O poeta brasileiro que foi confundido com o diabo por uma linda mulher
Ferreira Gullar revela em livro como viveu no exílio após ser perseguido pela ditadura, a paixão por uma russa de olhos verdes e como 'vomitou' um poema sujo
Mais lidas
compartilhe
Siga noAlém de “Ainda estou aqui” (2015), o livro de Marcelo Rubens Paiva que vem ganhando sucessivas reimpressões no embalo do filme homônimo de Walter Salles que concorre ao Oscar neste domingo, outra obra sobre a ditadura militar volta ao mercado. É “Rabo de foguete: os anos de exílio”, lançado em 1998 por Ferreira Gullar (1930-2016), um dos maiores poetas brasileiros.
Em ritmo fluido de romance, o autor maranhense refaz suas memórias nos anos 1970 como perseguido do regime, inicialmente no Rio de Janeiro e depois no Uruguai, na Argentina, no Chile, no Peru e na União Soviética. Ao mesmo tempo em que é refratário ao totalitarismo, ele faz críticas contundentes à esquerda em geral, e, principalmente, à esquerda radical que descambou para a luta armada após o golpe militar de 1964.
Logo nas primeiras páginas, Gullar já denuncia uma faceta ardilosa do regime: “A ditadura tinha tomado medidas para transformar os síndicos e porteiros dos edifícios em alcaguetes. Tornara obrigatório informar a polícia sobre algum novo morador que eventualmente passasse a residir no prédio. Devia o porteiro pedir-lhe o documento de identidade e anotar-lhe os dados para transmiti-los à autoridade policial. Alertado por Ceres, evitei entrar no edifício com minha muleta. Deixei-a na esquina com um de seus filhos, o Nando, que fora a meu encontro, e passei pela portaria como mera visita sem sequer mencionar o número correto do apartamento para onde ia. Mais tarde, o garoto entrou com a maleta, como se fosse coisa de família”.
Leia Mais
Mesmo não sendo militante ativo como filiado ao Partido Comunista Brasileiro e contrário à luta armada adotada pela esquerda radical, Gullar conta como acabou virando alvo da repressão política. Foi após ter sido eleito, contra a sua vontade, para a direção ilegal do chamado Partidão. Sua casa no Rio de Janeiro foi invadida e revirada por agentes do regime. Sob ameaça, ele caiu na clandestinidade e se abrigou em casas de amigos no Brasil antes de ir para o exílio.
Ele observa também no livro: “Se é verdade que, no começo do regime, a direita radical impôs a prática da tortura, em seguida, uma visão mais moderada passou a preponderar, entendendo que a sobrevivência do regime dependia sobretudo do êxito no plano econômico e esse deveria ser seu objetivo principal”.
“Delírio”
Gullar era crítico ácido da radicalização da oposição à ditadura. “A ultraesquerda embarcara no delírio da luta armada, deslocando a disputa para o terreno onde o adversário tinha mais força e tirocínio”, analisa. “O regime militar se tornara cada dia mais violento e repressivo. Os assaltos a bancos por grupos terroristas e o sequestro de embaixadores estrangeiros contribuíram para que as posições da linha dura militar determinassem o caráter da ditadura. Assim, as ações terroristas e a repressão passaram a se alimentar uma da outra”, critica.
A narrativa de Gullar se cruza com a de “Ainda estou aqui”, com o sequestro e o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva: “Residências eram invadidas, pessoas sequestradas e submetidas a tortura bestiais; os militantes presos eram com frequência assassinados e dados como tendo fugido da prisão”. Foi o que alegaram os militares em 1971 sobre o desaparecimento de Rubens Paiva. Não teria havido morte e desaparecimento do corpo, porque ele teria fugido, uma mentira curta que foi facilmente desmascarada nos anos seguintes por evidências e testemunhos.
