Editora da Nós: 'Editar é muito mais do que produzir livros'
Ao comemorar dez anos da editora que lançou Aline Bei e Scholastique Mukasonga, Simone Paulino lembra que a distribuição é essencial para o sucesso de um livro
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Siga noSimone, o que mudou na atividade editorial nesses dez anos?
O mercado ficou mais diverso. Há uma percepção muito palpável de que existem hoje muito mais editoras do que existiam em 2015. E sobretudo, editoras criadas e dirigidas por mulheres. No meu grupo de editores amigos, a maioria tem menos de 10 anos de existência. Mas se por um lado isso é bom porque diversifica a produção e cria oportunidade de circulação para livros que não teriam chance no mercado já mais cristalizado, cria também muitas distorções. Porque ser editor é mais do que fazer um livro ou 10 ou 100.
Ser editor é se ocupar da cultura, intervir na cultura, na produção literária do seu tempo, no pensamento contemporâneo, o que é, também, uma intervenção sempre política. É uma responsabilidade muito maior do que simplesmente produzir livros. Há uma “piada interna” entre os amigos editores que é a de que existem editoras que não são editoras, são açougues. E isso, infelizmente, não é uma metáfora. Existem hoje no mercado editorial brasileiro dezenas de editoras que só existem para fazer livros com a finalidade de vendas governamentais, por exemplo. Livros que nem sequer chegam às livrarias e ao leitor comum.
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Nos últimos tempos, o FNDE criou uma regra nova, pela qual cada editora pode inscrever nos editais apenas um livro por CNPJ e de CNPJs com mais de cinco anos de existência. Então começou a acontecer esse fenômeno, de transformarem CNPJs de outras atividades em editoras, sem o menor pudor. E houve um caso real de uma editora que foi forjada sobre um CNPJ que originalmente pertencia a um açougue.
Esse tipo de distorção se deve ao fato de que numa primeira visada, qualquer pessoa pode abrir uma editora e fazer um livro, ou vários livros. Mas ser editor de verdade é outra coisa. Para ser editor, é preciso, antes de tudo, ser leitor, amar e respeitar o livro e a cultura, sobretudo o livro e a cultura do seu próprio país. O resto é business. Ou mero oportunismo.[
O que você sabe agora sobre o mercado editorial e não sabia quando abriu a editora?
Infinitas informações sobre os modos de produção e de circulação de livros e autores, não apenas no Brasil, mas em outras partes do mundo. Aprendi, por exemplo, que sem uma boa distribuição, dificilmente um livro pode cumprir plenamente seu trajeto. Grande parte dos livros morre quando sai da esteira da gráfica, porque não encontram seus leitores, já que entre o livro e o leitor existe um entreposto que é a livraria. Seja ela física ou mesmo virtual, a livraria é o lugar de encontro entre autor e leitor.
E pequeníssimas editoras, que não conseguem colocar os livros nas livrarias, sofrem com essa limitação. Eu aprendi também, isso com um mítico editor que eu admiro muito, Roberto Calasso, que a verdadeira edição “é um gênero literário”, e que o editor de verdade “escreve um livro com o seu catálogo”, e sua história será tanto melhor quanto mais fiel a si mesmo e ao seu projeto editorial ele conseguir se manter ao longo do caminho.
Mas infelizmente aprendi também que nem tudo são flores nesse mercado, aprendi a duras penas também, que por trás da aparente cordialidade e do discurso público sobre a importância das editoras independentes como fonte de renovação do cenário literário, existe uma prática predatória e impiedosa por parte dos grandes grupos editoriais, que, sem pestanejar, se apropriam de autores e ideais das pequenas editoras, e com sua esmagadora máquina de marketing, invisibilizam conquistas das editoras independentes, isso quando não inviabilizam completamente a sua existência. Acho isso uma injustiça obscena.
Quais os maiores orgulhos desses 10 anos de existência?
O maior de todos é ter resistido! Eu sou uma pessoa muito obstinada. A típica brasileira que não desiste nunca, apesar de todas as dificuldades, apesar de todas as adversidades. Não é fácil ser uma editora totalmente independente, sem capital estrangeiro ou fundo de investimento bancário, e se manter de pé, durante 10 anos, sendo fiel ao seu projeto de criação de catálogo, e sem, metafórica e literalmente, se vender. Ser editora para mim é quase como uma profissão de fé. É preciso acreditar no que se está fazendo e ter uma motivação interna inabalável.
