Leia trecho do romance 'O céu da selva'
Novo livro da escritora cubana Elaine Vilar Madruga, autora de 'A tirania das moscas', é lançado no Brasil pela editora Instante
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Tradução de Marina Waquil
A noite virá e, com ela, o zumbido dos grilos.
A fazenda se transformará em um montinho de nada que a escuridão engolirá com sua boca de monstro. A vovó é a única que se atreve a andar pelos corredores depois que o sol se põe. Não tem medo. Logo virá atrás dos grilos porque os odeia, odeia aquele cri-cri-cri que parece choro de criança doente. Mas nesta fazenda não há crianças doentes. Nesta fazenda tratamos de ser fiéis e dormir cedo com um pai-nosso, assim que a tarde cai dormimos, como as galinhas tristes dos currais que vi vem cacarejando ao sol, que sem o sol não são galinhas, apenas carne morta com penas.
Os grilos fazem bem em fugir quando sentem os passos da vovó, que é rápida mesmo sentindo dor nos ossos. A dor se instalou em sua mão esquerda, a mão do coração. Cacete, os ossos são os traidores da idade, é o que ela sempre diz. No ano passado, nesta mesma época, uma noite sonhou que a selva havia ficado vermelha de novo. Acordou angustiada na solidão dos corredores da fazenda, enojada com o mundo que havia sido, enojada com suas lembranças e consigo mesma, e, por um momento, quis que sua mente ou seu coração falhasse, que seu peito doesse e estalasse até que seu esterno se quebrasse. Se levantou da cama gritando. Chamou Santa e Lázaro e, desorientada, caminhou pela escuridão sem roupa.
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Naquela noite ouvimos seus passos pelos corredores, de volta ao quarto, um pouco mais consciente de que havia sonhado com a selva faminta e de que seu medo não era apenas um pesadelo. Maldita selva, merda de mundo, vão pro inferno, cacete, a vovó xingou. Em seguida voltou para a entrada e depois para o alpendre. Ifigênia subiu na janela e disse que a tinha visto nua.
A vovó está pelada, sussurrou Ifigênia, que, apesar do olho vesgo, tinha uma predisposição natural de fera para ver dentro da escuridão, a xereca da vovó é careca. Rimos baixinho, mordendo os travesseiros para que o riso não saísse pela porta nem encontrasse Santa furiosa pelos corredores, que era bem capaz disso e de muito mais, de entrar de repente no quarto e nos surpreender com cintadas, chicotadas, palmadas até que a gente cuspisse as risadas e a maldade à força. A xereca da vovó é careca, e ela não para de olhar para a selva, disse Ifigênia, trêmula.
Foi aí que nossa risada parou.
Não havia mais motivo. Na cama, Juanquito empalideceu e começou a suar porque talvez tivesse chegado sua hora. Ifigênia se aproximou de uma fresta da janela, e todos nós perguntamos qual era a verdadeira cor da selva. É vermelha, é vermelha, é vermelha, queríamos saber, mas Ifigênia encolheu os ombros como se não se importasse com isso.
Não dá pra ver nada diferente, disse depois de um tempo. Como você não se deu conta antes, repreendemos Ifigênia, como é que vai ver o vermelho no escuro, pra ser fofoqueira não pode ser cega. Ifigênia encolheu os ombros de novo, resignada com o fato de termos desdenhado dela por seu erro. Ouvimos mais uma vez os passos se aproximando do quarto e voltamos para as camas, cobrindo a boca: de noite o coração de todos batia ao mesmo tempo, o de Juanquito mais rápido que o de qualquer um, dava para ouvir o dele até no silêncio.
Sobre a autora e o livro
Nascida em Havana em 1989, Elaine Vilar Madruga é romancista, poeta e dramaturga. Graduada em Artes Cênicas, com especialização em Dramaturgia, pelo Instituto Superior de Arte de Cuba (ISA), dá aulas de escrita criativa e já ganhou diversos prêmios nacionais e internacionais.
Entre romances e contos, publicou no Brasil “A tirania das moscas” pela editora Instante em 2023 pela editora Instante, livro lançado também na Espanha, Itália, Rússia e Estados Unidos. “O céu da selva”, que chega ao Brasil também pela Instante, foi considerado um dos dez melhores livros de 2023 pelo suplemento Babelia, do jornal espanhol El País, e finalista do Prêmio Finestres de Narrativa em Castelhano em 2024.

“O céu da selva”
• De Elaine Vilar Madruga
• Tradução de Marina Waquil
• Editora Instante
• 240 páginas
• R$ 74,90