
A lembrança de uma vaia consagradora em BH
Ator e diretor Bernardo Mata-Machado repassa fato marcante ocorrido no movimento feminista de Belo Horizonte no início dos anos 1980
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Especial para o EM
Os que se preocupam com o passado são os historiadores, por dever de ofício, e os mais velhos, que, vendo a morte se aproximar, tentam resgatar sua vida e deixar algum legado. Mas a crer em Miguel de Unamuno esse desejo não é só de velhos. O filósofo espanhol atribui a todos os seres humanos a “fome de imortalidade”. Lutamos para ficar na memória dos outros e dos que virão.
Mas a luta pode ser inútil. Com raríssimas exceções somos todos fadados ao esquecimento. Lembro-me da versão de Caetano Veloso para “Negro amor”, de Bob Dylan, quando Gal Costa canta: “as pedras do caminho/deixe para trás/esqueça os mortos/que eles não levantam mais/o vagabundo esmola pela rua/vestindo a mesma roupa que foi sua”. Apesar do conselho, a fome nos impele na busca da imortalidade. Escrever um livro de memórias é uma tentativa de saciá-la.
O texto a seguir faz parte do livro que estou escrevendo. Relembra um fato que se refere ao movimento feminista de Belo Horizonte. Intitula-se “A Grande Vaia”:
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“O teatro é uma arte efêmera e política. É efêmera porque não dura mais que uma ou duas temporadas e algumas vezes, como naquela noite de 1983, dura poucas horas. É arte política em sentido amplo, como expressão do poder ideológico, que se exerce pela difusão de ideias capazes de influenciar a conduta da sociedade.
A conjunção de efemeridade e expressão de ideias faz com que o teatro seja quase sempre uma resposta às conjunturas política, econômica, social, cultural e existencial. E nisso está o segredo do sucesso de um espetáculo. Quando ele responde às expectativas provocadas pela conjuntura, o público agradece e aplaude. E pode também vaiar, como naquela noite...
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Em 1983, um fato e três movimentos da sociedade agiam sobre a conjuntura. Fato: o julgamento de um dos homens que três anos antes haviam assassinado violentamente suas esposas, acontecimento que gerou o Quem Ama Não Mata, movimento encabeçado por mulheres de Belo Horizonte, que alcançou repercussão nacional. Os dois outros movimentos eram um pouco mais antigos: a luta contra a ditadura militar implantada em 1964, movida principalmente por estudantes e operários, e o movimento da contracultura, que nasceu nos anos 1950, nos Estados Unidos, com a geração beatnik, mas eclodiu mundialmente nas décadas de 1960/70, provocando mudanças comportamentais em muitos campos da vida.
O movimento estudantil destacou-se em 1968, ano que assistiu a uma onda de rebeldia que atingiu cerca de 40 países. No Brasil o principal adversário foi a ditatura, que ainda naquele ano, para sufocar as manifestações, promulgou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), endurecendo ainda mais o regime. Aliado na luta contra a ditadura estava o movimento operário, que logo depois do golpe de 64 promoveu greves contra o arrocho salarial, mas também foi brutalmente reprimido.
A contracultura, conhecida também como movimento hippie, colocou em xeque todo tipo de opressão, tudo que então era chamado de “sistema”: o poder patriarcal dos homens sobre as mulheres, a família nuclear, a repressão sexual, o consumismo, a burocratização da vida, o trabalho alienado, a desumanização das cidades, a guerra nuclear, os preconceitos raciais e étnicos, a medicina alopática, o tecnicismo, a moral puritana e a destruição da natureza. Por ter esse caráter geral, a contracultura incorporou e revitalizou movimentos históricos, como o ambientalismo, o pacifismo e o feminismo.
Em 1983, o país já vivia a transição da ditadura para a democracia, iniciada em 1974 com a abertura política “lenta, gradual e segura”, como queriam os militares e, diga-se de passagem, conseguiram: partidos de direita, em minoria ou majoritários, até hoje abocanham nacos do poder. O movimento estudantil já se revitalizara e os operários haviam surpreendido o país com as greves de 1979-82 e o novo sindicalismo.
Nas artes, a efervescência criativa, que perpassou o Brasil a partir da década de 1950 (movimentos como bossa nova e cinema novo trazem em si o signo da ruptura), não foi detida nem mesmo pelo golpe de 64. A repressão à cultura chegaria de forma mais intensa após o AI-5, com o recrudescimento da censura, mas com gosto pelo paradoxo e capacidade de transmitir mensagens de forma cifrada, ambígua e metafórica, os artistas confundiam a censura. Entre 1968 e 1974, quando imprensa e universidade, legislativo e judiciário, partidos e sindicatos estavam cerceados, as artes ocuparam na prática o lugar da política e alguns artistas viram-se transformados em verdadeiros líderes da oposição.
O teatro de Belo Horizonte refletiu a conjuntura dos diversos períodos. O primeiro sopro de renovação veio em 1959, com a criação do Teatro Experimental (TE) por Carlos Kroeber, João Marschner e Jota Dângelo. O grupo dedicou-se inicialmente à montagem de autores europeus de vanguarda, como Beckett, Ionesco, Arrabal e Guelderode. A partir de 1966, o TE adotou uma postura que combinava engajamento político e temática regional mineira. Dois espetáculos, ‘Oh! Oh Oh! Minas Gerais’, de Jonas Bloch e Jota Dângelo (1967) e ‘Numância’, de Cervantes, este com direção de Amir Haddad (1968) são os mais representativos dessa fase.
