
'O FBI contribuiu para a morte de Luther King', diz biógrafo do ativista
Em entrevista exclusiva ao EM, Jonathan Eig, vencedor do Pulitzer, dá detalhes sobre o livro que trouxe novas interpretações sobre a vida de MLK
Mais lidas
compartilhe
Siga no“Acho importante lembrar, em qualquer biografia, que as pessoas raramente agem sozinhas”. Esse foi um dos propósitos do jornalista e biógrafo Jonathan Eig ao escrever “King: Uma vida”, publicação vencedora do prêmio Pulitzer em sua categoria no ano passado. Para além de esmiuçar cada marcha de Martin Luther King Jr. e sua carreira acadêmica e religiosa de maneira cronológica, o livro destaca outras pessoas fundamentais para moldar o ativismo de MLK. Entre elas, estão sua esposa, Coretta King, professores, familiares e os conselheiros e amigos de movimento negro, figuras marcantes para a luta pelos direitos civis nos EUA, como Ralph Abernathy (1926-1990), Bayard Rustin e Stanley Levison (1912-1979).
Em entrevista exclusiva ao Pensar, Eig, como homem branco, reconhece que conviveu com a insegurança antes de lançar o livro, justamente por desnudar a vida de Martin Luther King Jr. de maneira fiel à sua trajetória, sem endeusamento de sua figura e sem esconder falhas e angústias. “Se eu quiser que os leitores entendam melhor King, tenho que ser honesto. Se eu quiser que os leitores confiem em mim como biógrafo, tenho que ser honesto”, diz. Parte dessa dedicação à realidade dos fatos inclui o retrato de um MLK mais radical ao fim da vida, sobretudo após a morte de Malcolm X.
-
01/02/2025 - 04:00 Marina Colasanti (1937-2025) -
01/02/2025 - 00:00 A solidão nas mãos e nos versos de Wagner Moreira -
01/02/2025 - 04:00 Marcelo Moutinho lança livro de crônicas
Ainda na conversa com o EM, o jornalista destaca o papel que o FBI teve na morte de Martin Luther King Jr. — um dos diferenciais da biografia é ter acesso aos grampos feitos pelos Estados Unidos contra um dos seus mais influentes cidadãos, liberados recentemente pela Casa Branca após décadas de sigilo. “O FBI criou intencionalmente um ambiente no qual King era visto como uma ameaça ao status quo”, afirma.
O livro começa com a história dos antepassados de Martin Luther King Jr. Qual a influência dos avós e dos pais na vida do ativista?
Os avós de King nasceram na escravidão. É notável pensar que um ganhador do Nobel da Paz e doutor em filosofia e religião surgiu em apenas duas gerações. Essa conquista foi possível porque a mãe de King – Alberta Williams King (1904 - 1974) – lutou contra as restrições de uma sociedade racista, se educou e ganhou uma certa independência ao se mudar para Atlanta e assumir a liderança de uma igreja. Seus protestos locais criaram terreno fértil para o filho liderar um movimento nacional de luta pelos direitos civis. Os pais de King criaram Martin para acreditar que ele tinha a responsabilidade de viver de acordo com os preceitos bíblicos e de curar as injustiças sociais.
Martin Luther King Jr. nasce durante a Grande Depressão. Ainda assim, sua família teve acesso a bens que a maioria dos negros estadunidenses não tinham à época, apesar de conviver igualmente com o horror da segregação. Há alguma relação entre esse passado ligeiramente mais confortável e o fato de sua luta contra o racismo ser mais baseada no diálogo do que no combate físico?
Acredito que a criação relativamente confortável de King desempenhou um papel importante em moldá-lo como um líder. Primeiro, ofereceu-lhe proteção e segurança suficientes para correr riscos. Também proporcionou a oportunidade de obter educação e receber inspiração de professores que acreditavam que jovens negros educados tinham a responsabilidade de servir (à luta pelos direitos civis).
King sempre sentiu alguma culpa sobre sua criação de classe média. Ele sabia que tinha uma relativa sorte. Também se sentia confiante em enfrentar o establishment branco, porque tinha sido educado no Norte dos EUA e sido exposto a mais realidades do que alguns outros ativistas da época.
O livro ressalta diversas experiências empíricas que ajudaram MLK a se tornar ativista. Em tempos em que muitos de nós opinamos sobre problemas sem sentirmos na pele, o que Luther King Jr. pode ensinar à sociedade contemporânea?
Embora tenha crescido protegido de parte do racismo da sociedade estadunidense, ele certamente não estava protegido de tudo. Foi um negro que cresceu no Sul durante as legislações Jim Crow e sabia intimamente o que lhe era permitido e o que não lhe era permitido. Além disso, quando se tornou líder no movimento, enfrentou uma ameaça ainda maior de violência. Grande parte de sua autenticidade vem de sua disposição de sofrer e entender como tantas pessoas sofreram, ao longo da história e em seu próprio tempo.
Uma boa parte do livro se concentra na vigilância implacável feita pelo FBI contra King, a partir de J. Edgar Hoover. É exagerado dizer que o FBI é coautor da morte dele?
