PENSAR

Despedida de Armando Freitas Filho tem versos ásperos e belos

'Respiro' foi publicado três meses depois da morte, em 2024, de um dos maiores poetas brasileiros

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Mario Alex Rosa

Especial para o EM

Armando Freitas Filho, falecido em 26 de setembro de 2024, não viu o lançamento de seu livro “Respiro”, publicado pela Companhia das Letras em novembro do ano passado. No entanto, lendo os 143 poemas, podemos dizer que o poeta profundamente respirou poesia por toda a sua vida. Não só pela quantidade desse volume e de outros, mas porque foi um poeta que, desde a estreia com “Palavra” (1963), procurou construir uma linguagem singular, autêntica, mesmo que tenha muito rapidamente “dialogado” com a poesia práxis.

Afora isso, soube buscar uma expressão poética que tivesse o seu respiro. Foi leitor assíduo de muitos poetas, inclusive dos mais jovens, e se dedicou a pelo menos quatro de cabeceira: Manuel Bandeira, João Cabral, Ferreira Gullar e, sobretudo e sempre, Carlos Drummond de Andrade.


Se a máquina do mundo inquietou Drummond com seus sentimentos reclusos e ao mesmo tempo com vontade de se abrir, Armando enfrentou uma máquina, a de escrever quase que compulsivamente em busca da palavra exata. Aliás, seu primeiro livro curiosamente o título é “Palavra”, impressa quatro vezes na capa, sendo que a terceira repete em negrito como se quisesse reforçar a repetição.

Mas não só isso: a epígrafe drummondiana reforça a busca pela palavra: “Palavra, palavra/ (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate”. Já com a linguagem de João Cabral, Armando, ao contrário, de Cabral, catou tudo: feijão, pedra, coração, tudo que afunda ou que boiasse. O poema “Caçar em vão” (de “Fio Terra,” 2000) é uma resposta possível. O poeta carioca não mediu esforço para ir num ritmo vertiginoso atropelando tudo, sem puxar o freio (veja a ótima apresentação de Viviana Bosi, em “Máquina de escrever”, 2003).


Antes de “Respiro”, teve a trilogia que recupera e mescla infância, juventude, maturidade – “Lar” (2009), “Dever” (2013) e “Rol” (2016) –, cuja memória voluntária e involuntária comparece como um “dever de casa”, no qual o poeta cumpre sem romantizar qualquer tipo de conflito familiar, diga-se de passagem, em qualquer lar. Depois de quatro anos, foi publicado “Arremate” (2013-2019), (2020), com título que parecia anunciar um balanço. As datas revelavam: 2013-2019.

Sete anos! Em 2022, pós-pandemia, publica seu primeiro livro voltado para a prosa: “Só prosa” (2022), quer dizer, textos ora ensaísticos, ora biográficos, mas que entre um e outro a poesia do poeta comparece em formato de prosa.


Em “Respiro”, o poeta novamente não só repassa seus temas (a metalinguagem, a paisagem do Rio de Janeiro, o amor, o erotismo), mas, sobretudo, o emparedamento resultante da finitude da vida. Diante desse quadro até quando iria a numeração? Nesse livro, o último numeral 247 é datado de 11/1/2017, e o tema é explicitamente a morte.

Como se sabe, Armando começou o processo de numerar parte dos seus poemas em “Numeral/Nominal” (2003). O encerramento se deu até então em 247 poemas numerados. Com a criação de numerar até quando puder colocou de algum modo novos desafios para a sua poesia. Até quando conseguiria numerar? Parece que, nesse caso, poesia, vida e morte, enfim, ficaram amalgamadas. Numerar era desafiar o finito ou o infinito? A existência, digamos numeral, passou então a ocupar o tempo e o espaço da vida-escrita do poeta.

Assim, e mais uma vez, se pode valer disso como uma rara singularidade vindo de um poeta que viveu para e com a poesia. Assim, os 32 numerais/poemas datados vão se somando como se fossem diários. O percurso de cada um revela para o leitor quando foi escrito e desse modo seria uma maneira de estarem tão longe e tão próximos: poeta e leitor (“não sei ser sozinho”, “Confissão”, p. 121). De novo, existe aqui a relação de proximidade que Armando cultivou se dedicando ao ofício de escrever.

Vem à lembrança de uma das definições mais belas e profundas sobre poesia escrita pelo poeta norte-americano Carl Sandburg: “a poesia é o diário de um animal marinho que vive na terra e que gostaria de voar”. Caberia perfeitamente em Armando Freitas Filho.


E, por fim, “Respiro” é um livro que, além de questionar a finitude da existência, mostra que ainda há tempo para respirar os ares do Rio de Janeiro, cidade sempre presente na sua obra, como no poema “Postal do Rio”, em que a beleza natural se impõe diante do Cristo Redentor. Em “Corcovado”, o poeta em suas caminhadas diárias observa a mudança do tempo e capta os tons diferentes das cores naturais que cobrem o céu e acaba por anular a paisagem tão imponente do Corcorvado.

Já em “Marinha”, anota com rara beleza o modo, em paletas diferentes, como as ondas levemente pairam nas delicadas pinturas marítimas do pintor Pancetti e a naturalidade da força das águas do mar que arrebenta repetidamente contra as rochas. Afora esses momentos, há ainda e não poderia faltar o modo que construiu via metalinguagem ao falar do lápis, do papel, das canetas, das folhas, dos livros, do próprio poema, como se fosse uma relação corpo a corpo com essas peças que sempre povoaram o imaginário do poeta. Está lá em “Para este papel”, nos numerais “241”, “244”, entre outros. Mas de maneira especial no delicado poema (de amor?) sem título (p.19), cuja dedicatória se revela: “P/Cri”.


Se, no primeiro livro, Armando tomou como epígrafe os versos do poema “O lutador”, de Carlos Drummond de Andrade, como quem desconfiava que teria diversos embates, como de fato teve, o certo é que a luta não foi vã: pelo contrário, o poeta aceitou e venceu. Continuaremos a respirar a sua bela, áspera e tratável poesia.

Mario Alex Rosa é poeta, artista plástico e crítico literário

Capa do livro "Respiro"
Capa do livro "Respiro" reprodução


“Respiro”
• De Armando Freitas Filho
• Companhia das Letras
• 168 páginas
• R$ 89,90

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