Foi bebendo na experiência do Teatro Experimental que Pedro Paulo Cava fundou, em 1970, o Teatro de Pesquisa, que estreou com ‘Aquele que diz sim, aquele que diz não’, de Brecht. Ainda em 1968, o Grupo Geração, fundado por José Antônio de Souza, Alcione Araújo e Eid Ribeiro, entrou firme no clima político e montou ‘Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come’, de Oduvaldo Viana Filho e Ferreira Gullar. A opção por um texto de autor brasileiro refletia uma tendência que vinha desde 1958, quando o Teatro de Arena, de São Paulo, introduziu no palco, com ‘Eles não usam black-tie’, de Guarnieri, a estética e a temática nacional-popular.
Na linha da radicalização política e estética, o Teatro de Equipe, dirigido por Paulo César Bicalho, montou, em 1969, ‘A noite dos assassinos’, do cubano José Triana. O espetáculo ficou famoso por exibir a primeira cena de nudez do teatro mineiro. Em 1976, reunindo resistência política, experimentação estética e contracultura Eid Ribeiro monta o espetáculo síntese do período: ‘Risos e facadas’, baseado em textos de Beckett. No elenco a presença marcante de Ronaldo Brandão, ator, diretor de teatro e crítico de cinema.
Nas décadas de 1970/80 formaram-se vários grupos que combinavam o compromisso político com a experimentação de linguagens cênicas, destacando-se: Grupo da AMI (Associação Mineira de Imprensa), Oficina Multimédia, Companhia Sonho e Drama, Galpão, Kuzala e Ponto de Partida, entre outros.
O processo de transição da ditadura para a democracia foi aos poucos desobrigando os artistas de cumprir o exercício involuntário da liderança política contra o regime, cedendo espaço para que a experimentação formal, que é transformadora por si mesma, ocupasse o centro das atenções. A trajetória do Grupo Galpão espelha esse processo, mas há um espetáculo que o sintetiza: ‘O encontro marcado’, de 1982, adaptação teatral do romance de Fernando Sabino, com texto e direção de Paulo César Bicalho.
Foi com o terno que eu usara no segundo ato de ‘O encontro marcado’ que cheguei naquela noite de 1983 à Igreja São José, onde se desenrolaria o julgamento simulado do assassino de Heloisa Ballesteros, uma das mulheres vítimas de seus maridos em 1980. Na simulação do julgamento fui convidado para representar o papel do advogado de defesa do assassino.
A escadaria externa da igreja estava lotada. Não me lembro dos detalhes, sei que tinha tido contato com o texto de Thaís Guimarães e Pedro Paulo Cava dias antes. Em determinado momento da minha fala, habituado que estava aos humores do público, que já começava a tossir, meu timing de ator prevaleceu e abandonando o texto encerrei abruptamente com o grito: “Quem ama, mata!”
Poucos são os que confessam, mas todos os atores amam ser aplaudidos. E naquela noite o entusiasmo do público veio através de uma longa e retumbante vaia, que expressava a indignação com a morte violenta daquelas mulheres e com os argumentos do advogado, entre eles o da famigerada “legítima defesa da honra”..., dos machos, diga-se de passagem.
Saí feliz daquele evento, consciente de ter cumprido a função social do ator. E aqueles “aplausos” ficaram marcados em minha memória.”
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Associei o ressurgimento do feminismo à contracultura, mas o apoio a esse movimento não foi e ainda não é unânime. Recentemente o jornalista e escritor Ruy Castro escreveu na Folha de S. Paulo a crônica ‘Flauta, piolho e filhos’, onde escreveu que os hippies “eram alienados (...) dedicavam-se a olhar para o céu, decifrando os significados que o ácido ou o fumo emprestavam às nuvens.”
Tenho críticas pontuais à contracultura, mas minha posição é bem diversa. No texto “Direitos humanos e direitos culturais”, eu escrevi:
“A partir do movimento da contracultura, os direitos culturais evoluem de tal forma que é possível falar na emergência de um novo direito: à subjetividade, que afirma a proeminência da pessoa, singular e integral, parte do mundo objetivo das relações sociais mas portadora, também, de vida interior. O slogan “estou na minha, fique na sua”, que a primeira vista parece extremamente individualista, situado no contexto histórico representa um possante grito de resistência ao totalitarismo.
A geração do pós-guerra, que cresceu tomando conhecimento dos horrores praticados nos campos de concentração, encontrou na valorização da subjetividade uma bandeira de luta, pois compreendeu que a dominação totalitária havia se estendido para além da esfera política, atingindo o âmago da autonomia intelectual e moral dos sujeitos.
O outro slogan - “paz e amor” - introduziu mais duas dimensões: o valor da intersubjetividade e a consciência cósmica das relações humanas. O direito/dever de construir a paz mundial, reclamado no contexto das memoráveis lutas contra a Guerra do Vietnã, pode ser incluído no rol dos direitos culturais, pois se posiciona não só contra a guerra em si, mas também contra a pretensão de qualquer país de submeter os outros com a justificativa de possuir valores superiores.”
Bernardo Mata-Machado é historiador, cientista político, ator e diretor de teatro. O texto acima é um resumo, feito pelo autor, de pronunciamento realizado no evento “Feminismo, Transformações e Cultura - O olhar Masculino” na Academia Mineira de Letras.