Graciliano Ramos -  (crédito: Editora Record/Divulgação)

Graciliano Ramos

crédito: Editora Record/Divulgação

 

ENTREVISTA / FABIANE GUIMARÃES


Autora do conto “Os pioneiros” do livro “Árido – Histórias de outras vidas secas”

 

“SENTI COM MUITA FORÇA A SOLIDÃO E A invisibilidade DOS PERSONAGENS”

 

FABIANE GUIMARÃES

FABIANE GUIMARÃES

arquivo

  

Como surgiu a ideia do conto "Os pioneiros" e como foi o processo criativo dele?


Há muito tempo eu queria escrever uma história envolvendo os sítios arqueológicos do Planalto Central. Em Brasília e Goiás existem inúmeras cavernas com pinturas rupestres e indícios dessa vida antiga, um tesouro que não é estudado com tanta profundidade como deveria. Muitos desses sítios arqueológicos se encontram dentro de pequenas propriedades. Quando a Rocco me fez o convite para participar da antologia, pensei imediatamente em escrever sobre essa relação de presente e passado sobrepostas para falar sobre um povo anônimo.

 

Qual a relação do conto com “Vidas secas”, seria uma analogia com o abandono e a quebra da ancestralidade? Afinal, Fabiano e sua família são desgarrados


Quando li “Vidas secas”, senti com muita força a solidão e a invisibilidade daqueles personagens. Acho que o livro é também sobre aqueles que não são vistos, sobre a presença da vida que nunca é enxergada, e é essa a conexão que eu quis fazer. Quando me perguntaram: “quem são as vidas secas da sua região?”, pensei nos pequenos lavradores, nos povos originários, naquela gente que estava aqui desde o começo dos tempos, mas nunca foi e segue não sendo valorizada na construção da nossa história.

 

 

Mesmo simplória, Fátima acaba reconhecendo a importância das pinturas ao executar sua vingança, mas, ao mesmo tempo, é como se fizesse um apagamento de suas origens. Esse paradoxo nas atitudes dos pesquisadores e de Fátima sugere que todos perdem. Faz sentido esta ideia no conto?


Acho que a vingança dela foi assumir o poder de apagar a história. Claro, todos perdem, mas ela já havia perdido tudo, de qualquer forma.

 

ENTREVISTA / CRISTHIANO AGUIAR


Autor do conto “O Sítio Ruim” do livro “Árido – Histórias de outras vidas secas”


CRISTHIANO AGUIAR

CRISTHIANO AGUIAR

Reprodução

  

Como surgiu a ideia e como foi o processo criativo de “O Sítio Ruim”?


Desde o início, assim que fui convidado, sabia que escreveria um conto fantástico envolto em uma atmosfera gótica, com imagéticas retiradas de narrativas de terror. Logo me veio à cabeça que eu deveria escrever sobre um tema sobre o qual nunca escrevi: o pacto demoníaco. Inicialmente, porém, e passei semanas nisso, eu tinha pensado em uma história que, embora envolvesse maldições familiares, não referenciava tão diretamente “Vidas secas”.

 

A ideia era pensar menos o tema da família e mais o tema da amizade, através da exploração da competição masculina e aí entraria a questão do pacto com o Diabo, que envolveria um antepassado de um dos dois personagens principais. Infelizmente, o enredo foi se enrolando e eu percebi que ele precisaria de um fôlego maior do que um conto. Aí, no meio do processo, no auge da minha angústia, em que quase desisti de participar da antologia, me veio a seguinte ideia: e se, para escapar da fome e salvar sua família, Fabiano fizesse um pacto com o Diabo? Hesitei um tanto em continuar com essa ideia, mas ela ficou tanto na minha cabeça que eu entendi que era a ideia certa.

