
Quando David Lynch esteve na UFMG
A escritora mineira Maria Esther Maciel lembra a passagem do cineasta por Belo Horizonte e compartilha a apresentação que fez para o autor de 'Twin Peaks'
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Especial para o EM
Quando, em 2007, a Universidade Federal de Minas Gerais completou oitenta anos de existência, um ciclo de conferências foi iniciado, sob o título "Sentimentos do mundo", para celebrar o aniversário. Até 2009, diversas figuras notáveis do Brasil e do mundo, de diferentes campos do conhecimento, vieram a Belo Horizonte para participar desse evento marcado pela pluralidade de temas e saberes. Entre os conferencistas convidados estava o grande cineasta norte-americano David Lynch, que proferiu, no dia 06 de agosto de 2008, a palestra "Consciência e processo criativo" para uma enorme plateia de estudantes, professores e pesquisadores.
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Na ocasião, tive a honra de fazer, ao lado de Heitor Capuzzo, professor da Escola de Belas Artes da UFMG, a apresentação de Lynch e a mediação da conversa que, longe de circunscrever ao seu trabalho cinematográfico do diretor, acabou por se voltar, sobretudo, para o tema do recém-lançado livro "Em águas profundas: criatividade e meditação", que ele veio divulgar no Brasil.
David Lynch, infelizmente, partiu deste mundo no último dia 16, para a tristeza de todos os que o admiravam. Deixou uma obra extraordinária para todos nós, através da qual ele viverá para sempre em nosso imaginário.
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O texto ao lado é a versão escrita da apresentação que fiz de seu trabalho naquele dia memorável de 2008.

David Lynch
“Uma experiência dos sentidos e da imaginação”
Ao abordar "o assombroso e o estranho no ato de sonhar", Jorge Luis Borges investigou, em uma das conferências incluídas no livro "Sete Noites" (1977), os diversos nomes dados ao pesadelo, chamando a atenção para a palavra inglesa "nightmare", que teria, entre seus significados possíveis, o de "ficção da noite". Não por acaso, James Joyce criou, a partir desse vocábulo, uma intrigante palavra-valise, "nightmaze", para designar a arquitetura onírica (e labiríntica) de "Finnegans Wake", obra cujo enredo ou "antienredo" se passa todo numa intrincada noite de sonho. Isso, porque essa palavra, além de trazer implícita a noção de pesadelo conjugada à de labirinto, aponta também, por vias transversas, para o inevitável estado de desorientação que define quem nele ousa se introduzir, visto que "maze", enquanto verbo, indica o ato transitivo de confundir, desorientar, lançar em um estado de perplexidade.
Creio que esse jogo nightmare/nightmaze poderia também designar o universo fílmico de David Lynch, visto que desde seus primeiros curtas-metragens realizados nos anos 60 até seu último filme, "Inland Empire", o cineasta, pintor, fotógrafo, escultor, escritor, cartunista e compositor norte-americano, nascido em 1946, vem fazendo da "estética do pesadelo" uma das linhas de força mais evidentes de seu trabalho criativo. O que se dá a ver não apenas na atmosfera estranha e perturbadora das cenas que cria, nos deslocamentos de identidade dos personagens ou nas situações irreais que os envolvem, mas também na própria sintaxe dos filmes.
Desvios de sentidos, suspensões temporais, fragmentações, apagamentos súbitos, enquadramentos que realçam os efeitos de estranhamento da imagem, uso de cores saturadas e ângulos impressionantes conferem às películas "lynchianas" um caráter onírico, labiríntico, feito de desvios e estradas perdidas, sem pontos precisos de interseção. E uma vez dentro desse espaço, não há como escapar do descaminho. Em meio à vertigem e ao espanto que este provoca, resta ao perplexo espectador também sonhar (ou fingir que sonha) o sonho que vê. Ou deixar-se sonhar pelo próprio filme.
David Lynch - um dos poucos representantes canônicos do cinema contemporâneo a se permitir o exercício de uma linguagem aberta à experimentação formal e às ousadias da imaginação - iniciou sua trajetória artística como pintor, atividade que nunca abandonou e à qual conjugou também as de fotógrafo e escultor.
