Em “O turista aprendiz: Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega”, Mário de Andrade (1893-1945) narra a viagem pela Amazônia em 1927 na comitiva da amiga e mecenas Olívia Guedes Penteado. Publicado pela primeira vez em 1970, o livro ganha relançamento que recupera o manuscrito original de 1943, revisto pelo autor.
A nova edição inclui 14 fotografias que Mário fez com sua câmera ao longo da viagem e um mapa detalhado do trajeto percorrido. A organização, apresentação e as notas são da tradutora e pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux, diretora de pesquisa da Rádio Novelo e responsável pela tradução da obra para o inglês. A edição da Tinta-da-China Brasil tem design assinado pela artista portuguesa Vera Tavares. Leia, a seguir, trechos do texto de apresentação de Flora Thomson-Deveaux: “No rastro do Turista”.
Flora Thomson-Deveaux
Brasileiro que nem eu.
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Aexpressão definitiva do desejo de abraçar uma ideia de nacionalismo foi “Macunaíma: Oherói sem nenhum caráter” – obra que desafia as categorias de gênero e que Mário de Andrade descreveu como uma “rapsódia” –, a saga de um (anti-)herói mutante desde o nascimento na foresta, passando pela paisagem urbana brasileira, e de volta para a foresta. Amaior parte foi escrita em 1926, num frenesi de seis dias na fazenda de um amigo, abastecido de cigarros e embalado pelo balanço de uma rede, sem nunca ter pisado as paisagens tropicais que ele trouxe à vida. Não que a ideia fosse descrever fielmente as forestas brasileiras – ao contrário, o livro é o que ele chamava alegremente de um caldeirão “desgeografizado” de flora, fauna, gírias, figuras históricas e lugares de todo o Brasil, quase nada localizado onde “deveria” ser.
Oconvite para viajar do Rio de Janeiro até a fronteira no extremo ocidente brasileiro, num vapor, pelos rios Amazonas e Madeira, chegou quando Mário estava revisando “Macunaíma”, que seria publicado no ano seguinte. Ele foi o primeiro a admitir que não era um grande viajante. Até mesmo quando os amigos faziam o que pareciam ser inevitáveis peregrinações transatlânticas e o incentivavam a visitar Paris, sob o risco de nunca entender o mundo moderno, Mário os repelia e fincava pé. Embora recebesse inúmeros convites para visitar a Europa, participar de colóquios nos Estados Unidos, na Argentina e em outros lugares, ele só pisou fora do território brasileiro nas breves ocasiões narradas aqui – alguns dias no Peru e uma tarde na Bolívia. Aviagem pela Amazônia seria uma das grandes jornadas de sua vida.
Mário saiu de São Paulo em 7 de maio de 1927 e voltou no dia 15 de agosto. Oroteiro está no título: “O turista aprendiz: Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega” (uma paródia, entre outros tantos diários de viagem, das reflexões políticas e administrativas que seu avô materno Joaquim de Almeida Leite Morais fez em 1883, numa viagem “de S. Paulo à capital de Goiás, desta à do Pará, pelos rios Araguaia e Tocantins, e do Pará à Corte”). Viajaram de trem e de vapor, de canoa e de “automóveis de pó” e “de trote”: de trem de São Paulo para o Rio, depois de vapor, subindo pela costa até Belém do Pará, na foz do Amazonas, de lá pelo grande rio até Iquitos, no Peru, passando por Manaus na descida de volta, e depois subindo o Madeira até a fronteira boliviana, e então descendo de volta, pelo Madeira, pelo Amazonas, pela ilha de Marajó e pela costa brasileira. Mário não deu palpites sobre o trajeto, que deve ter sido desenhado para servir aos interesses dos negócios da organizadora da viagem, que ele apelidou de Rainha do Café e a quem serviu de coadjuvante ao longo da viagem (num determinado momento, quando uma autoridade local fez um discurso de boas-vindas dirigido especificamente a ele, Mário quase caiu para trás)
Arelação ambígua do escritor tanto em relação à viagem quanto ao processo de retratá-la em palavras é parte do que faz “Oturista aprendiz” tão extraordinário. Assim como muitos de nós, ele fica dividido entre mergulhar de cabeça na viagem e passar o tempo transformando as experiências todas em narrativas – só que, ao contrário de tantos de nós, ele tem uma formidável bagagem mental de referências literárias, que simultaneamente enriquecem e ofuscam tudo o que ele vê. Odiário de viagem se passa entre alusões aos primeiros cronistas do Brasil tropical, de José de Alencar a Pero Vaz de Caminha e Euclides da Cunha, e é pontuado por referências igualmente “desgeografizadas” que vão de Dante a Bocage. Seu desejo de conhecer a região, nutrido por muitos anos, funciona alternadamente como veneno e remédio: enquanto Mário se frustra com a falta de habilidade para enxergar algo de “útil” para fins literários, essa frustração faz brilhar ainda mais os momentos de acaso feliz da viagem.