 

Foi assim que “O Sítio Ruim” nasceu. Eu não queria contar a história de Fabiano e o seu pacto, e sim da sua descendência morando no Recife contemporâneo. Minha protagonista inicialmente seria um homem cis hétero, no entanto um dia, voltando do meu almoço, parado no semáforo na esquina de casa, me veio o estalo de que eu estava escrevendo sobre patriarcalismo, sobre castração e sobre desejo. Minha personagem, portanto, precisaria estar em uma travessia, e daí veio a sua dimensão trans. A Emanuel, minha protagonista, o leitor/a leitora a encontra nessa descoberta de si em relação à sua identidade de gênero e à sua sexualidade. Quando achei minha personagem, tudo veio de uma vez e escrevi o conto, a maior parte da base dele, durante horas de um único dia. O restante dos dias de trabalho foi de ajustes.

 

 

Qual a relação do conto com “Vidas secas”? A referência de ancestralidade com o quadro de retirantes apresentado à protagonista sugere ao leitor que o conto é uma espécie de continuação de “Vidas secas” sobre o que poderia ter acontecido com Fabiano e sua família. Faz sentido esta ideia ou seria apenas uma analogia sobre abandono social e afetivo?


A proposta do conto consiste em ser uma continuação de “Vidas Secas” pelo viés da literatura fantástica. Por isso, a referência ao quadro de retirantes, que justamente retrata a família de Fabiano e Sinhá Vitória. A fotografia descrita no conto desempenha o mesmo papel, pois mostra um Fabiano rico, porém atormentado pelo (suposto) pacto com o Diabo. Há outras relações que procurei estabelecer. Uma delas é brincar com a ideia de silêncio, uma característica que acho bem marcante no romance de Graciliano. No meu caso, eu trabalho o silêncio mais na chave do não dito dos segredos familiares, da maldição que parece acometer a descendência de Fabiano há gerações.

 

O silêncio que perpassa Fabiano, por exemplo, tinha a ver com a sua condição social, com a luta pela sobrevivência em um mundo que lhe impõe desafios de subsistência. Eu quis escrever uma família cuja condição financeira seria a oposta da família de Fabiano e Sinhá Vitória, mas cuja marca do silêncio ainda assim estaria presente. Outro ponto de contato é a questão patriarcal: eu considero que há um comentário muito inteligente em “Vidas secas” sobre patriarcalismo. Fabiano, por exemplo, tem o seu poder patriarcal fraturado, em parte seu comportamento paranoico se explica por esse motivo. Poder, na verdade, é algo sobre o qual eu tenho me interessado a pensar, em especial dentro das relações amorosas e familiares.

 

ENTREVISTA / JOSÉ FALERO


Autor do conto “A campanha” do livro “Árido – Histórias de outras vidas secas”

 

“PENSO NO MENINO DESAMPARADO PELA FALTA DE EMPATIA DAS PESSOAS”

JOSÉ FALERO

JOSÉ FALERO

Editora Rocco/divulgação

 

Como surgiu a ideia de escrever o conto “A campanha” e como foi o processo criativo?


O processo desse conto foi bastante peculiar. Tenho muita coisa que escrevo e que sobra. Tem contos inteiros, romances inteiros que eu desisto deles, mas não jogo fora. Especialmente, quando gosto de alguma passagem. E mesmo os romances que efetivamente publico têm trechos inteiros que acabam não entrando na publicação. E esses trechos arrancados da publicação final guardo para tentar aproveitar num outro contexto. Teve um romance que eu estava escrevendo e desisti. Tenho certeza de que ao longo da minha vida não vou mais trabalhar nesse romance. Só que tinham uma ou duas passagens que eu gostava muito, então, deixei uma guardada. Uma era esse conto. Era um menino em busca de comida numa estrada. E quando me chamaram para participar do “Árido, que seria aquela oportunidade de aproveitar aquele fragmento.

