Stefania Chiarelli
Especial para o EM
Grandes autores são capazes de plasmar universos regidos por leis próprias. Dentro deles, os leitores sentem uma espécie de familiaridade, aclimatando-se a personagens, situações e atmosferas. Nesse embalo, é quase concreta a vontade de ficar em contato por mais tempo com um determinado microcosmo – não queremos ir embora daquele lugar, talvez porque ele seja um lugar literário.
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Um dos principais nomes da literatura italiana contemporânea, Elena Ferrante soube inventar um mundo ficcional singular, sobretudo na chamada tetralogia napolitana, formada pelos títulos “A amiga genial”, “História do novo sobrenome” “História de quem foge e de quem fica” e “História da menina perdida”, publicados entre 2011 e 2014. Mais de 1.700 páginas depois, fechado o último livro da saga, ficamos um pouco órfãos desse abandono, tema tão caro a uma autora que se debruçou sobre histórias de esquecimentos e ausências.
Com a publicação de “Para além das margens – a Itália de Elena Ferrante”, seu público ganha um prolongado convívio com o universo ferranteano: nele fica garantida a possibilidade de percorrer piazzas, museus, bibliotecas e também becos, fábricas e vielas presentes na tetralogia. Conduzido com habilidade pela pesquisadora e jornalista mineira Isabela Discacciati, o volume elege um caminho produtivo para pisar o conturbado mapa das personagens Lila e Lenu.
Ao ler os romances a partir de sua relação com as cidades, Discacciati encontra um fio de ouro para costurar cenários de Nápoles, Ischia, Pisa e Florença, colocando em diálogo as cidades reais e os lugares imaginários por onde transitam as personagens. Letras e cidades vão compondo um itinerário muito próprio, e embarcamos em outras Itálias dentro da Itália, definidas por pontos geográficos destinados a ampliar a experiência de leitura. Lá estão o violento bairro da infância, a força do dialeto, o esmagamento da pobreza e a difícil arte de galgar posições sociais em uma Itália marcada pelo preconceito em relação ao sul do país e seus habitantes. O livro cruza fronteiras entre a ficção e aquilo que os olhos ainda conseguem captar das paisagens imaginadas.
O início do ensaio já nos coloca diante do perigo, recuperando a origem de Nápoles relacionada a Partênope, sereia presente na Odisseia, poema épico atribuído a Homero. O mito de fundação da cidade meridional se vincula a um relato de abandono, já que na narrativa homérica Partênope se enfurece por não conseguir seduzir Ulisses e se joga de uma rocha. O corpo em pedaços será levado pelas ondas à ilhota de Megaride, originando um povoado batizado com seu nome, para depois se tornar Neapolis, a nova cidade. Nápoles, o perturbador berço dos partenopeus, é enigma a ser decifrado nesse livro que mergulha nas entranhas da metrópole formada por lendas e tradições populares.
O volume chegou em sintonia com a ótima quarta temporada da série “A amiga genial”, que aborda a maturidade da dupla de protagonistas a partir dos acontecimentos narrados no livro “História da menina perdida”, trazendo as atrizes Irene Maiorino e Alba Rohrwacher nos papeis de Rafaella Cerullo e Elena Greco. O cardápio fica ainda mais suculento diante do lançamento de “Parthenope”, filme de Paolo Sorrentino, diretor de “A grande beleza” (2013), que escreve e dirige essa história passada em sua cidade natal. Mais sereias à vista.
Constituído de estatísticas, dados e fontes numerosas, o corpo também híbrido do livro não resulta em desarmonia – ao contrário, conteúdo e forma dialogam de modo fecundo em uma obra marcada pela ideia de transbordamento. Nesse contexto, surge em contraponto uma primeira pessoa na narrativa, alguém que opera a inscrição dessa instância íntima, pessoalizando o olhar em face do vibrante território ferranteano: “Eu cheguei a Pisa em fevereiro de 2004. Lembro-me de dias gelados, do céu azul e do clarão que se abria ao final do Corso Itália”, afirma essa narradora sempre implicada naquilo que relata.