Oparadoxo da literatura de viagem parece sintetizado numa entrada de 7 de junho que descreve a grande vitória-régia amazônica: o ato de descrever tem o mesmo efeito que o do viajante que rema até a planta, corta o caule pra pegar a flor, “mas já estragando um bocado” no processo. Mário, um dos melhores e mais pródigos epistológrafos que a literatura brasileira já conheceu, enviou uma única carta durante toda a viagem, para o amigo e colega poeta Manuel Bandeira, e confessou que escrever a missiva “está me deixando numa tristeza que você não imagina”.
“Vou tomando umas notinhas porém estou imaginando que viagem não produzirá nada, não. Agente percebe quando sairá alguma coisa do que vai sentindo. Desta vez não percebo nada. Oêxtase vai me abatendo cada vez mais. Me entreguei com uma volúpia que nunca possuí à contemplação destas coisas, e não tenho por isso o mínimo controle sobre mim mesmo. Ainteligência não há meios de reagir nem aquele poucadinho necessário pra realizar em dados ou em bases de consciência o que os sentidos vão recebendo.”
“Oturista aprendiz” oscila entre descrições arrebatadas e entradas de diário práticas, sarcásticas, variando da indignidade dos “banhos” com cachaça ao fato de que o mesmo filme terrível estava passando no cinema de todas as cidades que a expedição visitou. Há também descrições valiosas de uma paisagem que desde então sofreu transformações e hoje está ameaçada de extinção – acompanhadas de abundantes fotografias tiradas pelo próprio autor – e voos imaginativos desorientadores, que incluem etnografias totalmente inventadas.
Depois de estudos exaustivos dos trabalhos de antropólogos e exploradores sobre as cosmologias de vários povos indígenas no Brasil, Mário estava ansioso para ter contato direto com comunidades pela Amazônia – tão ansioso que chegou a ter um pesadelo em que precisou discursar em tupi e lhe disseram, sem meias palavras, que ele tinha feito tudo “errado”. Omedo, de alguma forma, estava deslocado: no fim, o desejo de se aproximar de povos indígenas foi persistentemente frustrado ao longo da viagem, resumindo-se a interações fugazes e insatisfatórias.
Numa espécie de vingança literária, então, Mário começou uma série de relatos que desafiam a credulidade sobre suas expedições a aldeias indígenas. Num tom pomposo e pseudocientífico, ele informa seus leitores sobre sua visita aos Pacaás Novos, que acreditam que as partes mais vergonhosas do corpo eram o rosto e a boca, consideram que a conversa é tão íntima quanto a relação sexual e se comunicam chutando e balançando os dedos dos pés; e aos indígenas Dó-Mi-Sol, que conversam por frases musicais e se dizem descendentes orgulhosos de bichos-preguiça. Oefeito é swiftiano, principalmente quando se considera quão pouco se conhecia então – e ainda hoje – das centenas de povos originários do território brasileiro.