Amor clandestino
O exílio mais inusitado de Gullar e que incluiu doutrinação ideológica foi na então poderosa União Soviética, onde recebeu o codinome “Cláudio”. Na verdade, Ferreira Gullar também era pseudônimo. O nome real do poeta era José Ribamar Ferreira. Foi enviado a Moscou para treinamento no Instituto Marxista-Leninista, que formava militantes para o movimento comunista de todo o mundo. “As pessoas se agrupavam, primeiro, conforme o país e o partido, depois conforme a língua. Assim, aos poucos iam se misturando os argentinos, os costarriquenhos, os chilenos, os uruguaios, do mesmo modo que os brasileiros e os portugueses, os jordanianos, os sírios, os iranianos”, conta
Gullar, que tinha deixado a mulher, Thereza, no Brasil, também revela a surpresa que teve em um dos intervalos das aulas no instituto: “Me senti observado. Ergui a vista e me deparei com dois olhos verdes, oblíquos, fitando-me. Estremeci. Era uma mulher jovem e muito bonita. Por que me olhava? Abaixei a vista e sorvi um gole de café. Levantei o olhar e de novo a flagrei fitando-me. Ela pareceu se perturbar. Num rompante, pegou a bolsa, levantou-se e saiu. Depois que passou por mim, pude observá-la: era alta, esguia e tinha os cabelos presos atrás por um coque. Logo soou a campainha informando o início da próxima aula. Saí também. Durante a aula de materialismo dialético não consegui me desligar do olhar verde da moça.”
O diabo
Dias depois, por meio de um casal brasileiro, Gullar conheceu a moça de olhos verdes. Chamava-se Elôina e fazia traduções de espanhol para o russo, mas preferia a companhia de brasileiros. “Enquanto eu falava, pude observá-la. Sua pele era branca como mármore, seu rosto quase redondo, com os pômulos salientes, a boca bem desenhada e os olhos oblíquos, orientais, com duas esferas verdes brilhando apertadas ali dentro. É uma princesa, pensei comigo, e tive ímpeto de lhe dizer isso”, conta. Então, aconteceu o inevitável e de forma surpreendente. “Cláudio” e Elôina se tornaram amantes, inclusive, com encontros na casa dela, que era casada e, às vezes, com o próprio marido presente.
Gullar revela um diálogo curioso em um desses encontros com Elôina:
“– Você é um diabo... tentador.
– Diabo por quê? – perguntei-lhe rindo.
– Quando vi você a primeira vez no instituto, levei um susto. Meu Deus, que homem estranho é esse? Tinha a impressão que Mefistófeles acabava de chegar a Moscou.
– E daí?
– Tinham me dito que... ou melhor, Gonçalves tinha me dito que viria para o instituto um poeta brasileiro. Quando vi você, adivinhei que era o tal poeta. Mas não imaginei que tivesse a aparência de um diabo!
– Não tenho nada de diabólico. Sou uma pessoa doce. Posso parecer com o diabo pela feiura.
– Não gosto de homem bonito – disse ela fitando-me fundo. E aduziu: – para azar meu”.
“Nunca fui militante”
Mas em meio à paixão furtiva e às aulas doutrinárias, Gullar diz que se sentia um estranho no ninho. Debruçado na janela do quarto onde estava hospedado em Moscou, pensava na mulher e nos filhos, no seu gatinho Camilo, e se revoltava com a sua condição. “O verão irrompeu na lembrança, a praia de Ipanema sob o sol ardente, repleta de banhistas, os amigos rindo, a cerveja gelada. Senti-me injustiçado. Por que logo eu tinha que estar no exílio. Afinal, nunca havia sido um militante político, nunca pusera política diante da poesia e da arte. Fora levado pelas circunstâncias a participar da luta em favor das reformas sociais e depois contra a ditadura que se instalara no país”, reflete.
“E de repente, encontrava-me em Moscou numa escola internacional de formação de quadros revolucionários como se fosse meu objetivo tornar-me um profissional do partido, um líder revolucionário. Não era nada daquilo”, lamenta o escritor, que dependia de cartas enviadas e recebidas por camaradas do partido para ter contato com a família no Brasil.
De fato, Gullar não relata qualquer militância relevante ao longo das 256 páginas de “Rabo de foguete”. Sua vida na política parece não ter passado de um ideal. “Quis contribuir para haver menos injustiça no país”, respondeu ele a um dos filhos quando questionado sobre a sua clandestinidade. A sua grande contribuição mesmo para o país foi a poesia.
Allende
De Moscou, Gullar foi mandado para o conturbado Chile, em maio de 1973, onde um golpe militar seguia a passos largos para derrubar o presidente socialista Salvador Allende. Ele analisa a situação: “Um dos graves erros cometidos pelo governo socialista foi, logo de saída, dar um aumento salarial de cem por cento a todos os trabalhadores do país, o que provocou o consumo desenfreado e o esgotamento de estoques. As prateleiras ficaram vazias e os preços subiram vertiginosamente”.
