“Saudade da coxa de catupiry”
Sou do tempo dos salgadinhos reconhecíveis.
Você me entende: do tempo em que, diante da bandeja, a gente não tinha dúvidas — o que ali estava era croquete, coxinha, pastelzinho, empadinha, cigarrete, canapé, barquete ou pastel português. Sem chance de equívoco. Bem diferente, admita, dos dias de hoje, em que é preciso recorrer ao garçom para decifrar enigmas culinários, alguns deles tão complexos e empetecados que você se pergunta se não seriam, em vez de comida, peças decorativas, quem sabe uns ikebanas. Sim, vivemos a era do salgadinho que demanda apresentação. Deveria vir com legenda.
Nada contra a modernização do tira-gosto. Mas me dê um tempo para me adaptar. Outro dia, num casamento, estenderam na minha direção um artefato aparentemente comestível, algo como uma coxinha esférica, acoplada a um talo branco. Era, de fato, uma minicoxinha, creio que de frango — mas e o misterioso talo branco, grosso demais para ser palito? Na roda, um comensal mais ousado se aventurou a mastigá-lo, e aí se deu conta de que, naquele casamento chique, ele tinha na boca um vulgar pedaço de cana. Coxinha com cana — onde vamos parar? E o que fazer com o bagaço? Além de legenda, certos salgadinhos modernos demandam modo de usar.
Muita coisa surgiu na vida de meus maxilares tão fatigados desde a primeira dentição. Na minha infância belo-horizontina não tinha shiitake, rúcula e kiwi, por exemplo. Se alguém dissesse mamão papaia, daria a impressão de estar se referindo a certa modalidade sexual — tanto quanto a também inexistente quiche correria o risco de soar como interjeição: quiche Maria! Em compensação, tinha Crush, drops Dulcora, açúcar cândi, que depois sumiram do mapa.
Como sumiu o cajuzinho. Onde foi parar o cajuzinho? Você vai me dizer que não sei onde tem uma “dona” que faz. Coisas de Belo Horizonte: em alguma parte, em geral na periferia, tem sempre uma dona que faz o docinho, o salgadinho que desapareceu das vitrines. Não duvido de que nalgum recanto da capital haja uma dona do cajuzinho. Vai ver que a mesma do bolinho de feijão.
Esse foi outro que sumiu, o bolinho de feijão. O poeta Paulo Mendes Campos contou numa crônica que certa vez trouxe do Rio uma inglesa exclusivamente para lhe aplicar o bolinho de feijão. Mas no bar de que fora frequentador, na Guajajaras, não havia um sequer. Como o poeta insistisse, o dono pôs um moleque para correr o Centro atrás de bolinho de feijão — e o saldo da expedição foram míseras três unidades, de três diferentes procedências. O escritor não estava inteirado da revolução por que passara o universo dos salgadinhos desde que ele deixou Belo Horizonte. Eis um assunto que deveria interessar aos estudiosos.
Não é o meu caso — sou mero (e voraz) consumidor, vivendo fora de Minas faz décadas —, mas arrisco uma hipótese. Houve um momento, ali pelo final dos anos 70, começo dos 80, em que hordas de salgadinhos modernos fizeram avassaladora entrada, expulsando os tradicionais para a periferia, reduto das “donas”. O quartel-general da inovação pode ter sido a Torre Eiffel, que existiu na Goitacazes com Espírito Santo. Ou foi a também extinta Doce Docê, na subida da Afonso Pena? O fato é que a certa altura a paisagem do salgadinho passou a ser dominada pela coxa de catupiry. Lembra? Enorme, obesa! E dava trabalho a quem a abocanhava: era você cravar os dentes e o catupiry derretido, pelando, vazava queixo abaixo. Valia por um almoço. A versão mais requisitada era a de camarão — e camarão taludo, pois mineiro, privado de mar, vai à forra nesse quesito.
Gente, que fim levou a coxa de catupiry? Tem por aí alguma dona que faz?
(No livro “Esse Inferno vai acabar”)
“Quando me falha a memória”
Já de longe ela estampou um sorriso, e com ele veio na minha direção, varando o povaréu que atravancava o hall da Sala São Paulo.
Eu até mereço, às vezes, um sorriso assim, mas pensei: não é comigo.