(Aponto de recentemente, depois de ouvir detalhes dessas “etnografias”, uma pessoa bem-informada me perguntar se os Pacaás Novos ainda seguem esses costumes. Não seguem nem jamais seguiram.)
“Nestes ‘apontamentos de viagem’, como dizia meu avô Leite Morais, às vezes eu paro hesitando em contar certas coisas, com medo que não me acreditem”, Mário escreveu, dando uma piscadela. Ao descrever a crônica – falha, apesar de best-seller – que Américo Vespúcio faz do Novo Mundo, o historiador John Hemming zomba, dizendo que esse navegador cronicamente inconfiável deveria ser o santo padroeiro de todos os escritores de viagem.
Enquanto as incorreções inadvertidas de Mário são relativamente poucas, seus exageros deliberados, suas distorções divertidas e mentiras deslavadas o situam numa longa e ilustre linhagem de pessoas que visitaram a Amazônia e esgarçaram a linha do que realmente viram e fizeram por lá.
Mesmo depois de séculos de exploração e estudos, a Amazônia demora a revelar seus segredos e ainda borra a linha entre o real e o fantástico. “Oturista aprendiz” se beneficia completamente dessa confusão. Sim, os apuís se enrolam em outras árvores a ponto de estrangulá-las até a morte, e sim, abelhasnativas fazem colmeias no oco de troncos apodrecidos; mas, não, o governo brasileiro não instalou neles uma torneirinha para extrair esse mel.
Mesmo tendo estudado profundamente o livro e viajado por parte da Amazônia, fui pega no contrapé em alguns pontos. Achei que a descrição que Mário fez de certos bichos-preguiça como “apressadíssimos” fosse só piada, porexemplo. Pode até ter sido, mas fiquei envergonhada depois de ouvir um guia, em Manaus, dizer que a preguiça-real, a preguiça de duas garras, “era o demônio”: ela não apenas se move rapidamente, como também tem pavio curto. Se Mário fala com escárnio da lenda peruana dos jacarés de doze metros, um crocodilo pré-histórico chamado Purussaurus brasiliensis realmente chegou a perambular pela Amazônia, pesando várias toneladas e chegando muito perto da descrição do dr. Vigil.
Assim, para não estragar a diversão de Mário, contive meu impulso de sair checando cada informação: mas fiquem atentos, leitores, pois aqui se encontram, na mesma medida, lendas inventadas e verdades implausíveis. Tive que andar nesse terreno escorregadio enquanto traduzia o texto da viagem amazônica para o inglês – ele saiu nos Estados Unidos em 2023, pela Penguin, com o título “The Apprentice Tourist” (o resto não cabia na lombada do livro, só no frontispício).
Antes do começo da tradução, e logo no final do processo, pude viajar um pouco pela Amazônia, percorrendo o trecho do rio Amazonas entre Santarém e Belém, um pouco da região de Manaus e o Alto Rio Negro, o que me deu algumas pistas do que deve ter sido a experiência de Mário. Aferrovia Madeira-Mamoré na qual ele andou é hoje apenas uma lembrança distante, assim como os vaticanos e seus passageiros; mas, mesmo um século depois, uma viajante munida de caneta e caderno, cujo barco se aproxima de uma curva do Rio Amazonas, enchendo o horizonte de uma massa impenetrável de verdes deslumbrantes, consegue perceber os “mistérios vivos que se escondem lá detrás” e sentir que “a revelaçãovai se dar, grandiosa, terrível, lá da volta do rio
Arevelação grandiosa e terrível, desta vez, pode ser o quanto precisa ser feito para preservar aqueles mistérios vivos.
“O turista aprendiz”
De Mário de Andrade
Tinta-da-China Brasil
224 páginas
R$ 129,90