PRIMEIRA LEITURA

Leia dois contos do livro de Socorro Nunes

'Aponto meu lápis com faca', lançado pela editora Urutau, é a estreia como contista da escritora cearense radicada em Minas Gerais

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Socorro Nunes


Sou uma escritora que vive em Morada Velha, cidade diminuta, solitária, cheia de esquinas conflitantes, que me ignora. Vivo cercada de gente estranha que não sabe o valor que as histórias inventadas têm. Não fosse essa vida paralela que vivo há muitos anos já teria enlouquecido nesta cidade com ares de abandono fincada ao pé da serra.

Não vivo aqui a maior parte do tempo, escapo pelas entrelinhas das páginas amareladas de papel de pão que guardo para assentar minha voz. Aponto meu lápis com faca, quero conservá-lo sempre afiado para laçar as palavras que saltam das vozes que escuto atrás das portas e na praça principal quando caminho em círculos à procura do nada. Do nada, não, dos rabiscos que flutuam na minha cabeça e confundem-se com as folhas pequeninas do pé de jasmim que fica no canteiro central.

Guardo cada papel rabiscado na gaveta da mesa da cozinha, tranco com uma chave que mantenho sempre no bolso esquerdo dos meus vestidos. Sim, todos eles têm bolsos onde guardo as memórias do tempo antigo em que nasci, está tudo escrito, minha vida todinha. Nada mais me serve como identidade nem registro de quem sou, depois que descobri que nos papéis de pão posso escrever tudo, todas as veredas trilhadas, os garranchos que se enlaçaram nos meus cabelos, as pétalas das flores que caíram, uma a uma, após o vento frio na noite escura que chegou sem aviso prévio.

Não tenho fotografias minhas em preto e branco nem coloridas, não me servem como armas para enfrentar a hostilidade dos cegos nem o redemoinho dos dias quentes que se abatem sobre mim de quando em vez. Não fujo para as montanhas em busca de abrigo, nem me escondo atrás da pitombeira, tampouco grito no alto-falante da igreja. Prefiro fazer um círculo com a ponta do lápis, me embrulhar no papel de pão já talhado e escondido no bolso esquerdo dos meus vestidos.

A cor deles? São variadas, vibrantes, com dominância do amarelo alaranjado que é pra deixar claro que o sol nasce em muitos céus.

"Aponto meu lápis com faca"
"Aponto meu lápis com faca" Reprodução


“Aponto meu lápis com faca”
• De Socorro Nunes.
• Urutau
• 112 páginas
• R$ 52
• Pode ser comprado no site editoraurutau.com


Sobre a autora e o livro

Cearense radicada em Minas Gerais, Socorro Nunes é doutora em Educação e professora titular da Universidade Federal de São João del-Rei. Lançou os livros de poesia “Meu samba” (Penalux, 2015), “Miragem” (CEPE, 2015), “O que ficou da Fotografia” (Linguaraz, 2016) e “As flores daqui são duras” (Penalux, 2021). É coautora, com Pedro Américo de Farias e Cristiano Aguiar, do livro de ensaios “Ficção em Pernambuco” (CEPE, 2021).

“Aponto meu lápis com faca” é a sua estreia como contista. Todas as histórias são ambientadas em Morada Velha, cidade onde moram as protagonistas. “A escrita pontiaguda, lápis muito preciso e, quando necessário, cruel de Socorro Nunes, tem no lúcido e no enxuto seus principais recursos”, destaca, no prefácio, o autor mineiro Chico Lopes. A orelha é assinada pela escritora pernambucana Rejane Gonçalves, que ressalta a “secura indizível” das mulheres que constroem “uma solidão inimiga”.

“Quantos merecem vingar”


O azul da caixinha sem alças confundia-se com o céu de turmalina e com a memória fugidia da mulher. Mais um dia, um corpo miúdo batia asas em direção ao desconhecido, carregado por quem lhe dera um nome. Os ombros suportam a dor e o peso da cena que se repete naquela geografia deserta e seca de Morada Velha. Quantos merecem vingar, Senhor. Ela que já perdeu tanto. Quem vai alimentar a terra, ver as raízes crescerem, os frutos colhidos no estômago dos seus.

Quem vai continuar a sina, ler as pedras de sal, emoldurar o horizonte, acalentar o porvir. Tem sido assim a passagem do tempo. Desde que nasceu, não há espinho que mereça ter a ponta afiada em meio a essa incerteza. Ainda ontem passou em revista as fileiras plantadas na campina, viu que os olhos ameaçam romper com a cegueira do subsolo, experimentar o ar que as aves respiram, crescerem na direção sul. Ela sabe que o poente não nasceu para todos, apenas os de pulmões simétricos e saudáveis podem desfrutar dos tons alaranjados que tingem a vista.

A crença tem falhado, a sede permanece, a vida insiste, ameaça brotar. Brota. É disso que se alimenta todo santo dia, inclina-se a permanecer onde sempre esteve, esta paisagem é só mais uma igual a tantas outras neste vasto mundo. Se o Senhor a plantou ali, e sobreviveu, deve ser porque merecia vingar, beber a seiva da terra que a pariu. Os que vingaram hão de prolongar o movimento dos pássaros que sobrevoam esta região, foi para isso que nasceram, acredita.

Tarefa difícil, reconheço, afinal os pássaros têm uma arquitetura diferente, nascem determinados a voar a certa altura e velocidade, alguns migram. Esses são mais afeitos à mudança da mecânica do voo. Ela, não. Quando crescem, adquirem cabelos esvoaçantes e dançam com o vento da tarde, que passa sempre ali, sem turbulências. Quando chegam aprendem a brincar com as fibras colhidas no caminho entre a casa e o açude, que, mesmo seco, não perde o sentido.

Tudo ali tem um nome, dado por ela, sem registro no cartório. Alguns são inventados, outros, velhos conhecidos. Alguns adquirem nomes de santos, outros, apelidos de até três sílabas. Alguns são conduzidos à cova antes mesmo de batizados. Não houve tempo suficiente entre a primeira e a última respiração. Outros sequer chegam de olhos abertos e pulmões em movimento. Já nasceram na escuridão onde devem permanecer. Está na hora de entrar, o dia caiu rápido, as aves de rapina passaram riscando o céu, uma estrela cadente amanhece, precisa se proteger, as pedras de sal anunciam a tempestade.

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