Pois foi na minha frente que ela estacou, radiante:
— Eu estava para te escrever! — anunciou, exclamativa, enquanto meu penúltimo neurônio esquadrinhava os miolos, em ritmo de motoboy, na agoniada tentativa de lembrar quem era a moça, por sinal bonita.
Sem desarmar o sorriso, contou que tinha lido uma crônica minha, adorado, onde é que você arranja ideia para escrever essas coisas? — e, ao me chamar pelo nome, agravou a situação: não estava me confundindo com outro cronista, com o Ivan Angelo, sei lá, com o Verissimo (não deixo por menos).
— Qual crônica? — perguntei, como se isso pudesse me tirar do aperto — e aí foi a moça que embatucou, recolhendo o sorriso e convocando às pressas seus próprios neurônios, para ao cabo de uns segundos admitir: não estava se lembrando.
Eu deveria ter ficado ainda mais arrasado: não só ando esquecido como o que escrevo é miseravelmente esquecível. Mas não; baixou em mim uma alegria rasteira — e, num arroubo de mesquinho revanchismo, me rejubilei: a memória dela não está assim tão melhor que a minha!
A minusculidade liliputiana do meu sentimento deve ter transparecido no rosto, pois a moça voltou à carga:
— Você não está me reconhecendo, né?
Dois a um para ela.
— A Conceição — identificou-se.
Como só o prenome não esclarecesse muito, eu estava vendo a hora em que nada mais me restaria fazer senão me restaria me improvisar em Cauby Peixoto e entoar, ali no meio do povo, com ligeira licença poética:
— Conceição, eu NÃO me lembro...
Em vez disso, recorri ao bom senso: olha aqui, Conceição, eu não estou me lembrando de você, você não está se lembrando da minha crônica, que tal a gente começar tudo de novo? — e estendi a mão, prazer, prazer. Para deixar claro que não tenho a pretensão de me passar pelo Ivan Angelo ou pelo Verissimo, estendi também um cartão. Ela não tinha um para trocar, mas ficou de me escrever, de mandar o título da crônica. Espero que não se esqueça. Parece que é mesmo a Conceição. Mas qual delas, meu Deus?
(No livro “O espalhador de passarinhos”)
Estátua da escritora Henriqueta Lisboa na Savassi: "Talvez por falta de companhia para papear, ela tem nas mãos um livro aberto", especula Humberto Werneck
“Pegando um bronze em Beagá”
Foi-se o tempo em que, batidas as botas, o cidadão notável era moldado em bronze e posto a pairar acima dos viventes, no topo de um pedestal. Em Belo Horizonte, pelo menos, não se usa mais. Lá, independentemente de a alma ter subido ao Céu ou baixado ao Inferno, o camarada está hoje condenado ao purgatório do rés-do-chão, com todos os inconvenientes que daí decorrem, inclusive a sem-cerimônia dos cachorros em demanda de poste. ]
Talvez mais do que em outras cidades brasileiras, em Beagá parece ter vingado a moda da estátua pedestre. Embora menos que o pessoal de carne e osso, sua população brônzea não para de crescer. Dela faz parte, para começar, nosso maior poeta, que, desconfio, não deve estar gostando nada da berlinda. Não lhe bastasse ter sido chumbado a um banco na praia de Copacabana, onde volta e meia lhe afanam os óculos, na capital mineira Carlos Drummond de Andrade foi condenado a estar de pé no degradado Centro da cidade, a poucos metros da rua da Bahia que ele tanto palmilhou na mocidade. Menos mal que tenha ali, como teve em vida, a companhia do memorialista Pedro Nava, também ele antigo habituê da região, ambos um tanto escurecidos. Como lembra o escritor Jaime Prado Gouvêa, outro que corre o risco de virar estátua: aqueles dois pegaram um bronze.
Menos sorte teve a poeta Henriqueta Lisboa, a quem a posteridade reservou a solidão num canto de praça na Savassi, não longe, aliás, de sua penúltima morada. De pé ao lado de um tufo de vegetação, sua figurinha ficou ainda mais frágil. Indiferente ao mafuá etílico-musical em que o lugar se transforma nas manhãs de sábado, Henriqueta, talvez por falta de companhia para papear, tem nas mãos um livro aberto. Já o romancista Roberto Drummond, noutro canto da praça, não lê nem papeia: segue batendo pernas pela Savassi. Se em vida se recusava a revelar a idade, tem agora o consolo de estar estacionado, não só no chão como no tempo. De tanto que o tocam, apalpam e abraçam, o Roberto está cada vez mais brilhante.
