Uma revolução conduzida pelas ondas do rádio no Leste Europeu
Livro de ucraniano Yuri Andrukhóvitch narra a história de um tecladista de uma banda de rock decadente que se torna ícone da resistência a um regime ditatorial
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Siga noPor diferentes perspectivas, a estreia de Yuri Andrukhóvytch no mercado editorial brasileiro pode ser considerada uma empreitada polifônica. Em “Rádio Noite”, lançado pela editora mineira Zain, o escritor ucraniano apresenta a história de um roqueiro decadente que, em meio aos perenes conflitos do Leste Europeu, tornou-se um ícone revolucionário perseguido por um regime autocrata.
Uma das classificações atribuídas a “Rádio Noite” é a de ‘romance acústico’. O termo não ortodoxo serve, inclusive, porque o livro perpassa os gêneros de suspense, policial, autobiografia dentre outros. Andrukhóvytch também lança mão de uma forte dose de metalinguagem quando escolhe contar a aventura do herói Jossyp Rotsky a partir do esforço de um jovem biógrafo que recebe a incumbência de contar a história do enigmático músico.
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A trajetória de Rotsky é contada entre trechos da saga do biógrafo por documentos e relatos da vida do personagem, passa pelo roteiro de uma peça teatral e é permeada por trechos transcritos do programa de rádio por ele comandado direto do exílio locado em uma cidade fictícia nos bálcãs. Aliás, a não ser pela descrição de um presídio suíço, o livro não cita especificamente nenhum dos locais onde a trama se passa, uma estratégia descrita pelo autor como um esforço de tornar sua obra mais universal.
O misterioso Rotsky é acompanhado em boa parte da história por um corvo sombriamente batizado de Edgar. A aparência física do músico é marcada pela heterocromia, uma representação que pode dialogar tanto com o clássico fáustico de Mikhail Bulgákov (“O mestre e Margarida”) como com David Bowie.
Em seu programa de rádio, ele encarna a persona de um recente sexagenário saudoso de suas experimentações musicais dos anos 1970 e 1980. Seu instrumento nas diversas formações de bandas em que participou é o teclado, escolha acertada para permitir um repertório que abarca desde o clássico experimental de Lubomyr Melnyk e Nils Frahm; ao progressivo de Keith Emerson, Gary Brooker e Rick Wakeman; a um diverso pop que pode ir de Elton John a Klaus Nomi (cantor alemão) e Gillian Gilbert (New Order).
Em entrevista ao Pensar, Yuri Andrukhóvytch falou sobre a construção do romance que, embora repleto de referências antigas, passa-se em um pano de fundo absolutamente contemporâneo de um leste europeu que digere as guerras do passado com conflitos ainda em curso. O escritor ucraniano ainda destacou ao Estado de Minas as suas experiências musicais e como suas predileções dialogam com a do personagem principal.
Entrevista / Yuri Andrukhóvytch
Você escreveu o livro antes do início da guerra que completa três anos. Como o contexto da história ajuda a compreender o conflito que está acontecendo hoje?
Antes de tudo, é um livro dedicado à nossa segunda revolução, à nossa Revolução da Dignidade, que ocorreu na Ucrânia no final de 2013 e terminou em fevereiro de 2014. A pequena invasão russa da Crimeia e, posteriormente, do leste ucraniano foi a primeira e direta reação do regime de Moscou a essa revolução ucraniana. Portanto, podemos considerar esse processo histórico como parte de um processo único e contínuo. Naquele dia de fevereiro de 2014 ocorreu um grande massacre na praça principal de Kiev.
Era uma unidade policial muito estranha; nunca a havíamos visto antes. Eles usavam roupas completamente pretas, uniformes negros.Naquele momento, eles atiraram. No dia 20 de fevereiro de 2014, tivemos cerca de 50 ou 60 participantes dos protestos que foram simplesmente mortos. E eu considero esse dia como o verdadeiro começo da guerra na qual ainda estamos. Você pode acompanhar esse cenário e seguir essa situação em “Rádio Noite”, que é, claro, uma espécie de ficção: não escrevi exatamente sobre a Ucrânia.
O nome do país não é mencionado no romance nem o nome da capital. Mas muitos momentos são muito, muito semelhantes ou praticamente idênticos. É como se... digamos assim: é sobre o dia, figurativamente falando, antes da guerra.
Por que decidiu não nomear os locais?
Foi ideia minha tornar o enredo do romance mais universal, expressar minha opinião de que essa luta entre a ditadura, entre um regime autoritário e a sociedade civil não é apenas uma situação ucraniana. Isso pode acontecer, por exemplo, em qualquer lugar aqui na Europa Oriental. Mas também é possível na Europa Ocidental, e acredito que seja um modelo bastante universal de luta política no mundo atual.
