O escritor romeno Mircea Cartarescu, nascido em Bucareste em 1956: criador do romance total -  (crédito: divulgação)

O escritor romeno Mircea Cartarescu, nascido em Bucareste em 1956: criador do romance total

crédito: divulgação


André de Leones
Especial para o EM

 

“Cheguei ao mundo numa realidade putrefata”, escreve o romeno Mircea Cartarescu a certa altura de “Solenoide” (editora Mundaréu, tradução de Fernando Klabin), “cujo tecido tinha buracos nos quais podia se enfiar um dedo, e minha busca é justamente por essas rupturas e rasgos da história.” De fato, ao longo de quase 800 páginas, o leitor perde a conta de quantos rasgos historiais é levado a frequentar.

 

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O que temos diante dos olhos é um autoproclamado antirromance, escrito por um duplo do autor, um de seus bilhões de “eus possíveis, prováveis, causais e necessários”, de tal forma que não é por acaso (na verdade, é uma das muitas autoironias do livro) que a narrativa comece com uma minuciosa investigação do próprio umbigo.



Dividido em quatro partes, “Solenoide” seria fruto de uma “escrita condenada desde o início, e não porque nunca chegará a se tornar um livro, mas porque permanecerá um manuscrito”, “um antilivro, a obra para sempre obscura de um antiescritor”, exemplo de uma literatura que não se pretende literatura – ou assim o narrador quer nos fazer crer.

 

Esse duplo que nos fala não se tornou um escritor celebrado, famoso, cotado para o Nobel de Literatura, não se tornou, em suma, o Cartarescu que conhecemos. Nada disso. Suas pretensões literárias foram destroçadas ainda na juventude, quando, participando de um sarau na universidade, foi ridicularizado e humilhado pelos colegas e por um professor após ler o longo poema intitulado “A queda”: “Falaram de meu poema como se fosse produto de uma patologia literária”.

 


O “manuscrito” seria o relato de uma vida aparentemente banal na Bucareste das décadas de 1970 e 80, ainda sob o regime ditatorial de Nicolae Ceausescu: os pais operários, a internação em um “preventório” para crianças tuberculosas, as ambições e humilhações literárias, a resignação à vida de professor, um casamento fracassado, o relacionamento amoroso com uma colega professora, Irina, e a redação do próprio relato, cujo destino não é a publicação, mas o fogo.


No entanto, e isso logo percebemos, não há nada de banal na existência do narrador. Desde sempre, ele parece trafegar por “eus”, realidades e dimensões outros, que se tocam e se contaminam de inúmeras formas. Antes do duplo que conhecemos, o autor celebrado, há outro: o irmão gêmeo (a “criança no espelho”, pois tinha os órgãos invertidos) que morreu ou desapareceu.

 

Quando pequeno, a mãe insistia em vesti-lo com roupas femininas, como se visse nele outra pessoa. À noite, ele recebe o que chama de “visitas”, aparições “reais, vivas, concretas” que surgem ao lado da cama, no meio da noite, “galeria de hóspedes noturnos”. Mas não há nada que se compare com o esgarçamento quadridimensional alcançado em outras passagens.

 


No fim das contas, Cartarescu não cria um “antirromance”, mas uma espécie de romance total, um “tesserato”: há elementos fantásticos (a menina gigante nos subterrâneos da fábrica, a seita dos “piqueteiros” e a deusa Danação, a abdução do porteiro, a descida do “messias” a um mundo microscópico, onde também será devorado por aqueles que intenta salvar), alucinatórios (além das aparições noturnas, o “lugar” para onde olha a esposa do narrador), políticos (poucos romances descrevem tão bem a precariedade da vida sob um regime totalitário, o consórcio de infindáveis conspirações que toma o lugar da realidade) e metaliterários (o manuscrito Voynich e toda a carga borgiana de diversas passagens).


“Solenoide” é um dispositivo capaz de transformar energia elétrica em mecânica, gerando um campo magnético. Há alguns espalhados pelo romance e, nele, pela cidade de Bucareste, que “não é uma cidade, mas um estado de espírito”. Há um solenoide sob a casa do narrador, de tal forma que ele e sua amante flutuam sobre a cama.

 

 

A lenta conexão desses dispositivos é preparada no decorrer de todo o romance, levando ao clímax que responde à pergunta colocada por Irina a certa altura: o que salvar das chamas, uma criança ou uma obra de arte? Na medida em que temos em nossas mãos o romance “Solenoide”, é possível dizer que Cartarescu conseguiu salvar ambos.


ANDRÉ DE LEONES é escritor, autor do romance “Vento de queimada” (Record), entre outros

 

Capa do livro "Solenoide"

Capa do livro "Solenoide"

reprodução

 

“Solenoide”
• De Mircea Cartarescu
• Tradução de Fernando Klabin
• Mundaréu
• 784 páginas
• R$ 146