É esse o problema da estátua pedestre: jazer, desfrutável, ao alcance da irreverência de quem passa. Numa terça-feira de Carnaval, fui ver na praça da Liberdade o grupo de estátuas dos chamados Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse — e dei com um bebum aconchegado de comprido no colo gélido porém acolhedor de Fernando Sabino e Otto Lara Resende, os dois ficcionistas do célebre quarteto, sob as vistas dos poetas Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Fiz uma foto que o Estado de Minas publicou. Mais tarde transferiram a turma para a entrada da Biblioteca Pública, local talvez à prova de desfrute.
A verdade é que em Belo Horizonte a vida das estátuas, seja ao rés-do-chão, seja nas alturas, não tem sido fácil. E não é de hoje. No começo do século XX, a mulher do governador Francisco Salles se horrorizou com a nudez de três ninfas de mármore branco italiano que adornavam um laguinho da praça da Liberdade, e mandou trancafiá-las no almoxarifado da Prefeitura, onde as pétreas senhoritas amargariam quatro décadas de exílio. Não só elas. Vista por alguns como dama de costumes pouco recomendáveis, em 1926 Anita Garibaldi foi removida da praça Rui Barbosa para locação mais discreta, no Parque Municipal, onde está até hoje.
Causou celeuma também o nu masculino que desde 1930 se exibe no Monumento à Civilização Mineira, na mesma praça, bandeira desfraldada em punho. Encomendada ao escultor italiano Giulio Starace, a estátua já ia ser fundida em bronze em São Paulo quando o governador Antônio Carlos mandou ver se tudo estava nos conformes. Não estava, constatou o emissário, a quem genitália do musculoso anônimo pareceu inadmissível. O pobre Starace tentou defender a integridade anatômica de sua criatura, mas teve que entregar os pontos — e providenciais ventos da moral montanhesa fizeram tremular a bandeira, drapeando-a de modo que uma das pontas, jogada contra o baixo ventre, se encarregasse de ocultar a indecorosa prenda. A Civilização Mineira estava salva.
(No livro “Esse Inferno vai acabar”)
Entrevista/ Humberto Werneck
Carlos Marcelo
Autor de “O desatino da rapaziada” fala sobre o trabalho na biografia de Carlos Drummond de Andrade, a forma que Belo Horizonte aparece em suas lembranças e elege sua palavra favorita.
Qual é a Belo Horizonte que guarda na memória?
Tenho várias, superpostas. Gostaria de ter conhecido a cidade que tinha 47 anos no dia em que nasci. Só não gosto daquela, sufocante, que deixei em maio de 1970. Licença para reprisar uma graçola a sério: Belo Horizonte melhorou depois que eu saí.
Qual o maior desatino que cometeu na juventude?
Foram vários, a maioria no Colégio Estadual, onde em 1956 inaugurei o campus do Oscar Niemeyer. Um desatino entre muitos: pressentindo expulsão, reconheci aos berros o meu erro e me apliquei suspensão por 15 dias (punição que cumpri integralmente, à beira da piscina do Minas Tênis, ali ao lado.) Desconfio que a audácia me salvou.
E como tem sido o trabalho de biografar Drummond?
Uma canseira braba contrabalançada por epifanias aqui e ali. Achava que conhecia a vida de Drummond. Me sinto aquele navegante que saiu de Lisboa para comprar noz moscada na Índia e deu de cara com um Brasil.
Uma vida dedicada à arte de reunir palavras (as suas e a dos outros). O que ainda é possível fazer com elas, as palavras, e com a vida?
Tanta coisa melhor ali na estante e eu aqui escrevendo – mas fazer o quê? Não vejo alternativa que não seja combinar palavras, como um barman eternamente em busca de um drinque novo. Continuo achando que o modo de dizer uma coisa pode ser tão ou mais fascinante do que a própria coisa.
E qual a sua palavra preferida?
Tenho algumas, e elas se revezam no topo do pódio. No momento, a favorita é aquela que o biógrafo não vê a hora de escrever: “fim”.