O resultado disso, do qual muito me orgulho, é que a Nós hoje é uma editora querida, admirada e respeitada por autores, leitores, livreiros e críticos. Ainda me emociono quando chega um livro novo da gráfica. Ainda me comove entrar numa livraria e ver alguém com um livro da Nós na mão comentando sobre ele. Ainda mexe comigo abrir o jornal num sábado e ver uma resenha de um livro nosso numa página inteira, como tantas vezes aconteceu aqui mesmo no Pensar. Também me orgulho, claro, de ter trazido à luz livros e autoras que hoje ocupam lugares de destaque na cena literária contemporânea.
É o caso da Aline Bei, descoberta e publicada pela Nós, e que está prestes a completar 100 mil exemplares vendidos do livro “O peso do pássaro morto” na Nós, o que é um feito e tanto para uma editora independente. Bem como o orgulho é ter conseguido projetar outras autoras brasileiras contemporâneas, como a Mariana Salomão Carrara, a Luiza Romão e a Adelaide Ivánova, a um patamar extraordinário de prestígio, tanto do ponto de vista do olhar da crítica, quanto do ponto de vista comercial. Todas já tinham livros publicados antes, mas ganharam o destaque que têm muito em virtude do trabalho minucioso que fizemos nos livros delas na Nós, com resultados fora do comum.
A Luiza Romão ganhou inclusive o Jabuti de Livro do Ano, além do Jabuti de Poesia. Adelaide Ivánova acabou de ganhar o APCA. Ambas com uma vendagem muito boa, considerando a vendagem de poesia no Brasil. Da mesma maneira, me orgulho muito de ter apresentado ao Brasil nomes hoje incontornáveis como a escritora franco-ruandesa Scholastique Mukasonga, que é a autora mais vendida da Nós, e que mora no coração e na biblioteca pessoal de mais de 100 mil brasileiros. Assim como da autora ítalo-somali, Igiaba Scego, outra que conquistou os leitores brasileiros de forma arrebatadora. Todos esses são sinais inequívocos da relevância que a Nós ganhou nesses 10 anos, sem dúvida. Mas o maior orgulho é continuar. Apesar de.
Qual é o objetivo do novo selo “Clássicas da Nós”?
Esse projeto nasceu inspirado na Virginia Woolf na Nós. Desde 2020, a Nós vem publicando livros muito importantes, alguns totalmente inéditos, da escritora inglesa Virginia Woolf, que é uma das grandes paixões da minha vida. O projeto mais ambicioso é a publicação dos “Diários Completos” da Woolf, em cinco volumes, dos quais já publicamos três, traduzidos pela pesquisadora Ana Carolina Mesquita, a única edição no mundo publicada na íntegra e seguindo os critérios gráficos nos quais os diários foram concebidos por Virginia.
Acontece que ao longo desses cinco anos debruçada nesses escritos e nesse universo, foi se formando na minha tela mental uma espécie de constelação em torno dela. Fui percebendo as autoras com as quais ela dialogava com frequência. Daí surgiu a ideia de publicá-las agrupando sob o mesmo céu da Virginia. A primeira delas é Katherine Mansfield, com a qual Virginia manteve uma relação de ambíguos afetos - e de quem ela também foi editora.
Vamos publicar agora em 2025, “Bliss”, e um volume de cartas da Mansfield. Na sequência, chega à Nós outra de nossas (minha e da Virginia) grande paixão, que é a Jane Austen. A ideia é publicar essas Clássicas na Nós com traduções feitas por tradutoras mulheres, a maioria delas jovens pesquisadoras, que trazem, junto com o rigor textual, um sopro de frescor sobre os escritos dessas autoras.
Como serão os próximos 10 anos da Nós?
Os próximos dez anos serão de uma expansão muito consciente, que nos permita crescer sim, sermos sustentáveis, seguir fazendo projetos inovadores, mas sem perder a essência que nos define, que é de pensar cada livro e cada autor na sua singularidade e nunca como uma grande linha de produção.
Além de seguir revelando novos nomes da literatura brasileira contemporânea e lançando autores estrangeiros ainda desconhecidos por aqui, queremos fazer também um movimento contrário. Para tanto, temos desenhado uma outra rota dessa expansão com o que eu venho chamando de editoras-irmãs ou pequenas células da Nós, que eu venho semeando pelo mundo. Já temos a Nós, em Portugal, a Nossa, na França, e estamos estruturando a Noi, na Itália.
A ideia é levar para esses países parte do nosso catálogo de literatura brasileira, ampliando o alcance das nossas autoras e autores para o mundo e criando, de fato, uma via de mão dupla entre literaturas e culturas.