É interessante que, no ano de 2020, eu já estava com o meu romance escrito. Enviei-o para minha editora e, praticamente ao mesmo tempo, ocorreram grandes protestos em Belarus, nosso país vizinho, um país pós-soviético. A brutalidade do poder estatal usada em Belarus foi muito semelhante à que descrevi no meu romance. Então ,”Rádio Noite” poderia ser um romance sobre Belarus, por exemplo.
Como Rotsky, o personagem central, foi construído? E por que ele é um tecladista?
Falando honestamente, sempre foi meu sonho, na minha infância tardia e adolescência, fazer parte de alguma banda. Eu sonhava em ter um papel no palco, tocando música junto com meus amigos. Mas, infelizmente, eu não podia — e ainda não posso — tocar nenhum instrumento. Meu único instrumento é a voz e o meu texto. Então, decidi ser poeta, com esse sonho de escrever letras para algumas bandas que, talvez, um dia eu encontrasse. Assim, eu poderia ser um membro desse grupo. Claro, meu sonho era tocar guitarra.Eu não me atrevia a sonhar com instrumentos que, na minha opinião, são mais complicados, como teclado, piano ou órgão.
Nas minhas observações sobre a música e as bandas contemporâneas, notei um detalhe interessante: os músicos que tocam teclado costumam estar mais isolados dentro da banda. Eles são bastante especiais, comparados aos outros colegas e amigos. Há também uma característica curiosa sobre eles: geralmente, são os únicos na banda que possuem alguma formação musical. Isso foi um momento importante para mim ao criar um personagem que não fosse uma representação autobiográfica. Rotsky não deveria ser eu. E, dentro de uma banda, o músico mais distante dos outros seria o tecladista, pelo menos no meu caso.
Mais tarde, tive contato com diferentes músicos, depois que me tornei um poeta relativamente conhecido. Alguns músicos, primeiro na Ucrânia e depois na Polônia, começaram a trabalhar com meus textos, e passei a tocar junto com eles. Participei de quatro ou cinco projetos musicais diferentes, de forma mais ou menos regular, desde 2002 ou 2003. Então, posso dizer que já são mais de 20 anos de experiência, e minhas observações vêm desse período. Sempre notei um certo elemento melancólico e peculiar justamente nas pessoas que tocam teclado.
Acho interessante porque, quando Anita o viu pela primeira vez, a descrição lembra Keith Emerson. E então pensei que é um instrumento musical que permite falar sobre Raymond e chegar à música eletrônica. Acho que isso abrange uma grande variedade de gêneros. Com certeza. Eu já sabia que precisaria compor algumas playlists, e isso é uma ótima oportunidade para torná-las bastante variadas, desde que o foco principal esteja sempre no piano e no teclado.
Crescendo na Ucrânia, como era sua relação com a música? E quanto da programação de “Rádio Noite” vem da sua playlist pessoal?
Havia algumas composições que eram, por assim dizer, minhas melhore amigas nos anos 1970, como, por exemplo, músicas de Elton John, Procol Harum e alguns outros. Mas eu diria que talvez apenas 15% de toda a playlist venha do meu gosto pessoal. Sempre fui um ouvinte atento às novas tendências do rock and roll, então também há uma parte da música do século 21 incluída.
Algumas dessas composições foram adicionadas à playlist no último momento. Meu romance já estava quase pronto, e eu ainda procurava por músicas que se encaixassem perfeitamente nesta ou naquela parte do livro.
Rotsky frequentemente reclama da invasão da cultura pop descartável no contexto da Europa Oriental. Até que ponto você acredita que essa realidade se expandirá globalmente?
Acho que é inevitável. As pessoas precisam de uma música mais fácil de consumir. Eu não tenho uma visão tão crítica sobre isso quanto meu protagonista. Mas Rotsky, é claro, é um tipo de maximalista, e ele assume esse papel de alguém que reclama. Ele faz isso de maneira humorística, talvez até com uma certa autodepreciação, e não apenas em relação à música. Afinal, ele é um homem que está chegando aos 60 anos, então finge estar sempre reclamando.
É uma espécie de jogo dele. Se eu falar sobre minhas próprias preferências, elas são semelhantes às dele em termos musicais. Acredito que o que foi feito nos anos 1970 no rock progressivo e no art rock permanecerá para sempre como uma das maiores realizações em termos de ideias e performances musicais. Foi algo muito ambicioso e criativo. Às vezes, é uma pena que esse tempo tenha passado, mas não podemos fazer nada para deter o tempo e as mudanças nas tendências. Os tempos estão mudando.
Como você espera que seu trabalho seja recebido no Brasil?
Espero algumas reações. É claro que há estilos musicais brasileiros muito especiais, que são famosos no mundo todo. Em qualquer lugar, pode-se ouvir música brasileira. Sei que a música também é muito popular no Brasil. Acredito que isso possa servir como uma espécie de ponte entre o meu livro e os leitores brasileiros.

“Rádio Noite”
• De Yuri Andrukhóvytch
• Tradução de Lucas Simone
• Zain Editora
• 344 páginas
• R$ 89,90