 

Foi assim que começou o processo. Comecei a trabalhar em cima daquilo. Esse menino falava um misto de português e espanhol por morar e ter sido criado perto da fronteira [com o Uruguai], muito familiarizado com o português e o espanhol. Comecei a construir o conto a partir daí. Não precisei orientar o texto no sentido das desgraças humanas e tudo mais, porque o texto já estava orientado nesse sentido. Já era um menino, ou seja, o texto já estava no tom análogo ao trabalho do Graciliano Ramos, só precisei desenvolver a partir dali. Criar alguns porquês para esse personagem e alguns outros porquês eu decidi não criar também por vários motivos, porque no conto não dá para trabalhar tudo também.

 

Mas também porque achei interessante essa perspectiva de deixar algumas coisas ocultas. Por exemplo, tu pode ler o conto e pensar: mas como esse menino foi parar na rua, o que aconteceu na prática para que ele fique sozinho? Achei interessante deixar oculto. Porque, no final das contas, quando a gente vê as pessoas na rua nos grandes centros urbanos, não é só nas estradas que isso acontece. A gente não sabe a história daquelas pessoas. Elas simplesmente estão ali, simplesmente precisando de ajuda. E achei legal focar nisso, foi um pouco assim o processo.

 


Qual analogia que é possível fazer com “Vidas secas”?


Penso nesse menino desamparado, nessa vida seca pela falta de amparo do Estado, pela falta de empatia das pessoas ao redor. A falta de afeto que a vida desse menino atravessa. Eu sei que é uma perspectiva bastante óbvia, mas acho interessante pensar a partir daí nas vidas secas nesse sentido. Se por um lado não dá para fazer o link da seca do Nordeste, tem uma seca metafórica também que empurrou esse menino para esse contexto? Uma seca justamente de saber com quem o governo está preocupado, o Estado está preocupado, uma seca nesse sentido de falta de amparo, falta de afeto, falta de empatia das pessoas.


“Carlitos passa fome, reza o pai-nosso e pede ajuda a Deus para escapar dos seus perseguidores. Éa primeira vez em seus livros em que há referência a Deus e à fé de um personagem? Onde cabem Deus e fé na miséria e na injustiça humana?


Não é a primeira vez. Foi muito “en passant” em “Os supridores”, mas que acho significativa. Sempre quando os caras [personagens] vão atacar os inimigos, tem um momento que eles falam: “rapaziada, fé em Deus, hein?” É simplesmente uma fala assim, mas muito significativa. Eu não aprofundei, não trabalhei o que era Deus para aqueles personagens. Mas eles contavam com Deus naquele momento. Então, não diria que a primeira vez que aparece no meu texto. (…) Outro momento que trabalhei, aí, sim, de maneira bastante profunda, foi numa crônica de “Mas em que mundo tu vive?”, que se chama “Ateu graças a Deus”.

 

Os textos de “Mas em que mundo tu vive” são autobiográficos, falando de mim mesmo, como vejo essa parada. Em “Ateu graças a Deus” falo como vejo essas questões. Na maior parte do tempo, não acredito em Deus, mas, às vezes, acredito. Eu mudo esse registro, pra mim faz sentido. No texto tentei explicar isso. A vida tem circunstâncias e circunstâncias. É o modo como vejo isso de acordo com a circunstância. Nesse texto agora [“A campanha”], o Carlitos tem uma fé bastante ingênua, é uma criança. Acho que fé ingênua talvez seja pleonasmo. Acho que toda fé cega é meio ingênua. E essa fé particular das religiões é bastante ingênua, porque parte justamente sempre do pressuposto de que tu não pode questionar, não pode mais olhar o mundo com um olhar questionador.

 

É uma cosmovisão bastante limitadora, que amputa o nosso sentido crítico, de olhar para as coisas e perguntar o por quê das coisas. Então, toda fé é meio ingênua, mas a fé do Carlitos, sobretudo, porque é criança, ele acredita em Deus como quem acredita no Papai Noel. Tem uma ingenuidade a mais ali devido à idade dele. Agora sobre onde cabem Deus e fé na miséria e na injustiça humana. A gente aqui tá falando do cristianismo em particular, porque o Deus em que Carlitos acredita é o Deus cristão. (...) Na prática, se tu quiser comprovar a existência de Deus, acho que não é possível. O que quero dizer é se o intuito da pessoa é demonstrar a existência de Deus de maneira científica, talvez não consiga.

