Adriano Oliveira
Izabela Baeta
Enquanto as salas de cinema do Brasil estão lotadas para ver “Ainda estou aqui”, filme de Walter Salles baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, Ana Cristina Braga Martes pode passar despercebida nas livrarias com uma história que carrega semelhanças e comove na mesma medida. Lançado no fim de 2023 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, “Sobre o que não falamos" também traz uma visão sobre o silêncio causado pela ditadura militar nas famílias brasileiras, mas, como a própria autora diz, em um contexto diferente do vivido por Eunice Paiva e seus filhos.
Ao começar a escrever um conto sobre uma menina que morava com os avós, Braga Martes percebeu que havia muito mais a ser dito. No silêncio das borboletas mortas colecionadas pelo avô da personagem principal, a autora se encontrou em meio à ditadura militar, que perdurou no Brasil de 1964 a 1985.
“Eu escrevi descobrindo a história. À medida que os personagens iam agindo, aquilo ia ficando mais claro pra mim. Eu sempre volto e escrevo, dando alguma consistência, entendendo que personagem é esse. O tema, o fato dele ter se encaixado muito bem agora, na minha intenção de fazer livro, não foi nenhum. Mas na minha concepção de Brasil, que é uma coisa que está ali no livro, tem tudo a ver e vai ter por muito tempo, infelizmente. Não sabemos se o pior já foi vivido, porque o Brasil é um país que teve golpes de estados sucessivos, só no século passado tiveram cinco, dependendo de como você conta o tempo, seis. Agora estamos vivenciando outros tipos de golpe, ameaças de golpe. Acho que tem muito a ver com a violência desse país desde sempre, com o país que teve escravidão, que foi colonizado”, conta.
A jovem menina, que tem o nome e idade escondidos durante grande parte da obra, nunca conheceu os pais, nem mesmo ouviu histórias, já que seus avós recorriam à mudez quando perguntados sobre. Não entendia também o que eram as palavras “Abai...” e “Dita…” às costas de sua mãe na única foto que tinha dela.
Acompanhada pelo reumatismo, a personagem vive, ao longo dos capítulos, um processo de descobrimento pessoal. “Quase negra”, como foi chamada por uma de suas “amigas”, ela ficava confusa quando seu cabelo tomava a atenção das pessoas.
“São muitos temas ali. A ditadura eu acho que é mais marcante, acabou ficando por causa desse contexto que explodiu tudo, mas o racismo é um tema muito importante, o feminicídio é um tema muito importante que está no livro. Tive a sorte de ter uma protagonista menina, que para tocar nesses temas, ela tem que falar sobre aquilo que ela nunca viu. Explicar para ela mesma. Ela fica levando susto o tempo todo, se transformando numa mulher.”
Com o desenrolar da história, o leitor descobre, junto à personagem, que os pais faziam parte de um grupo considerado subversivo pela ditadura militar. O silêncio, então, passa a fazer sentido.
A pequena Vila, comandada por um temido Capitão, em um tempo de repressão e censura, não dava à garota as respostas que ela buscava. Para Braga Martes, o cenário representado ainda persiste, mas de uma maneira diferente.
“Acho que esse silêncio está até hoje, daí o nome do livro: ‘Sobre o que não falamos’. Quando comecei a conversar com as pessoas, ainda estava em uma polarização – e ainda está –, mas a polarização naquele momento ficou mais nevrálgica. Conversei com algumas pessoas que tiveram parentes que sofreram alguma perseguição ou que fugiram na ditadura, e elas falaram assim: 'Mas nunca conversei com meu pai sobre isso'. Sabia que tinha uma história, e aí fui perguntar: ‘Seu pai te contou que saiu fugido, que foi se esconder?’. ‘Não, ele nunca me falou’. Na ditadura, você tinha censura, medo, repressão. As pessoas não falavam por uma questão até bem objetiva, a 'faca apontada para a cabeça'. Mas agora a gente teve a democracia, e a coisa não mudou. É um país que não foi passado a limpo nesse sentido.”
Marcados pelo silêncio
Silenciosa é a maneira que fica a casa da família Paiva quando o patriarca, Rubens, é levado pelos militares para prestar esclarecimento. Ao passar pela porta, ele viu a esposa pela última vez.
“Esse silêncio do filme existe no meu livro também, achei incrível esse paralelo. Significa, pelo menos para mim, que consegui captar uma coisa que não é só minha, que uma pessoa quando vai fazer um livro sobre ditadura pega esse ponto também. Claro, são histórias muito diferentes. Ele (Rubens Paiva) é classe média alta, do Rio de Janeiro, os pais intelectualizados. Era outro contexto. Mas marcados também pelo silêncio.”
Enquanto a obra de Ana Cristina é ficcional – ainda que existam referências da vivência da autora –, Walter Salles adaptou para as telas o livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado morto pela ditadura militar.
