Sérgio Tavares
Especial para o EM
Doze anos depois de estrear com o livro de contos “Réveillon e outros dias”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, Rafael Gallo volta às formas breves. “Cavalos no escuro” reúne 10 narrativas centradas em personagens que são reféns ao mesmo tempo que perpetradores de seus dramas. Um manejo construtivo que evoca a caracterização ambígua dos protagonistas de seus premiados romances, no qual o autor não se acovarda em explorar a fundo temas e dilemas espinhosos.
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A antologia começa com o texto que lhe dá título. Ambientado numa propriedade rural, “Cavalos no escuro” segue um caseiro, cuja devoção ao patrão equivale apenas ao trato com os animais. Seu estado pacífico, no entanto, passa a ser perturbado pelos relinchos dos cavalos à noite, quando sua esposa é levada pelo dono da fazenda para dentro do estábulo.
Logo neste primeiro conto, Gallo estabelece assinaturas que irão se replicar por todo o volume: um estilo elegante, embora rascante, com habilidade para exercitar as sugestões, as elipses que convocam o leitor a reformular o não dito, apesar da contundência de suas abordagens.
“Fundo falso”, que vem em seguida, deixa mais latente a valorização desses vãos, utilizados como estratégia para sequestrar a expectativa e gerar uma surpresa. Um homem fadado a uma rotina monótona com o pai revela trechos de cartas enviadas para uma amada. A tensão do relato cresce, até chocar-se contra o desfecho disruptivo. “Bis” e “A maior voz de todos os tempos” são produtos de uma das obsessões do autor: a aproximação entre música e literatura.
No primeiro, um cantor se pega num conflito interno, em meio a um concerto em que o público está apenas à espera de seu maior sucesso. O segundo, mais regulado em voltagem emocional, narra a busca incessante de um neto por uma voz suspensa no tempo, enquanto seu avô, a única testemunha do enigmático timbre, marcha para a finitude.
“Anjo caído” é o ponto alto do livro. Montado na alternância de dois narradores, trata da obesidade mórbida de Davi, um jovem que, pressionado pela rigidez de dietas, complicações de saúde e compulsão alimentar, decide tomar uma medida drástica.
“Tento encontrar distrações, mas é difícil não pensar em comida. É como se a fome me escavasse por dentro; um bicho feroz dentro de mim, que ruge no estômago e crava as garras no meu pensamento”, roga o personagem. O outro relato fica a cargo de sua mãe, uma mulher zelosa e preocupada, através da qual a condição do filho se mostra o elemento catalisador da ruína de toda a família.
Gallo faz um convincente retrato de uma realidade longe da sua, cheio de incisos, complexo, de sintaxe bem-cuidada, que opera num fundo psicológico que não facilita em nada para o leitor, embora nunca escorregue para o apelativo. “Diário de transbordo #99”, por outro lado, é dissonante na autenticação de seu registro narrativo.
Em formato de vlog, o conto dá voz a uma influenciadora digital que, em busca de curtidas, convoca seus seguidores a escolher o novo nome que irá rematar sua transição de gênero. Mas o processo não se efetua como esperado, e a personagem decide realizar a destransição. Ao que parece, a intenção é denunciar a futilidade com que as redes sociais lidam com assuntos tão sérios, contudo o texto não consegue transitar bem pelos códigos que regem esse universo.
A boa forma volta nos contos finais. No ótimo “Fábrica de nuvens”, o olhar de uma menina, mesmerizado pela inocência, enxerga o pai como dono de uma fábrica de nuvens, enquanto o homem, um político da bancada religiosa, procura se livrar de um escândalo moral.
“Vidro” estabelece um paralelo entre hialurgia e as transformações escaldantes na vida de um adolescente órfão, desesperado por uma conexão afetiva. Ao passo que o sensível “O jardim das esculturas” encerra o volume, com uma declaração de amor para uma vastidão fantasmagórica, para alguém que, de algum modo penoso, encontrou “o caminho livre para o abismo”.
No mercado literário, corre o pensamento de que o livro de contos é uma preparação para o romance, um retrocesso para quem se consagrou nas narrativas longas. Saindo de um romance vencedor do Prêmio José Saramago, Rafael Gallo retorna aos textos curtos colocando por terra essa máxima equivocada, e mostrando que um bom autor se define pela inventividade e pelo domínio técnico, e não pelo gênero que pratica.
SÉRGIO TAVARES é crítico literário e escritor, autor de “Todos nós estaremos bem” (Dublinense)
“Cavalos no escuro”
• De Rafael Gallo
• Record
• 208 páginas
• R$ 64,90