 

Mas, como metáfora, acho muito válido. Esses pensamentos religiosos de modo geral nascem da tentativa de sistematizar o bom viver, uma tentativa que é muito antiga. As religiões dos povos originários aqui são baseadas em ensinamentos e pensamentos muito antigos. Acho que é importante levar isso em consideração porque são pensamentos que surgem numa época onde não se tinha conhecimento de praticamente nada. (…) Então, se por um lado não se tinha o conhecimento prático das coisas, por outro lado é um pensamento que veio sendo refinado ao longo de milênios. A gente consegue notar o próprio Velho Testamento, quanto é mais duro do que o Novo Testamento. Então, tem um refinamento desse pensamento ao longo do tempo, embora não seja embasado em conhecimentos empíricos.

 

É uma tentativa de sistematizar o bom viver, eu estar bem, eu estar com saúde ou valorizar minha vida. Mas não só essa coisa egocêntrica, mas na minha relação com os outros. Então, eu melhorar a minha convivência com os meus vizinhos, com os meus semelhantes. É a gente ter uma boa vida em sociedade. Uma vida sem violência. Deus e a fé cabem justamente aí, essa ideia de fé como tentativa humana de sistematizar a boa convivência. É claro que a gente tem que lembrar que tem outra coisa, todo esse universo da fé transformado num balcão de negócios. Isso é outra coisa, a sistematização não do bem viver, mas do lucro. (…) Importante é a fé enquanto tentativa de ser melhor. E tu não precisa ir numa igreja para isso, pode fazer isso em casa.

 

ENTREVISTA / TANTO TUPIASSU


Autor do conto “A chuva lenta” do livro “Árido – História de outras vidas secas”

 

TANTO TUPIASSU

TANTO TUPIASSU

Reprodução


Como surgiu a ideia e como foi o processo criativo de “A chuva lenta”?


A ideia de chuva lenta surgiu em uma ida a Abaetetuba, uma cidade próxima de Belém. De noite fomos passear em Beja, uma praia da cidade que é muito conhecida como local de visagens. Quando chegamos na beira da praia a maré estava alta e as ondas batiam com força no muro de arrimo. Aí talvez eu tenha tido uma visão, ou sonho, com a vida da Mariinha e da menina. Desde então a história percorria a cabeça e nasceu com “Árido”.


Qual a relação do conto com “Vidas secas”, abandono e miséria invertidos pela água e não pela seca?


A história dos ribeirinhos amazônidas é basicamente a mesma história de quem foge da seca: uma constante busca por sobreviventes. Aqui, havendo terra firme, também há fartura. Se tira das árvores, se tira do rio o mínimo pra sobreviver. Mas terra firme costuma ser raridade. Onde há firmeza há dono. E onde o ribeirinho pousa geralmente há solidão. Viver apartado do mundo, sem certeza de porvir ou de pouso seguro, mesmo que rodeado de águas, também é secura


A mulher-peixe seria uma adaptação da lenda da sereia Iara nos rios amazônicos como redenção ou tragédia humana?


A Iara é somente um dos encantados que vivem aqui. Tem encantado das águas e tem encantado do mato. Do povo do fundo, que vive nas águas. O Walcyr Monteiro (escritor paraense), descreve dois lugares de vivência: um entrando pela escadinha do Porto de Belém, outro na ilha da Coroinha, em frente ao Marajó. O povo de baixo pode conviver e interagir conosco, os vivos, se assim quiserem. Eles viveriam em locais cheios de luxo e riqueza, memória tardia de seus tempos aqui em cima. Às vezes, pra eles, não há redenção ou tragédia, mas somente vontade.