É nessa ótica, a partir do retrato da particularidade familiar, que Ana Cristina Braga Martes vê o grande diferencial do longa. Seja pelo desespero que Eunice tenta esconder dos filhos quando não tem respostas sobre o desaparecimento do marido ou até mesmo pelo limbo em que as crianças vivem, perdidas com a situação do pai e envoltos na tentativa da mãe de manter a família em pé em meio ao silêncio.
Nas telas, a procura pelas respostas e a forma com que Eunice lida com a falta de Rubens instiga o espectador.
No livro, a curiosidade da personagem principal guia o leitor na descoberta de temas que andam em paralelo – racismo, aborto, feminicídio.
“Acho que para você falar da ditadura de uma maneira comovente e levar dois milhões de pessoas para o cinema, você não pode falar isso de um ponto de vista sociológico, ou de um cientista político, porque não é isso que toca o coração das pessoas. Se eu te der estatísticas de feminicídio, morte de civis feitas por militares, estatísticas de pessoas torturadas, isso tem apelo muito mais racional do que um simples fato que te comova, que te coloca dentro daquela história, que choca emocionalmente”, acredita..
Para Braga Martes, a comoção gerada pela obra surte mais efeito para a memória da ditadura no Brasil.
Se nas ruas e dentro de casa há silêncio sobre o que foram os anos de chumbo, estão estampados no cinema (e no livro) os sentimentos mais particulares e profundos trazidos pela época em que os militares estiveram no poder.
“Você tem trilhares de livros falando sobre a ditadura, explicando a ditadura, mas acho que nenhum deles é best-seller. Então, como é que você fala para as pessoas sobre o que foi a ditadura? Esse filme é bárbaro para falar isso. É falando disso, como é que a subjetividade, disso que se trata a arte. Como que a arte pode captar essa subjetividade terrível, apavorante. Com isso você é transportado para aquele lugar. Uma estatística sociológica, um quadro, uma tabela, não te transporta para lugar nenhum”, defende Ana Cristina Braga Martes.
“Acho que o filme é maravilhoso, tocante, do jeito que ele é. E é uma história real. É inacreditável que uma pessoa possa ter ficado naquelas condições, aprisionada, encarcerada, sem que ela soubesse nada. Não tinha nada para falar, ela (Eunice Paiva) não sabia. Olha o tanto que isso fala da ditadura.”
“Essa memória não pode apagar nunca”
Em abril de 2024, completaram-se 60 anos do golpe militar no Brasil. De lá pra cá, o país viveu seu pior ataque à democracia nos últimos sete anos – vide ia nvasão do Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro de 2023, dias depois da posse do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva.
Braga Martes não escondeu que, trazendo a história para os dias atuais, a narrativa está relacionada às atitudes do ex-presidente Jair Bolsonaro, que recentemente foi indiciado por tentativa de golpe.
Se seis décadas depois o assunto ainda parece tão atual e próximo, é uma lembrança para que as produções que rememoram a época não sejam ignoradas ou subestimadas. Para a autora de ‘Sobre o que não falamos’, as histórias que tratam a ditadura como pano de fundo são importantes para manter vivo o recado: não esquecer para não repetir.
“Acho que meu livro vai atingir as pessoas na medida em que elas foram impactadas de um outro jeito. É muito importante que esse conteúdo sobre a história do Brasil seja revisto. Não tenho autoridade para falar isso no sentido de que eu dei aula de história, talvez eu esteja até sendo injusta com vários professores. Mas de um modo geral, são muito poucas as aulas, e nenhum livro de literatura, nenhum filme vai substituir uma coisa conceitual”, afirma.
Ainda assim, as informações são guia importante para exemplificar a ditadura. Por trás da história criada por Ana Cristina Braga Martes, há números reais da representação de Rubens Paiva nos cinemas.
Segundo a Comissão da Verdade, foram 191 pessoas assassinadas e 243 desaparecidas em nosso país. Além disso, aproximadamente 20 mil pessoas foram torturadas no período brasileiro.
“Espero que meu livro sensibilize as pessoas para que elas corram atrás dessas informações. Meu livro não tem como objetivo informar, exatamente. Mas se uma pessoa está sensibilizada por aquele tema, ela vai atrás, ela vai querer saber. Pega o Google, é tão fácil... Mas acho que é isso: o que a arte pode fazer é sensibilizar. É chamar a atenção, pegar nesse traço da subjetividade humana, da emoção. E essa memória não pode apagar nunca, ela não tem um fim”, defende a autora de “Sobre o que não falamos”.
Sobre a autora
Ana Cristina Braga Martes é mineira, natural de Varginha, Região Sul do estado. Formada em ciências sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), fez mestrado na Universidade de São Paulo (USP) e doutorado pela mesma instituição, sendo que parte foi feita também no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Trabalhou como professora na Fundação Getúlio Vargas (FGV) até 2019, quando decidiu se dedicar integralmente à literatura. Como autora, publicou “A origem da água” (2019) e “Sobre o que não falamos” (2023).