No livro

No livro "Árido – Histórias de outras vidas secas", escritores contemporâneos de todas as regiões do Brasil apresentam narrativas inspiradas na obra mais conhecida de Graciliano Ramos.

crédito: Reprodução

Ao longo de 500 anos, desde a invasão europeia aos territórios indígenas, o Brasil teve muitas vidas secas, geradas por fome, miséria e exploração desenfreada – agravados por longas estiagens –, que culminaram em abandono, violência e morte. Essa brutal aridez foi tratada por autores diversos, tendo como contraponto a luta e a resiliência diante de adversidades extremas, como José do Patrocínio (“Os retirantes”, em 1889) e Euclides da Cunha (“Os sertões”, em 1902), entre outros contemporâneos deles.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia

 

E mais adiante com os clássicos de José Américo de Almeida (“A bagaceira”, em 1928), e de Rachel de Queiroz (“O quinze”, em 1930). Até chegar à obra que cunhou a expressão de uma realidade nua e crua, “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, em 1938. E, por fim, a “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto, em 1955.


A dramática história da família de retirantes do simplório vaqueiro Fabiano, de Sinhá Vitória, do menino mais velho e do menino mais novo e ainda da simpática cachorrinha Baleia em fuga da seca implacável no Nordeste, descrita por Graciliano, virou símbolo de uma tragédia brasileira e ganhou o mundo. Foi adaptada para cinema, televisão, teatro, quadrinhos, cantada e verso e prosa, entre dores, lágrimas e indignação.

 


Essa fonte incessante acaba de inspirar mais cinco dramas narrados por escritores e escritoras de cada uma das cinco regiões do Brasil, reunidos em “Árido – Histórias de outras vidas secas” (editora Rocco). Em pouco mais de cem páginas, a carioca Ana Paula Lisboa, o paraibano Cristhiano Aguiar, a goiana Fabiane Guimarães, o gaúcho José Falero e o paraense Tanto Tupiassu criam suas contundentes inspirações fabianas ou gracilianas. E podemos dizer também severinas. São narrativas díspares com lastro desde a pré-história rupestre brasileira até o embate identitário de gênero atual, mas iguais em suas causas e consequências sociais.

 

ilustração

ilustração

Reprodução de Ilustrações: Gessica Ferreira do livro "Árido"


IDADE DA PEDRA

Em “Os pioneiros”, Fabiane Guimarães, semifinalista do prêmio Jabuti de 2024 com “Como se fosse um monstro”, conta a história da idosa Fátima que, orientada pelo filho distante, recebe um grupo de jovens cientistas que querem pesquisar as pinturas rupestres em uma gruta de sua chácara. “Fátima sabia muito bem que os visitantes estavam vindo pelas paredes. A mata era o umbigo de sua família, o lugar onde o avô tinha nascido, e o bisavô antes dele. A gruta, por sua vez, guardava um outro tipo de eternidade. Logo na entrada era possível perceber os primeiros desenhos, símbolos esquisitos encravados na pedra, uma saudação que talvez fosse direcionada às estrelas, porque em noite de lua cheia batia certinho com a luz”, relata o narrador.


“Mais para o fundo, entretanto, é que estavam concentrados os melhores registros. Em tinta vermelho como barro, homenzinhos com lanças e mulheres de tetas gordas caçavam bois gigantes, que por sua vez se replicavam, com orelhas ou chifres até desaparecerem no escuro do tempo. O desenho preferido de Fátima mostrava uma onça, que ela só sabia que era onça pelas pintinhas no corpo e pelo jeito como arreganhava os dentes, feroz como devia ser a intenção”, pensou também.


Fátima recebe então a visita de quatro homens e uma moça que vão fazer o mapeamento arqueológico das pinturas ancestrais. “A senhora tem um tesouro e tanto aqui”, diz a moça à mulher, que do alto dos seus 89 anos tenta entender o mundo da parafernália tecnológica. Com o correr dos dias, porém, a cordialidade entre cafés, bolos e almoços simples vai esfarelando pelo abismo social entre Fátima e o grupo. Os pesquisadores dizem que estão “redescobrindo a história”, mas a incompreensão e o preconceito com o ramo atual dessa história rupestre, representada por Fátima e a gruta, se manifestam de forma abrupta. A exclusão social, o etarismo e a hospitalidade menosprezada pelos jovens cientistas levam Fátima, então, a fazer uma vingança intempestiva e surpreendente.

