Religião, isolamento e opressão na Serra do Espinhaço
'Quem será contra nós', livro de estreia da juíza mineira Sílvia Paiva Ramos, parte de um caso real de manipulação da fé de fiéis liderados por um pastor
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Siga noLogo na capa de “quem será contra nós?” (Editora Reformatório), estreia na literatura da juíza de direito Sílvia Paiva Ramos, o leitor vai se deparar com uma personagem importante e testemunha da história ambientada no Norte de Minas. Trata-se da Serra do Espinhaço, a monumental cadeia de montanhas que se estende pelas Gerais e Bahia, em pleno domínio da paisagem. Mas, em vez de ser uma barreira a ser vencida, ela representa, segundo a autora, “o poder da natureza, da verdade, um Deus que impera pela sua beleza e força, independentemente da crença”.
O romance que mescla religião, isolamento, exploração e ambiente opressivo, entre outros elementos de um Brasil profundo, tem como protagonista a jovem Cristina, cuja vida vira pelo avesso quando seus pais decidem seguir um pastor. “A relação da protagonista com essa verdade é o que me interessa, mais do que uma redenção, que parece tão improvável”, conta Sílvia. O primeiro lançamento da obra, já disponível nas livrarias, foi na última quinta-feira em Juiz de Fora (Zona da Mata mineira). Os próximos serão em São Paulo (SP), no dia 26 deste mês, e Belo Horizonte, em 26 de abril.
Embora ambientada em Minas, a história vai além, retratando o Brasil ainda desconhecido da maioria dos brasileiros, um país “que permanece longe da nossa atenção, mas que pode estar na esquina, mais perto do que imaginamos, nos lugares onde o Estado tem dificuldade de estar presente e onde prevalece todo tipo de exploração”. Para tecer a trama do livro, Sílvia encontrou o fio condutor há muitos anos, a partir de um processo em que um grupo, liderado por um pastor, era acusado de submeter centenas de pessoas a condições análogas à escravidão, usando como principal ferramenta de manipulação uma doutrina religiosa.
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“Percebi que era um pano de fundo muito interessante para um romance, e comecei a pesquisar. Encontrei situações semelhantes em todo o Brasil. O romance foi construído a partir da costura de vários recortes dessas realidades e resultou em um livro ficcional, apoiado na investigação íntima sobre como seria se uma jovem comum, de classe média, com preconceitos e sonhos comuns, fosse levada a viver em um local como esses.
Sílvia Ramos nasceu em Juiz de Fora, na Zona da Mata, se formou em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora(UFJF) e ingressou na magistratura aos 29 anos. “Lá se vão 20 anos de estrada. Percorri muitas comarcas do interior de Minas, trabalhando na área cível e criminal. Atualmente, atuo na comarca de Santos Dumont (Zona da Mata)”, revela.
Vivência no campo
A vida rural não é estranha à autora. “Conheço bem.Vivi um bom tempo em uma fazenda, e há muito desse lugar no livro, especialmente nos animais e na paisagem. Ainda na infância, tinha grande admiração pelo meu avô e adorava ajudá-lo na lida do campo. É o tipo de vivência que impregna, que se mistura ao que somos, porque é vivida no tempo da natureza, um tempo que não se manipula, não se acelera, precisa ser respeitado.”
Literatura
Com o trabalho, novas luzes clarearam o caminho de Sílvia. “Tenho a impressão de que, como juíza, e tendo atuado em várias comarcas do interior, conheci muito da vida rural por meio das pessoas que ouvi. Não me inspirei em uma pessoa específica para criar uma personagem, mas talvez as mãos do pai da Cristina sejam as mãos do meu avô.”
Em “quem será contra nós?”, avida da protagonista Cristina é subitamente rearranjada quando seus pais decidem seguir um pastor, entregando o único bem da família para uma vida de reclusão. A promessa de salvação os leva a uma fazenda isolada, onde a jovem se vê presa numa rotina cercada de regras rígidas e trabalho exaustivo. Enquanto a mãe adoece e o ambiente ao seu redor se torna cada vez mais opressivo, Cristina começa a compreender a razão por trás da decisão de seu pai. Entre a lealdade familiar e o desejo de escapar, tenta encontrar uma brecha para a liberdade em meio a uma teia construída pela devoção e servidão, na qual fé e medo se misturam.
Pastor e ovelhas
Na fazenda gerenciada onde o pastor reuniu suas ovelhas, numa remota zona rural, longe de testemunhas, a não ser o Espinhaço, as famílias são laçadas por uma promessa cuja recompensa não está disponível, arrastadas para um galpão que é igreja e tormento. “Convencidos a doar todos seus pertences, os devotos trabalham na terra em busca de um lugar ao céu, território que se conquista com retidão”, observa, sobre a obra, a escritora paulistana Andrea del Fuego.
“O pastor cuida dos fiéis como gado, é preciso muito esforço para chegar ao outro lado da cerca. Também não basta sair da prisão da fazenda, há outros campos de vulnerabilidade, não há proteção em parte alguma. O juízo final é implacável. Nem o inferno é castigo suficiente, pois o fogo ‘destrói os nervos, nas camadas mais externas da pele’ e não é mais possível sentir dor. Qual sentença daria conta da virtude?”, acrescentou Andrea. Considerando “quem será contra nós?” um romance vigoroso e inquietante, sobre a luta de uma jovem para redefinir seu caminho, ela diz que o livro foi “escrito com maestria e literária intimidade com cada ambiente da fazenda, dos homens e da impunidade. Assim, “Sílvia Ramos estreia com um dos grandes romances da atual literatura brasileira”. Leia, a seguir, a entrevista da autora.

