Não é novidade o talento de Domenico Starnone para os leitores brasileiros. O vigor na arquitetura de boas histórias, reconhecido na trilogia formada por “Laços” (2017), “Assombrações” (2018) e “Segredos” (2020) tem rendido leitores fiéis do premiado escritor napolitano por aqui. Tal capacidade redobra em “Línguas”, narrativa cujo protagonista é um homem revisitando a infância na velhice. A meninice aos 9 anos na Nápoles do pós-guerra é o pretexto para uma admirável reflexão sobre vida, morte e memória.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia


Do narrador em primeira pessoa sabemos apenas o apelido de criança: Mimi, diminutivo ou corruptela de um nome desconhecido. O relato apresenta a infância pobre nos anos 1940, posteriormente a juventude cursando Letras Clássicas na universidade e, no presente da narrativa, a maturidade que olha em retrospecto o passado. Nele, pulsa a imagem de uma menina que dança na sacada do prédio em frente:

 

“Como era linda sua figurinha contra as vidraças reluzentes de sol, de braços erguidos, audaciosa nos saltos, tão exposta à morte. Inclinei-me para que ela me visse bem, pronto a também me atirar no vazio, caso ela caísse”. Em torno dela, o personagem inventa um amor desses de livro. Nutrido por relatos de aventura, projeta futuros e imagina até um casamento – a menina tem oito anos. Inatingível, recebe a alcunha de milanesa, em função da suposta origem no norte da Itália. Eles formam um par tão improvável quanto efêmero.


O motivo é também o sotaque estrangeiro, ouvido na formidável cena em que compartilham a água do bebedouro do edifício. A descrição da boca sorvendo o líquido, o espanto diante dos dentes, lábios e olhos, tudo reveste o instante de uma aura inesquecível: “por mim ela poderia beber toda a água do bebedouro, imóvel, para sempre, só pela beleza de olhá-la”. As crianças trocam breves palavras, o momento termina, mas a imaginação se encarrega de alimentar a fantasia.

 




Impossível não lembrar de outro admirável quadro de amor juvenil, vindo diretamente das páginas de “Dom Casmurro” (1899). O adolescente Bentinho trança os cabelos de Capitu, “e a sensação era de puro deleite”, dirá o narrador já idoso ao lembrar do primeiro beijo acontecido no momento seguinte. Medo e desejo nascente formam uma constelação de sentidos; o tempo encapsulado reverbera em um presente que revê o coração dos meninos bater desesperado.

 

Assim como o narrador do romance machadiano – de memória fraca e imaginação solta – o protagonista de “Línguas” acessa o passado por aproximação. O vivido e o narrado se tangenciam, mas não coincidem exatamente. O resultado é semelhante: “Estava anestesiado de amor”, admite o menino italiano. Mas ela desaparece depois das férias escolares, deixando o protagonista e o amigo Lello em dúvida sobre seu paradeiro. No futuro, irão disputar de novo a atenção de uma mesma mulher.

 


Ainda uma vez o escritor cria uma galeria de personagens de grande densidade, examinando sem complacência uma masculinidade em crise: o macho que ama, mas não chora. Que se perde escrevendo poemas de amor, mas teme desmaiar e fazer feio diante das moças. Que acredita estar destinado a grandes coisas, mas no futuro se percebe estropiado e fraco da cabeça. Ele é alguém descontente consigo mesmo, a exemplo de muitos de seus protagonistas masculinos.


Amor é palavra constante na prosa de Starnone. Nos 32 capítulos curtos que compõem a história, outro vínculo faz brilhar o relato. Não entre um homem e uma mulher, mas o de avó e neto. Viúva aos 24 anos, pouco escolarizada, essa “avó-serva” machucada pela vida dedica ao neto mais velho uma adoração sem par. Dentro de casa, esse sentimento um tanto grudento pesa; ele a ignora e até maltrata. Um dos motivos da rejeição é o “dialeto miserável” falado pela matriarca – a oralidade napolitana é em tudo oposta ao italiano de livro almejado pelo narrador.

 

Uma língua nobre, falada na universidade, esse “lugar misterioso onde nenhum de meus antepassados jamais tinha posto o pé, nem por engano”. Para o personagem, desejoso de se apropriar do registro linguístico valorizado no mundo letrado, vincular-se ao universo inculto e dialetal da avó é sinônimo de fracasso. Criar distância entre eles equivale a uma tática de sobrevivência.