Seus primeiros trabalhos no campo cinematográfico foram curtas de animação, dentre eles "Six figures getting Sick" (1966) - que mostra cabeças tridimensionais em vários estados de vômito - e "The alphabet" (1968), que já prefigura o clima onírico que marcará os filmes subseqüentes. "Eraserhead", de 1977, foi o primeiro longa-metragem do diretor, filme de inquietante estranheza, que desafia os limites da representabilidade para explorar - também em atmosfera de pesadelo - o horror que subjaz à vida aparentemente prosaica de um pai na sua relação com um feto monstruoso.
Esse apreço pelas deformações e monstruosidades reaparece, poucos anos depois, em "O homem elefante", de 1980, indicado a oito Oscars. A que se seguiram "Duna", ficção científica de 1984, e "Veludo azul" (Blue Velvet), de 1986, filme que alia mistério, perversão, violência e insanidade em cenas de grande impacto cromático e sinestésico. Depois do filme intitulado "The cowboy and the Frenchmen", e da série de tevê "Twin Peaks" (posteriormente desdobrada em filme), Lynch lança em 1990, "Coração selvagem" (Wild at Heart), um road-movie bizarro e violento, definido pelo próprio cineasta como "o Mágico de Oz sem o cachorro", e que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes.
Já em "A estrada perdida" (The lost highway), de 1997, Lynch traz à tona um emaranhado jogo de tempos, espaços e identidades múltiplas, em que os personagens são sempre outros de si mesmos, ocupando, simultaneamente, todos os lugares e lugar nenhum. Não deixa de ser intrigante que logo em seguida surja o linear "A história real" (The Straight story), um outro road-movie, que trata da história de um velho que faz uma longa e insólita viagem pelas estradas dos Estados Unidos num cortador de grama.
Um filme que, por seguir um viés narrativo que não se desvia da referencialidade nem da linearidade, coloca-se em evidente dissonância com a experiência narrativa de a "Estrada Perdida" e dos filmes posteriores, "Cidade dos Sonhos" (Mulholland Drive) e "Império dos Sonhos" (Inland Empire), ambos de sintaxe intrincada, cujo deslinde (se é que este seja possível) prescinde dos esforços da razão.
Se "Mulholland Drive" desorienta pelo súbito embaralhamento de referências, tempos, lugares e identidades (à feição de "Lost Highway"), "Inland Empire" - um filme sem roteiro, feito com tecnologia digital - leva a desarticulação própria da linguagem onírica às últimas conseqüências, inserindo-a na ordem do delírio, onde não há limites entre realidade, ficção, imaginação e alucinação. Como se tudo fosse filmado por uma câmera escondida atrás do olho, naquela zona conhecida como ponto cego, onde a visão falha, mas, paradoxalmente, capta o real insuportável que se oculta nas dobras da realidade visível.
Os estranhos mundos de Lynch, porém, não se circunscrevem aos seus filmes, e estão também presentes em suas pinturas, composições musicais e produções televisivas. Ocupam ainda um site oficial da Internet (davidlynch.com) e são comentados pelo próprio cineasta no recém-lançado "Em águas profundas - criatividade e meditação" (Rio de Janeiro: Gryphus, 2008), livro que - para a surpresa de muitos admiradores do cinema "lynchiano" - mescla fragmentos autobiográficos e notas sobre filmes com reflexões sobre a prática de meditação transcendental, conselhos de autoajuda e outros dizeres breves, de cunho edificante.
Se, num desses textos, Lynch diz que "é um absurdo o cineasta dizer com palavras o que significa um filme em particular", podemos acrescentar que, no caso específico dos filmes desse diretor, não há mesmo palavras que dêem conta da complexidade que eles engendram. Impossível buscar um sentido definitivo para cada um, já que o que eles demandam é, sim, uma experiência dos sentidos e da imaginação. São filmes que evidenciam, à feição de Borges, que não existe uma única forma neste mundo que não possa contaminar-se de horror e de assombro, como acontece nos sonhos e pesadelos.
MARIA ESTHER MACIEL é escritora, poeta, ensaísta e professora brasileira, autora de livros como "Essa coisa viva" e "Animalidades: zooliteratura e os limites do humano"