PRIMEIRA LEITURA

Nathalia Campos lança 'Gineceu'

Leia trecho de conto do novo livro da escritora mineira que será lançado neste sábado (15/02)

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Nathalia Campos

“Segunda, às quatro”


Por dias ela tinha achado de ficar trancada no quarto. Não abria. Não respondia Fatinha, que vinha de manhã, de tarde e de noite laborar argumentos como uma prisioneira do lado de fora.


A briga tinha sido feia, e nunca tinham brigado. Fatinha nem sabia bem o quanto, mas justamente porque nunca tinham brigado, o grau zero já era feio. E nem se lembrava da centelha. Uma bobagem sobre o corpo retangular dela, a música alta demais ou a sensação de que elas estavam se afastando.


Cansadas as alegações, remetidas como balas perdidas através da madeira, em inflexões descendentes que foram subindo, subindo, Fatinha, boca-ouvidos grudados à porta, confessou todas as culpas do mundo com o seu que que eu fiz de errado, até que, entre uma batida e outra, a pergunta deixou de ser retórica. Fatinha queria um porquê, que em geral é o que se pergunta quando se tem a resposta invencível do silêncio.


Na primeira manhã depois da reclusão, Fatinha a esperou, segura, na mesa posta com o café da manhã. Acreditava, para ela como para mais ninguém, no poder do trabalho noturno de Penélope. Comprou pãezinhos com fondant, deixou a vitamina D e o probiótico ao lado da xícara do Pequeno Príncipe dela. Com a TV ligada no canal de rádio rock, Fatinha se deixava dominar pelo sentimento maravilhoso de Freddie Mercury em “I was born to love you” para afetar naturalidade, ainda sem assumir, mais para si mesma que para ela.


Enquanto esperava, gangorrando no espaldar da cadeira e achando o apartamento branco e frio como nunca antes, reencontrava fragmentos dos ataques que ela lhe fizera na véspera. Nada que já não tivesse ouvido, sem maior consequência. Que Fatinha atrapalhava o sono dela contando sempre as mesmas coisas, que Fatinha estava paralisada nos quinze anos, que odiava a mania de Fatinha de querer agradar todo mundo e sei lá mais o quê. Fatinha franzia o nariz, moleca, certa de que aquele era um jeito inconsciente e terno de mostrar que caíam os últimos véus da formalidade entre elas.


E toda noite Fatinha cobria a luz do abajur com um lenço para não incomodá-la, luz que projetava no teto, como uma lanterna mágica, as várias metades rosadas de um limão-capeta. Fatinha dormia olhando as costas dela rendidas dentro do edredom fofo, secretamente feliz porque aquele sim era um jeito insuperável de ser amada, o jeito de ser amada por ela; não mais o amor de terceiros, a esse ou a aquele pretexto.


Fatinha podia ser chata sem se expor aos olhos e julgamentos alheios, e essa era uma nudez que seu corpo não conhecia. Mas ela não veio. Ela, que nunca pulava mais de duas refeições nem naqueles dias, em que se recolhia à versão mais compacta de si mesma, como um bicho na toca, em que Fatinha lhe levava sopas, chás, biscoitos acanelados, uma toalha quente, uma mão na testa, não veio.


Daquela vez, não. Daquela vez alguma era coisa diferente, Fatinha já tinha adivinhado, assim que voltou ao apartamento depois da discussão. Nas primeiras horas, ainda podia ouvir o tiro intervalado da descarga da suíte, como um comentário ríspido, o único, inevitável, que ela se dignava a fazer. Um tiro pela culatra, Fatinha pensava, porque um tiro tranquilizante. Com o passar dos dias, nem isso, nem o ruge-ruge de cobertas, nem de passos de meia no carpete, nem o menor traço de movimento abafado capaz de varar a fronteira.


Entre elas, agora, existia uma porta, trancada, nunca aquela porta trancada, aquele obstáculo afrontoso interceptando a comunicação entre as duas, sempre do mesmo lado, sincronizadas, dividindo tudo, o quarto, a cama, o sobrenome, a data de nascimento, o sangue, o ar, a essência.


O corpo de Fatinha, de repente estranho, esfriado, interrompido, sem lugar dentro do casaquinho grafite meia-estação, imaginou o pior. E se ela tivesse se matado? Os pontos finais não eram do seu feitio, mesmo que nos últimos tempos andasse enervada com as reticências. E se tivesse morrido? Uma queda no banheiro, uma ingestão incidental de hipnóticos com analgésicos, um mal súbito e congênito disseminando todo aquele silêncio (no cérebro, no coração?).


Fatinha não conseguia pensar em nada que pudesse impedi-la, impedir a morte dela, nada podia, a não ser o que a evidência do seu próprio corpo vivo significava. Fatinha estava viva, e se estava, ela também não poderia não estar, esse era o pacto.


Sobre a autora e o livro

Mineira de Belo Horizonte, Nathalia Campos é poeta, ficcionista e ensaísta. Publicou, entre outros livros, “Desinfinito” (Patuá, 2017). “Gineceu”, que será lançado neste sábado, é uma coletânea de oito contos que “variam, alternando longos parágrafos cheios de causticidade com diálogos surpreendentes, que fazem progredir narrativas cujos ambientes, geralmente urbanos, não se sobrepõem às microloucuras das pessoas que aí transitam”, destaca a professora e escritora Ana Elisa Ribeiro, na apresentação do livro. “A tensão e a dúvida talvez sejam seus maiores trunfos, assim como algumas viradas que podem nos deixar suspensos ou perplexos. Gineceu é de se ler com dedicação e sem a menor cautela”, complementa Ana Elisa.

"Gineceu"
"Gineceu" reprodução


“Gineceu”
• De Nathalia Campos
• Impressões de Minas
• 212 páginas
• R$ 60
• Lançamento neste sábado (15/2), a partir das 16h, no Espaço Impressões (Rua Bueno Brandão, 80, Loja 02, Floresta, BH)

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