Certo dia, no ambiente acadêmico, ele deve fazer um exame do curso de glotologia, preenchendo numerosas fichas com a transcrição fonética de sons da língua falada. O estudo científico vira pretexto para uma rica discussão sobre os usos do idioma: quem fala, como fala, para quem fala. E então a avó desdentada, dona da afeição que envergonha o neto, passa a encarnar uma espécie de guardiã de palavras muito antigas, de sonoridades familiares e vocábulos oriundos do mundo dos afetos. Com grande domínio do artifício romanesco, Starnone demonstra que a linguagem tem garras e tentáculos, explorando os laços construídos em torno da língua.

 


O “italiano de livro impresso”, nesse sentido, não dará conta de acessar o idioma subterrâneo, que emerge como a lava do Vesúvio e se infiltra sem pedir licença, sobretudo quando, como afirma o narrador, algo perturbador está em jogo. Invertem-se os papeis, a avó caduca vira professora; o neto prepotente assume o lugar de aprendiz. Amadurecer é também apurar o ouvido para perceber as tonalidades da língua em sua variedade de registros. E o falar estrangeiro da menina milanesa do passado talvez não fosse tão estranho assim.


Pela primeira vez em muitos de seus livros, o autor traz numerosas palavras e expressões em napolitano, salpicando o texto com vasto material linguístico produzido pelos falantes: “Venha, lhe disse, não chore, eu te lavo, se chorar nunsinòmm”. “Não é homem”, ensina a tradução ao pé da página no belo trabalho de Maurício Santana Dias, responsável por apresentar ao leitor brasileiro o calor e a espessura da oralidade napolitana.


É sempre bom lembrar que a literatura é feita de experiência e de leituras, conforme afirmou o próprio escritor em entrevista na ocasião do lançamento do livro na Itália, há três anos. Ele comentava o estrato autobiográfico do romance: houve essa avó napolitana e uma menina dançando na varanda do prédio da frente. O resto se inventa.

 

As inúmeras varandas e sacadas presentes em outros de seus escritos criam uma espécie de palco onde se encena algo, como um pequeno teatro da existência. Fato é que nenhuma posição está garantida em sua obra. Tudo se remexe, alguém pode estar fingindo e os pontos de vista embaralham verdades. Como no famoso título de Pirandello, assim é (se lhe parece).


Starnone – pseudônimo de um escritor cujo nome real também desconhecemos – segue afiado em seu projeto ficcional. Lírico, não perde a mão em sentimentalismos excessivos, ao mesmo tempo que enreda os leitores nesse jogo de esconde-esconde nunca gratuito. Quando as máscaras do mundo adulto desaparecem, surge o interior de personagens que interpelam nossa própria humanidade. “Línguas” é obra delicada que homenageia os mortos e a herança deixada aos vivos depois que a vida termina.


Trecho

 

Mas aqueles sons atropelados de minha avó não eram redutíveis a nenhuma página bela e límpida, a literatura se retraía, se retraía o alfabeto, até a grafia fonética. Houve um momento – tive a impressão – em que não era mais apenas ela quem falava, também falavam sua mãe, sua avó, a bisavó, e diziam palavras que soavam pré-babélicas, palavras da terra, das plantas, dos humores, do sangue, dos trabalhos, o vocabulário das labutas que enfrentaram, o vocabulário das doenças graves das crianças e dos adultos. (...)


Como ela se demorou nesse tema. Me falou do primeiro beijo que o marido lhe deu, um jovem de vinte anos e de grande beleza; ela estava com vinte e dois e nunca se deixara beijar por ninguém: um beijo tão intenso que ele ficou inteiro em sua boca, e hoje ela ainda tinha aquela boca na boca, e a voz dele era também a dela, falavam juntos toda vez que ela falava, as palavras que eu ouvia vinham do fundo do fundo dos anos, sopro dele e dela, voz dele e dela.

 

capa do livro "Línguas"

reprodução


“Línguas”
• De Domenico Starnone
• Tradução de Maurício Santana Dias
• Todavia
• 144 páginas
• R$ 69,90

compartilhe