lo no banco para conseguir crédito. Ou seja, dou garantia dos meus escravizados de que pagarei um empréstimo.
Poderia fazer tudo isso que envolve a engenharia econômica relacionada à propriedade, mas mais do que isso. Dentro dessa ideia, eu poderia torturar o escravizado, mutilá-lo, se for mulher poderia estuprá-la. Portanto, é uma ideia absoluta e, assim sendo, o direito e a construção jurídica por meio do Estado não podem atingi-la – que era o que os senhores defendiam no Brasil.
De certa forma, esta visão muito absolutista do direito de propriedade forma o Brasil até hoje, inclusive no debate público. É um país que tem dificuldade de fazer reformas que, de alguma forma, controlem e tentem distribuir a propriedade privada.
O livro mostra que o negro não é visto como cidadão por leis dos períodos colonial e imperial, que estabeleceram normas marginalizantes que perduraram na República, como a proibição de voto aos analfabetos. Desde então, tivemos vários textos constitucionais, o que inclui a Constituição de 1988, que recebe o nome de Constituição Cidadã. Em algum momento, nós, negros, nos tornamos cidadãos?
Eu acho que, se a gente olhar as estatísticas, o ponto de vista mais factual do termo, elas mostram que não. Talvez a maneira como o Estado brasileiro nos vê, não. Isso é um fato e acho que é bom até ser claro em relação a isso. Por exemplo, a tortura é legitimada pelo Estado quando se trata de pessoas negras que vivem em zonas periféricas, associadas às zonas de “criminosos”.
Outro exemplo é a falta do devido processo legal. A polícia não pode entrar na casa de alguém sem um mandado judicial, e a gente sabe que isso constantemente é violado. Às vezes até o próprio Poder Judiciário expede mandado de busca e apreensão coletivo na casa de pessoas, para um bairro inteiro, como a gente viu na época da implementação das UPPs, sendo que o mandado deve ser individualizado.
Outro exemplo é que o nosso sistema é adversarial, de produção da prova, ou seja, as partes devem ter o mesmo peso no processo. Para condenar alguém é preciso produzir muitas provas, e a gente sabe que boa parte dos presos hoje estão lá apenas com o depoimento e auto lavrado pela polícia.
Por outro lado, por mais paradoxal que seja, nós somos aqueles que exercemos e lutamos cotidianamente e historicamente para que o conceito verdadeiro de cidadania se concretize nestse país. Somos nós, os povos indígenas, os povos que foram violados, a classe trabalhadora brasileira. Fomos nós que, no império, a despeito de não estarmos nas instituições, lutamos contra um sistema institucionalizado: a escravidão. Portanto, a população negra desprovida dos lugares formais de cidadania era aquela que mais tinha uma concepção coerente do que é ser cidadão.
Se a gente olha para a história da República, quem é que luta por igualdade, por justiça social, por democratização do espaço público? Em geral, são os excluídos. O conceito de cidadania é sempre um conceito em aberto, preenchido pela luta por dignidade das populações excluídas, na qual a população negra é majoritária.
Essa cidadania é muitas das vezes construída justamente na luta por aquilo que é negado. Tem uma fala da Wlamyra Albuquerque, no documentário “A última abolição”, que diz que “a população negra no país nunca teve nada que foi dado ou concedido para ela. Tudo é esforço de muita luta, de muito enfrentamento”, e isso é justamente o exercício da cidadania. Lutar por direitos, lutar para que a sociedade se comprometa com outro pacto social mais equânime, mais igual.
Trechos do livro
“Assim, enquanto o direito de propriedade era utilizado por toda parte para manter, proteger e expandir o escravismo dentro dos esquadros do liberalismo, no Haiti ele era definido de ‘uma maneira que tornava inadmissível a escravidão, vista como uma violação dos direitos do homem e uma violação do direito de um indivíduo à sua própria propriedade ou pessoa’. Na contemporaneidade, em que o direito de propriedade cada vez mais se absolutiza, reciclando a perversão da cultura jurídica senhorial, a história apagada do Haiti nos deixa importantes lições.”
“No cotidiano do século 19, as fronteiras entre liberdade e escravidão eram sempre incertas e fluidas para os libertos, pois eles carregavam na pele o antônimo do sentido de ser cidadão, isto é, a branquidade. A raça tornava precária a condição de liberdade e era reforçada por normas de vigilância e punição, que eram substanciadas pelo medo da rebelião negra. Esse aparato jurídico generalizava a suspeição sobre todos os negros e fortalecia a autoridade dos senhores, pois o grande testemunho de liberdade do liberto ainda era a voz emanada da casa-grande.”