Daí a presença de passagens marcantes, como na ilha de Ischia, em trecho sobre a história do lugar que foi inspiração e refúgio de grandes autores. Na pensão em que se hospeda, a pesquisadora consulta um livro de registros de hóspedes e ali encontra a presença do então jovem jornalista Truman Capote, que lá esteve no fim dos anos 1940. A década de 1950 também viu o cineasta Pier Paolo Pasolini circular pela região, quando escrevia uma reportagem sob encomenda para a revista Successo sobre a Itália do pós-guerra. Na mesma época, o poeta Pablo Neruda se banhou nas águas azuis do lugar, cuja temperatura terapêutica segue atraindo turistas.
Mas é a ideia de margem que dá o compasso do livro, cavando fundo na história de luta das mulheres italianas diante da dificuldade de enfrentar as regras de uma sociedade patriarcal, que negava às mulheres o direito de decidir sobre o próprio corpo, a exemplo da questão do aborto, regulamentado por lei desde 1978, mas na prática negado à maioria da população. O direito ao prazer e ao controle da natalidade tem peso importante ao longo da trama dos romances, que explicitam a dualidade das personagens entre a dedicação à maternidade e ao casamento e o desejo de liberdade representado pelo estudo e o trabalho intelectual.
Do lado de dentro, a memória trazida pelo léxico da infância comporta “crupe, tétano, tifo exantemático, gás, guerra, torno, escombro, trabalho, bombardeio, bomba, tuberculose, supuração”. O sufocante perímetro do bairro de periferia segue irradiando sentidos onde quer que se esteja. A fuga carrega sempre um tanto de ilusão.
Dos tantos espaços presentes, Nápoles sobressai. Território de forte tradição mística, em que altares, velas e estátuas homenageiam mortos conhecidos e anônimos, a cidade pode ser lida como um grande teatro que encena, a céu aberto, histórias em que fontes, esculturas e o próprio mar se traduzem em experiência estética. Do arcaico ao contemporâneo, ela se deixa inscrever por novos signos, como aqueles trazidos pela arte de rua, a exemplo dos murais do jogador Diego Maradona e do painel da dupla infantil de protagonistas da série televisiva “A amiga genial” na fachada lateral de um prédio no bairro Luzzatti, ponto de peregrinação de leitores fervorosos. O kitsch e o clássico se entrelaçam; a arte está no museu e na calçada, lado a lado com o apelo sensorial da religiosidade napolitana. Basta olhar e sentir.
Ali são “uma em duas, duas em uma”, como afirma a narradora em “História do novo sobrenome”, materializando a fusão entre as amigas. Uma rompe com o lugar de origem, a outra permanece; para depois intercambiarem posições. Nápoles, cidade-mulher percorrida por personagens reais e ficcionais, se dá a ver em minúcias na pesquisa de Discacciati, que encerra o percurso retomando o fio narrativo do princípio e apostando em figuras cruzando espaços liminares, na tentativa de organizar o tumulto interno a movimentar seus desejos.
Nesse sentido, Ferrante vive ainda uma vez nessas páginas, em um texto que se esquiva de oferecer aos leitores respostas definitivas: duas, uma, muitas, quantas? Nessa realidade intervalar, seguimos com Lila e Lenu, mão na mão, percorrendo o corpo da cidade em suas múltiplas artérias.
STEFANIA CHIARELLI é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF) e publicou livros como “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” (2022)
Trecho
(De “Para além das margens – a Itália de Elena Ferrante”)
Existe um conceito entre os napolitanos que parece uma espécie de frase feita, dita com pequenas variações, e que eu já escutei de pessoas diferentes, inclusive de Elena Greco, pela escrita de Elena Ferrante. É a ideia de que Nápoles é uma mulher muito bonita que procura esconder suas feridas com uma maquiagem a princípio bem-sucedida, mas passível de desaparecimento ao primeiro suor ou à primeira lágrima. (...) Mais uma passagem da tetralogia me vem à mente. Desta vez, é um trecho da “História do rancor”, parte dedicada à velhice, no último livro. Nele, Lenu pontua o momento em que deixa Nápoles definitivamente, em 1995, criticando terrivelmente as tentativas de ressurreição da cidade. “Que ressurreição era essa? Apenas uma maquiagem de modernidade espalhada aqui e ali ao acaso, com muita fanfarronice, sobre o rosto corrompido da cidade”.
“Para além das margens – a Itália de Elena Ferrante”
• De Isabela Discacciati
• Bazar do Tempo
• 220 páginas
• R$ 84