"Em minha reescrita das falas da avó, lancei mão de dois recursos básicos: deixar o napolitano soar livremente na página e traduzir as passagens em rodapé; e recorrer aos inúmeros registros coloquiais de nossa língua brasileira"

crédito: Divulgação

 

Livre docente em Letras Modernas e Estudos da Tradução da Universidade de São Paulo (USP), o crítico Maurício Santana Dias assina as traduções dos romances de Elena Ferrante que formam a tetralogia napolitana e também as obras de Domenico Starnone publicadas no Brasil pela editora Todavia.

 

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Nesta entrevista ao Pensar, ele comenta o seu trabalho e aponta semelhanças e diferenças na prosa de dois dos maiores nomes da literatura contemporânea italiana. “Ferrante tem uma escrita mais fluvial e disruptiva, violenta, abissal. Já Starnone é mais propenso à contenção e à economia narrativa, uma prosa que, apesar dos abismos, busca o equilíbrio da forma”, acredita.

 

Capa do livro História do novo sobrenome

Capa do livro História do novo sobrenome

reprodução

 


Como “Línguas” se situa na obra de Domenico Starnone, comparado com os outros romances que você também traduziu e foram lançados no Brasil?


Este romance de Starnonese concentra na formação de um jovem napolitano que, assim que conhece o amor aos 9 anos de idade, também começa a se interessar pela poesia e pelas línguas (as reminiscências daVida novade Dante são muitas). Aqui há uma maior imersão na língua napolitana em contraste com o italiano padrão, algo que costuma ser recorrente nas obras do autor, mas aqui se intensifica. Não por acaso o protagonista, aos 18 anos, ingressa na Faculdade de Letras de Nápoles e passa a estudar o napolitano “de casa” tomando sua avó como informante - e retomando a relação entre avós e netos que também é o centro de“Assombrações”.

 

 


Quais as principais características da prosa de Starnone e os maiores desafios para a tradução? Algum dos livros foi particularmente trabalhoso?


Toda obra literária sempre demanda um intenso trabalho de leitura, escuta e reescrita do livro a ser traduzido. No caso de“Línguas”, a maior dificuldade certamente foi buscar manter um certo equilíbrio entre as duas línguas-culturas que dão forma ao livro, mantendo na medida do possível esse bilinguismo na edição brasileira. Para as partes em napolitano, consultei alguns amigos de lá, especial o colega Alessandro Viola, a quem agradeço.

 


Você foi o responsável pela tradução da tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Os desafios foram semelhantes aos enfrentados no trabalho nos livros de Starnone ou foram de outra natureza? O que une e o que diferencia a prosa de ambos?


Diria que ambos têm uma prosa que é tensionada por duas culturas: a napolitana, local, familiar, afetiva, do bairro e da memória; e a italiana, geral, pública, controlada e, de certo modo, exilada das experiências de infância. Além dessa tensão, que é estruturante nos dois escritores, há as clivagens que dizem respeito ao mundo feminino e masculino, às classes sociais, à cultura letrada e iletrada etc. Ferrante tem uma escrita mais fluvial e disruptiva, violenta, abissal. Já Starnone é mais propenso à contenção e à economia narrativa, uma prosa que, apesar dos abismos, busca o equilíbrio da forma. Nesse sentido, acho possível dizer em linhas gerais que Ferrante é mais dionisíaca, e Starnone, apolíneo.


O “veneno corrosivo” do dialeto, segundo o narradorde “Línguas”, explode em momentos de perturbação.Quais os maiores desafios de trabalhara dimensão tensa entre o italiano padrão e o napolitano?


As passagens em que a avófalasão as que mais perturbam a normalidade italiana: ela é a depositária não só de uma língua tradicional, vista como subalterna em relação ao italiano padrão e ameaçada de extinção, mas alguém que vê o mundo de um ângulo diferente, mágico, fabular, até sapiencial a seu modo. Mas, não por acaso, está relegada ao papel de criada da casa. O neto tem consciência disso, mas mantém uma atitude ambígua em relação a ela, que é simultaneamente o que há de mais próximo e de mais distante. A perda parece irrecuperável.


O romance que lemos é um texto escrito, resultado de um processo de múltiplas mediações, incluindo aquela que articula a passagem da “língua solta” para a página impressa. Qual a dificuldade de traduzir a fala de uma personagem como a avó de “Línguas”, que revela um universo cultural mais distante de nós, leitores brasileiros?


Em minha reescrita das falas da avó, lancei mão de dois recursos básicos: deixar o napolitano soar livremente na página e traduzir as passagens em rodapé; e recorrer aos inúmeros registros coloquiais de nossa língua brasileira. Meu principal objetivo foi fazer com que o leitor pudesse se “sentir em casa” sem deixar de experimentar o estrangeiro do napolitano, que é estrangeiro mesmo para os falantes da Itália central ou do norte.

 


Starnone retomaem “Línguas”o tema da relação intergeracional presente em “Assombrações”, em que surgem a figura do avô e do neto. Qual a diferença desses encontros e confrontos nos dois livros?


Aqui o narrador é o menino que se torna adulto, o que muda totalmente o ângulo de visão. Se o avô de Assombrações tinha saído de Nápoles e feito carreira em Milão, tendo de praticamente reaprender a cultura da infância, aqui a avó é alguém que nunca saiu de casa e expressa uma cultura ancestral, transmitida oralmente, não-letrada. Se o avô de “Assombrações” era carregado de remorsos (e fantasmas), a avó de “Línguas” passa muito longe desses sentimentos – se alguém tem remorso aí, é o neto. Nesse sentido, é como se os dois livros tivessem uma relação especular.


“Vita mortale e immortale della bambina di Milano” (“Vida mortal e imortal da menina de Milão”), título original em italiano, no Brasil se transformou em “Línguas”. Poderia comentar essa escolha editorial?


A Todavia perguntou a Starnonese ele concordaria com a mudança de título para“Línguas”, que são de fato (as línguas) uma das linhas de força do romance. Já o título italiano, a meu ver, alude mais claramente a “Vida nova”, de Dante, e aos substratos míticos da narrativa, como a história de Orfeu e Eurídice, os romances de cavalaria etc. E Milão, mais uma vez, como o “outro” de Nápoles.

 

A Amiga genial

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