Leia poemas de Affonso Romano de Sant’Anna
Escritor mineiro, autor de mais de 50 livros, morreu aos 87 anos na terça-feira (4/3)
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(1937-2025)
“Assombros”
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
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“Corpo: anatomia do mito”
Ferro e cálcio
amor e calma,
iodo e ódio,
chumbo e dor.
Da cartilagem
ao osso,
do menino
ao moço
foi-se fazendo
a anatomia
desse corpo
— difícil e vária —
pois resume
a anatomia
do mito
e da animália.
O corpo
é meu mito
predileto,
a palavra
que mais uso
e o objeto
mais completo.
Por isto,
domar o corpo,
é seus mitos dominar,
é circunscrever os mitos
onde os mitos
devem estar,
que no corpo é que se instalam
e se fazem alimentar.
Por isto,
que outros corpos
há que sempre conquistar,
pois que um mito
a outro mito
sempre ajuda
a decifrar.
“Despedidas”
Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm os que amando tudo o que perderam
já não mentem.
“Reflexivo”
O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.
“Cai a tarde sobre meus ombros”
Cai a tarde
sobre meus ombros
não apenas
sobre os Dois Irmãos.
Desaba mais um dia.
Para muitos — de esperança.
Para outros — de humilhação.
Sobre mim
desaba a história.
Em algum lugar
disseram que há luz
mas o que vejo
— é a escuridão.
Sobre o autor
Nascido em 1937 em Belo Horizonte, Affonso Romano de Sant’Anna cresceu em Juiz de Fora antes de voltar a morar na capital mineira, onde bacharelou-se em Letras Neolatinas pela UFMG, em 1962. Em 1969, também pela UFMG, com uma tese sobre Carlos Drummond de Andrade, tornou-se doutor em Literatura Brasileira.
Com mais de 40 livros publicados, presidiu a Fundação Biblioteca Nacional entre 1990 e 1996, época em que estabeleceu uma eficaz política do livro e da leitura no país. Com cerca de 40 livros publicados, entre poesia, ensaios e crônicas (muitas delas publicadas no Estado de Minas), foi casado com a também escritora Marina Colasanti (1937-2025), com quem teve duas filhas. Faleceu na última terça-feira, no Rio de Janeiro, aos 87 anos.