“Ao mesmo tempo, o esforço para suprir o comércio e minorar a escassez de mercadorias era frustrado pela ação sabotadora da burguesia, que comprava e estocava tudo que não foi bem perecível. (…) Essa situação era agravada pelo bloqueio econômico imposto ao Chile pelos Estados Unidos. Como represália à nacionalização das minas de cobre, os americanos jogaram no mercado internacional suas reservas desse minério e com isso fizeram baixar o preço do produto que era a base da economia chilena”, lembra Gullar.
“A consequente redução drástica das divisas em dólar provocou a escassez de produtos essenciais que o Chile importava, como a carne, o leite, a manteira, o petróleo, sem falar em peças e acessórios para a indústria e os veículos em geral. A situação tornou-se crítica, a classe média se aliou aos ricos e passou a ouvir a pregação da direita”, conta também o exilado brasileiro.
As consequências de tudo isso foram as piores possíveis. Em 11 de setembro de 1973, Gullar testemunhou o golpe militar comando pelo general Augusto Pinochet, o bombardeio do Palácio La Moneda e a morte de Allende. “O golpe – que começou às seis da manhã numa base da Marinha de Valparaíso – já às duas da tarde estava consumado. A ilusão de que os trabalhadores, quando conscientes e organizados, são capazes de deter um golpe militar, se desfez como fumaça. A resistência que houve foi insignificante para um país onde setenta por cento da classe operária, sindicalizada e atuante, era socialista e comunista”, ressalta o escritor, que teve então de esvaziar às pressas o apartamento onde estava hospedado em Santiago, eliminar todos os vestígios de sua militância comunista e deixar o país.
“Poema sujo”
Foi no exílio seguinte, em Buenos Aires, onde presenciou outro golpe, agora contra Isabelita Perón, que Gullar escreveu sua mais famosa obra, o extenso “Poema sujo”, em 1975. “Sentei-me à máquina de escrever: era a hora de vomitar. Sim, mas como? Fiquei ali, paralisado. Se a linguagem tivesse garganta, meteria o dedo nela e provocaria o vômito verbal... Desapontado, me levantei e fui preparar um café, repetindo para mim mesmo: O poema vai ter que sair, custe o que custar,” descreve o poeta. O livro-poema é uma porrada intelectual com mais de 2 mil versos, um desabafo contra a sufocante opressão então vivida por Gullar. Segue um pequeno exemplo:
“Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
ou dentro de um ônibus ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico acima do arco-íris perfeitamente fora do rigor cronológico
sonhando Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do jantar,
voais comigo
sobre continentes e mares”
Trecho do livro
“A primeira aula de metodologia de O capital deixou-me fascinado. O professor era um espanhol simpático, de sobrenome Mansilla, que viera para Moscou muito jovem, por ocasião da guerra civil, e ali permanecera. (…) Mansilla começou analisando a frase com que Marx inicia O capital: 'Na superfície da sociedade capitalista, a riqueza aparece sob a forma de mercadoria'. Chamou nossa atenção para o verbo 'aparece' e para a expressão 'na superfície', a fim de demonstrar que, para Marx, a mercadoria não é a riqueza, mas apenas a forma como esta se manifesta nesse tipo de sociedade.
Isso é o que aparece na superfície, porque, no fundo, o que o valor de troca dissimula é a força de trabalho contida em cada mercadoria, e que constitui o verdadeiro valor.
Essa explicação foi a chave que me revelou o pensamento dialético e a metodologia com que Marx construiu a sua obra. Marsilla era um professor simples e instigante.
– Você é pai?
– Sou, tenho três filhos.
– Mas também é filho, não é?
– Claro.
– Então você é duas coisas contraditórias ao mesmo tempo: pai e filho.
– É verdade.
– Pois bem, esta caixa de fósforo é uma coisa que você usa, logo para você tem valor de uso.
– Certo.
– Mas para o homem que a vendeu ela não tinha serventia, ele só queria vendê-la. Logo, para ele, a caixa de fósforo só tinha valor de troca.
– Correto
– Então a mercadoria é uma coisa contraditória. Assim como você, que é pai e ao mesmo tempo filho, ela é valor de troca e ao mesmo tempo valor de uso, sendo que, na sociedade capitalista, onde tudo se vende e se compra, aparentemente o único valor que existe é o de troca; mas, na verdade, o valor de uso constitui o conteúdo material da riqueza, o veículo material do valor de troca”.

“RABO DE FOGUETE: OS ANOS DE EXÍLIO”
• Ferreira Gullar
• José Olympio/Record
• 256 páginas
• R$ 69,90 (impresso)
• R$ 37,70 (digital)