 

 

Ilustração

Ilustração

Reprodução de Ilustrações: Gessica Ferreira do livro "Árido"

 

FOME E FÉ

 

Em “A campanha”, José Falero, autor dos romances “Os supridores” (2021) e “Vera”, que foi lançado neste fim de ano, também vai no rastro miserável de “Vidas secas”. Carlitos é um garoto negro, órfão e esfomeado que está, literalmente, às margens do mundo civilizado, numa rodovia na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, na fronteira entre Brasil e Uruguai. É enxotado de restaurante por pedir comida. “Te arranca já daqui, piá dos inferno”, vocifera um funcionário.


“Se um adolescente sujo, faminto e solitário não é fácil de ignorar mesmo nas grandes metrópoles, onde absurdos como esse são cada vez mais comuns, mais difícil ainda é ignorar um adolescente nessas condições à beira de uma estrada, no meio do nada”, observa o narrador. “Como não se perguntar ao menos de onde vinha aquela criatura? Como não se perguntar ao menos quais teriam sido as circunstâncias que conduziram-na a tamanha desgraça? Como não perguntar ao menos por onde andariam seus pais”, protesta o próprio narrador diante da indiferença geral.


Mais há algo mais cruel do que a fome momentânea. “Ruim, ruim mesmo é não ter a menor perspectiva de saciar a fome. Isto, sim, é terrível! A cada hora que passa sem que a boca mastigue, mais e mais se revolta o estômago, que a princípio apenas reclama ruidosamente, mas depois começa a espalhar pelo corpo inteiro uma alarmante sensação de fraqueza, ameaçando interromper para sempre o fornecimento de energia”.


Enxotado de novo e desesperado depois de dois dias sem comer nada, Carlitos encontra uma plantação de bergamotas para aplacar a fome, mas logo é perseguido como “ladrãozinho” por homens armados com foices e facões. Mais desesperado ainda, ele se apega a uma última esperança para se salvar, faz preces a Deus: “Padre nuestro que estás em el cielo, santificado sea Tu nombre...” Mas, nessa fuga atroz, Carlitos tem apenas uma ajuda parcial de Deus. O seu destino mesmo está ao deus-dará, a incerteza do acaso. Mais uma vez, como em “Os supridores” e “Vera”, Falero põe o dedo na imensa e incurável ferida da desigualdade social.

 

 

ilustração

ilustração

Reprodução de Ilustrações: Gessica Ferreira do livro "Árido"

 

INUNDAÇÃO


Em “A chuva lenta”, Tanto Tupiassu, pseudônimo de Fernando Gurjão Sampaio, autor de “Dois mortos e a morte e outras histórias”, faz uma curiosa inversão da miséria da seca para a miséria do excesso de água da chuva. A narradora expõe a sua própria situação crítica, na qual estão também Mariinha e Marapá, que veem sua casa ribeirinha e o seu mundo tomados pela enchente que não para nunca. O desespero e a luta pela sobrevivência levam a protagonista a uma realidade onírica paralela, uma espécie de lenda amazônica que envolve uma mulher-peixe.


Em sonho, a narradora sem nome entra por um túnel de terra e chega a um salão cheio de gente que parece conhecê-la. É abordada por uma mulher. “Por que tu demoraste tanto?”. “Mas eu nem sabia que tinha que vir”, responde. Em meio a muitas dúvidas, ela se surpreende ao ver o sonho com aquela mulher gentil se transformar em pesadelo num lugar parecido a um palácio “cercado de tanta boniteza, as paredes alvas e os lustres lindos”.


“Lentamente, as pessoas ao meu redor iam adquirindo feições não humanas, como se fossem meio gente e meio bicho, em um show de horrores indizíveis. E enquanto iam se transformando em coisas repugnantes, elas iam novamente me cercando, como se fizessem uma barreira para que eu não pudesse ir embora”, apavorada por estar num “fundo” desconhecido.


Desperta novamente e diante da chuva interminável, ela volta à rotina de lamentos. “Ali no meio do mato onde vivíamos, eu não lia, não estudava nem sabia o que acontecia no mundo justamente porque meu mundo era somente ali, aquela palafita encardida no meio de um mato que não sabia onde se localizava, ao lado de um rio do qual não sabia o nome, na casa de madeira mal-ajambrada que, esperançosos, chamávamos de chalé. Desde que me entendia por gente, eu queria ir pra a cidade e ter outra vida”, ela lamenta.


Mas nada é tão ruim que não possa piorar. De repente, toda a ilha começa a afundar engolida pelas águas da chuva. O único caminho é fugir. Mas que futuro haveria para uma órfã “nascida na ribeira”, os pais afogados, “moradora de matos sem nome, proprietária de uma casa e um trapiche comidos pela água e criada em uma ilha que não existia mais”? Enquanto isso, aquele mundo onírico e subterrâneo segue à espreita e pode ser salvação sublimada.


