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A solidão nas mãos e nos versos de Wagner Moreira

Poeta mineiro propõe um diálogo editorial com Belo Horizonte em três livros recém-lançados

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Com a solidão nas mãos

O poeta Wagner Moreira propõe um diálogo editorial com Belo Horizonte em três livros recém-lançados que convidam os leitores à festa da diversidade

Rafael Fava Belúzio
Especial para o EM

Duas novas coleções de livros expressam a intensa vida poética de Belo Horizonte nesse momento. Em 2024, Infame Ruído (coordenada por Anelito de Oliveira) e Poesia Orbital – 25 anos” (coordenada por Mário Alex Rosa) publicaram cerca de 20 volumes cada. Os autores desse grande conjunto de páginas apresentam estéticas variadas, interesses distintos e são representativos de BH, do Brasil e do continente africano. Nessas safras, estão, por exemplo, lançamentos de Ana Elisa Ribeiro, Alvaro Taruma, Conceição Lima, Gilberto Mendonça Teles, Marcelo Dolabela, Raimundo Carvalho e Vera Casa Nova.


Wagner Moreira é dos pouquíssimos que marcam presença em ambas as coleções e, no fim do ano passado, trouxe a público ainda um terceiro livro, em edição do autor. Pela Poesia Orbital, publicou, em parceria com Rogério Barbosa da Silva, o tomo “As pequenas coisas – A solidão nas mãos”; pela Infame Ruído, saiu “cantolhar”; e, de modo independente, “voltas”. A trindade de obras vem se somar ao percurso literário de mais de 25 anos, contando com “Eu não sou Vincent Willem van Gogh” (1998); “selêemcio” (2002); “transversos” (2003); “Blues” (2004); “solamôna” (2010); “solos” (2015); “rumor de pétala” (2017); e “terralegria” (2020) – sem falar participações em antologias e outras criações.


Uma poética movente na qual se notam projetos de edição diversificados, não raro autorais, mas também capazes de expressar a multiplicidade editorial de BH. Nessa trajetória de Wagner Moreira, há participações de casas zelosas com o objeto livro, notadas nas largas folhas de “solos”, lançado pela Scriptum, e nos cantos poundianos do poema/processo “terralegria”, editado pela Impressões de Minas e em parceria com o designer Mário Vinícius. Compreendendo o movimento da materialidade gráfica como estética, “solos” inicia – por meio de versos e de poema em prosa – dizendo:

“superfície radical do movimento deslizante de borda a borda que se faz momento na/ subida e na descida para qualquer direção com todo o volume a dar com o sopro na cara/ cortante velocidade sem reboque apenas o peito aberto faca de pele e osso a encarar os/ elementos todos com o corpo prancha energia positiva a irradiar hidrogênio solar celeste”

Vale indicar que nessas movências se notam instáveis assinaturas, as quais variam entre “Wagner Moreira”, “wagner moreira”, “wagner”, “wgnr” e talvez mais, ao estilo de Pessoa, Drummond e Ana C. É complexo sugerir a presença de um idêntico eu ((anti)lírico?) até em todos os livros que na capa trazem a grafia “wgnr”. A cada obra a assinatura está com um tipo de letra, com uma disposição na página, sem permitir enfeixar em rótulo único tal poética mobilista, que vive se tornando outra e outra e outra, por vezes se posicionando em silêncio, ou querendo ser transversa, travessa, atravessada pela inconstância que impede o autor de entrar duas vezes no mesmo sujeito lírico.


Em “As pequenas coisas – a solidão das mãos”, a publicação é dividida com Rogério Barbosa da Silva. Aqui Wagner Moreira está em somente meia plaquete, ou menos ainda. Com legado bandeiriano, vê um mundo olhando um mínimo. São poemas curtos e, como é usual em wgnr, repletos de intra e intertextualidades. Com frequência os versos realizam não apenas metalinguagem, no sentido de pensar a própria dicção verbal, mas pensam também o suporte, o objeto livro que o leitor possui em mãos e, a partir disso, dizem sobre ética, política, ontologia. A preocupação com a materialidade da obra é traço forte da (anti)lírica wgnriana, repleta de espaços múltiplos:

“com a solidão nas mãos

o livro diz poeta

sem rumo sem noção

menos que esteta

o livro obra aberta

grita expressões
o livro suporta

diferentes dimensões

o livro tecnotudo

tem voz pixel corpo

concreto sutil material

o livro canta baila

anunciando a praia

o livro mar movente

dá o sol a toda gente

o teto fundo de ar

a dança o livrar

– com a solidão nas mãos –”

O sujeito (lí(v)rico?) do poeta é sem rumo e, com irônica modéstia, menos que esteta. No ritmo de composição dos textos, ou nas manchas gráficas das folhas, a estrofe recorda outro lançamento de 2024: “voltas”. Na verdade, chamar o tomo apenas de “voltas” é inadequado. O nome da obra é verdadeiro poema-capa ou poema-título (espécie de poema de abertura) a lembrar “Viva vaia”, de Augusto de Campos, e a composição leminskiana “[materesmofo]”, devido às variações em torno de uma palavra. Além disso, “voltas” canta (não só) a cidade de BH, suas ruas – todos no chão, na página pálida de tanto:


“o sol tórrido


acende a manhã


pernas e mais pernas descem a viçosa


mapeando as sombras


os óculos sobre os volantes


dançam até a contorno


e se perdem em rios de pneus


cardumes a fazer correntezas previsíveis


a cidade também é isso”

Se em “voltas” a bh de wagner é nomeada através de movências por ruas e rios (por vezes submersos), em “cantolhar” a cidade aparece nos espaços esvaziados pela pandemia de Covid-19. Incorporando circunstâncias vividas no Brasil e no mundo nos últimos anos, a obra dada a lume pela Infame Ruído é bastante política. Aliás, imaginar que WM lançou, justo em 2024, um tríptico pode sinalizar arquiteturas intencionais. Anelito de Oliveira, no prefácio, atesta: “O tempo mais presente é a seara desses frutos. São trabalhos escritos de 2015 para cá e ‘mexidos’ pelo autor neste 2024 para esta publicação”. A seara do presente e sua lenta reflexão politizada estão em “cantolhar” – esse título a condensar em um termo logopaico a fanopeia e a melopeia.

“a carne o crânio talhados pelo instrumento – golpe

o corpo com reza falsa se quebra

o corpo com gado-terra se quebra

o corpo com bomba-bala se quebra

o corpo com magistral vilania se quebra

levantar e estar de pé

soprar o corpo e criar o grito contra a farsa

soprar o corpo e criar o grito a favor da vida

esse acontecimento maior”

Acontecimento significativo é o triplo lançamento de WGNR, a demonstrar que em BH as edições de poesia estão muito ativas e convidam leitores à festa da diversidade.

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RAFAEL FAVA BELÚZIO é doutor em Estudos Literários (UFMG) e pós-doutorando em Letras (CNPq/UFES). É um dos coordenadores da Coleção Crítica Contemporânea (Alameda Editorial) e autor do ensaio “Quatro clics em Paulo Leminski” (Editora UFPR)

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