Não acho que seja exagero. O FBI criou intencionalmente um ambiente no qual King era visto como 0ameaça ao status quo. O governo federal poderia tê-lo visto como um americano importante, que falava por milhões de pessoas e trabalhava para uma sociedade mais forte e justa. Em vez disso, muitos dos principais agentes da lei trabalharam e tiveram sucesso em miná-lo.
Em meados do final da década de 1960, mais de dois terços dos estadunidenses desaprovavam King e, na época de seu assassinato, 31% disseram que ele merecia. Vale a pena considerar o quão diferente a nação poderia ser hoje se King tivesse sido celebrado por seu país em vida — em vez de apenas no martírio.
O livro se concentra também em Coretta King (1927-2006). Qual a importância de se focar também nas renúncias feitas pela esposa para que King Jr. pudesse se dedicar ao ativismo?
Acho importante lembrar, em qualquer biografia, que as pessoas raramente agem sozinhas. Coretta Scott King nunca recebeu o crédito que merecia como uma força intelectual e ativista. Dar à Coretta o que lhe era devido foi uma das razões pelas quais eu queria recontar a história de King.
O livro toca algumas vezes nos motivos que levaram MLK à posição de liderança da luta pelos direitos civis. Após a publicação, você tem essa resposta de maneira definitiva?
Nenhum fator pode explicar a ascensão de King como líder isoladamente. Eu diria que o maior foi sua crença religiosa — esse é o combustível que mais o incendeia. Mas também é importante pensar que o conflito com seu pai — Martin Luther King Sr. (1899-1984) — o tornou mais ambicioso, como acontece com muitos de nós. Não se esqueça, ainda, do patriotismo como uma influência. Apesar da forma como os EUA tratam os negros, King buscava cumprir seu compromisso com a democracia. É por isso que o chamo de um dos pais fundadores dos Estados Unidos.
Você já escreveu outros livros sobre líderes do movimento negro. Expoentes como Muhammad Ali e Jackie Robinson. Em “King: Uma vida”, temos uma produção sobre, talvez, o mais cultuado dos líderes negros. No entanto, você ressalta também as “fragilidades humanas” desse líder, sem o verniz beatificado. Como homem branco, houve um temor quanto à receptividade do livro, sobretudo em tempos de tanto ódio?
Eu estava preocupado que os leitores — especialmente os leitores negros — pudessem não querer ouvir sobre as falhas de King. Mas acredito que era importante incluí-las, porque todos nós temos falhas, para começar. Se eu quiser que os leitores entendam melhor King, tenho que ser honesto. Se eu quiser que os leitores confiem em mim como biógrafo, tenho que ser honesto. Também acho importante mostrar aos leitores como o FBI usou as fraquezas de King como arma na tentativa de destruí-lo. Acredito que ver King como humano nos ajuda a ver sua grandeza com mais destaque.
É ainda mais impressionante que King tenha conseguido tudo o que fez enquanto lutava contra a depressão e sentia a pressão do FBI sobre seu pescoço. Estou feliz em dizer que os leitores receberam bem o livro. Acho que as pessoas se cansaram da versão beatificada de King e estão prontas para se envolver com um retrato mais profundo. Afinal, se esperamos que nossos heróis sejam perfeitos, não temos heróis de verdade.
A parte final do livro mostra um segundo anseio de King antes de sua morte: a luta pacifista de mãos dadas com o antirracismo. Vários capítulos se concentram na oposição dele à Guerra do Vietnã, que levou ao desgaste de sua relação com a Casa Branca. É correto afirmar que essa linha de trabalho de King foi, de certa maneira, apagada, ou minimizada, ao longo dos anos?
Acho que o principal problema do feriado nacional dedicado a King nos Estados Unidos [Martin Luther King Day, celebrado na terceira segunda-feira de janeiro] é o foco no discurso do “Eu tenho um sonho”. Essa imagem sobre a vida de King nos distrai das outras mensagens, incluindo sua advertência de que o militarismo e o materialismo eram forças que apodreceriam as almas da humanidade. Temos a tendência de abraçar uma versão simplificada de King, porque isso nos deixa confortáveis. King, o radical, não deve ser esquecido.
Ao reassumir a presidência, Donald Trump retirou o sigilo sobre os documentos acerca da investigação do assasssinato de King. Qual o potencial desses arquivos? Podem ser reveladores?
Não acho que será muito importante. A maioria desses documentos já foi divulgada. Pode haver algo novo ali, mas não acho que haverá uma grande revelação.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
Passados quase 60 anos do assassinato de King, boa parte do mundo ainda convive com o racismo institucionalizado. As medidas reparatórias, tão defendidas por ele, nunca aconteceram efetivamente. O que Martin Luther King diria sobre o mundo contemporâneo, se tivéssemos a oportunidade de ouvi-lo mais uma vez?
Acho que, ao relermos King, podemos inferir o que ele diria hoje. Ele diria que fizemos progresso, mas ainda não abordamos questões fundamentais que nos dividem como povo. Não abordamos as raízes do racismo ou a desigualdade econômica que está no cerne de tanta injustiça.
Ele diria que não é suficiente acabar com a discriminação e a segregação, que devemos agir com mais determinação para expiar os pecados do passado e ajudar aqueles que continuam sofrendo com a injustiça, a pobreza e a fome.