OUTRO MENINO

 

Em “O menino mais novo”, o menor dos cinco contos de “Árido – Histórias de outras vidas secas”, mas não menos dramático, Ana Paula Lisboa fala de felicidade e sofrimento entrelaçados com a passagem – ou a paralisação – do tempo. A escritora – que em 2014 recebeu o primeiro Prêmio Carolina de Jesus, em homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus, concedido a pessoas que têm a vida alterada pela literatura – apresenta aqui a história de uma mãe que teve o filho engolido pela violência, “a cabeça estourada pela nuca”.


“Para a mãe, o menino havia dito, há tempos, que viria. A barriga cresceu, de forma exuberante, tão grande que a mãe nem sabia de onde vinha tanta barriga.(...) Queria o menino, mas também não queria. Quando já era impossível esconder a barriga, a mulher tentou dormir para sempre. Quem sabe era só outro sonho em que um menino aparecia e se ela esquecesse, talvez acordasse sem a barriga, liberta de ter mais uma criança para cuidar”.


Mas o menino veio e nasceu chorando. “Sabe, quando alguém nasce, a gente ri e o bebê chora. Quando alguém morre, a gente chora e a alma ri”. A mulher, que já tinha duas meninas, agora tinha um menino também para cuidar. E todos eram felizes. “A família sabia medir, e o tempo era tudo, tudo que tinham”


Era um jovem com muita alegria e pouco tempo. Ao mesmo que queria fazer tudo, só conseguia fazer uma coisa por vez. Então, eram tantas as coisas que fazia de cada vez que não cabiam no tempo. Até que veio a tragédia e o tempo do menino acabou. E o tempo de todos parou, aprisionou-os. “O amanhã não estava mais no dicionário”.

 

VOLTA PARA CASA

 

Em “Sítio Ruim”, o professor e crítico Cristhiano Aguiar, que ganhou o prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, em 2022, traz “Vidas secas” para a narrativa do menino Emanuel, que se tornou uma garota que vai visitar as tias após a morte da mãe. E é apresentada a um quadro antigo. Ela conta: “A pintura representava uma família de retirantes nordestinos. A paisagem, pintada com traços ligeiros, remetia ao sertão. Eu enxergava um pai de família, que usava roupas de vaqueiro esfarrapadas, dois meninos, uma mulher com uma trouxa de roupa na cabeça e uma cachorra”.


A tia diz a ela: “Nossa família, sobrinha, veio lá dos cafundós das Alagoas, fora esses aí”. Cristhiano cria uma espécie de sequência da vida de Fabiano e Sinhá Vitória. Que fim levaram os personagens de Graciliano Ramos? Esta outra vida seca também fala de abandono social, do abandono de uma criança pela mãe distante que a deixou com o pai e dá sinais de vida apenas duas vezes por ano, com cartões-postais no aniversário e no Natal.


“Minha família paterna dizia que eu tinha silêncios. É, eu fui a silenciosa. Meu pai, sempre bêbado no final de semana, chorava às vezes e dizia ‘você tem poucas palavras meu filho, você puxou isso da sua mãe, da Pernambucana’”.


E foi esse filho que voltou tempos depois com vestido e maquiagem como uma garota, para estranhamento geral das irmãs da mãe e para um mundo que nunca lhe pertenceu e agora muito menos. Essa história continuada de Fabiano, entretanto, tem um “quê” de suspense, um “contrato” familiar misterioso que faz com que todos os primogênitos da família sejam homens, homens tolos. E ainda uma forte sugestão de um pacto de Fabiano com o Diabo, o Fabiano depois de “Vidas secas”. “Ese, para escapar da fome e salvar sua família, Fabiano fizesse um pacto com o Diabo?”, sugere Cristhiano em entrevista ao Pensar, para intrigar quem lê o conto.

 

Capa do livro "ÁRIDO - HISTÓRIAS DE OUTRAS VIDAS SECAS"

Capa do livro "ÁRIDO - HISTÓRIAS DE OUTRAS VIDAS SECAS"

reprodução

 

“ÁRIDO - HISTÓRIAS DE OUTRAS VIDAS SECAS”
• De Ana Paula Lisboa, Cristhiano Aguiar, Fabiane Guimarães, José Falero e Tanto Tupiassu
• Ilustrações: Gessica Ferreira
• Editora Rocco
• 112 páginas
• R$ 49,90 (impresso)
• R$ 20,93 (digital)