A religião tem forte presença no livro, “emparedando” vidas. A senhora conhece bem esse universo?
Conheço a lógica em que esse universo religioso opera. Sei como a esperança na salvação eterna e o temor tocam nossos desejos. A lembrança desse sentimento foi determinante para que eu pudesse escrever. No entanto, o tratamento que o livro dá à dominação religiosa, por meio da interpretação da Bíblia, das falas e dos rituais, é, em parte, fruto de pesquisa e, em parte, pura criação literária.
A capa do livro me chamou a atenção. Vi que se trata de uma fotografia feita em Porteirinha, Norte de Minas. Há uma cerca, uma construção, depois uma pedreira e o céu. Esse cenário ilustra, de certa forma, a saga da protagonista? Depois das “barreiras que parecem intransponíveis”, há saída, horizonte,vida nova?
O que vemos na fotografia da capa é a Serra do Espinhaço, uma longa cadeia de montanhas que se estende pelos estados de Minas Gerais e da Bahia e que domina a paisagem onde se passa o romance que é o Norte de Minas. No livro, a Serra aparece quase como uma personagem e, mais do que uma barreira a ser vencida, está posta como o poder da natureza, da verdade, um Deus que impera pela sua beleza e força, independentemente da crença. A relação da protagonista com essa verdade é o que me interessa, mais do que uma redenção, que parece tão improvável.
Embora ambientada em Minas Gerais, essa história pode ser um retrato do Brasil rural, profundo, ainda desconhecido?
Com certeza, trata-se de um Brasil pouco conhecido, que permanece longe da nossa atenção, mas que pode estar na esquina, mais perto do que imaginamos, nos lugares onde o Estado tem dificuldade de estar presente e onde prevalece todo tipo de exploração.
Este é seu livro de estreia. Como surgiu a ideia de escrevê-lo? Reúne realidade e ficção?
Há muitos anos, tomei contato com um processo em que um grupo, liderado por um pastor, era acusado de submeter centenas de pessoas a condições análogas à escravidão, utilizando como principal ferramenta de manipulação uma doutrina religiosa. Percebi que era um pano de fundo muito interessante para um romance e comecei a pesquisar a respeito. Encontrei situações semelhantes em todo o Brasil. O romance foi construído a partir da costura de vários recortes dessas realidades e resultou em um livro ficcional, apoiado na investigação íntima sobre como seria se uma jovem comum, de classe média, com preconceitos e sonhos comuns, fosse levada a viver em um local como esses.
A senhora conhece a vida rural, se espelhou em pessoas com as quais já teve contato social ou profissional?
Sim, conheço bastante a vida rural. Vivi um bom tempo em uma fazenda, e há muito desse lugar no livro, especialmente nos animais e na paisagem. Ainda na infância, tinha grande admiração pelo meu avô e adorava ajudá-lo na lida do campo. É o tipo de vivência que impregna, que se mistura ao que somos, porque é vivida no tempo da natureza, um tempo que não se manipula, não se acelera, precisa ser respeitado. Mas tenho a impressão de que, como juíza, e tendo atuado em muitas comarcas do interior, conheci muito da vida rural por meio das pessoas que ouvi. Não me inspirei em uma pessoa específica para criar uma personagem, mas talvez as mãos do pai da Cristina sejam as mãos do meu avô.
Como conciliar carreira jurídica e literatura?
No aspecto prático, é preciso alguma disciplina, um compromisso de dedicação diária à literatura, o que tenho feito por duas horas, bem no início da manhã, e nos finais de semana. Mas essa conciliação pode ser mais complexa do que um simples ajuste na rotina. As carreiras jurídicas operam, em geral, num exercício de enquadramento, no qual se parte de um fato, com todas as suas complexidades, para extrair o que interessa ao Direito, em um processo racional de redução. A literatura, ao contrário, exige uma enorme abertura à sensibilidade e provoca uma inevitável transformação na maneira de perceber o mundo. Isso pode ser muito rico, mas também doloroso. Talvez a única conciliação possível entre essas formas aparentemente opostas de pensar seja permitir que se interpenetrem e aproveitar o que uma tem a oferecer à outra.
Na sua avaliação, o interior do Brasil anda meio esquecido? Há foco maior no meio urbano, tanto na literatura com no audiovisual?
Penso que é exagero dizer que o interior anda esquecido. Veja o fenômeno que é o romance “Torto arado”, de Itamar Vieira Júnior, e outras tantas obras contemporâneas que alcançaram muitos leitores. No entanto, é claro que o fato de a cadeia do livro e a maioria dos leitores estaremnoscentros urbanos condiciona, de algum modo, o que é publicado, especialmente por grandes editoras, seja em razão de um gosto por identificação, seja porquequemescreve no interior, com uma voz literária própria, dificilmente chega a essa cadeia.Mas não acredito que, no romance “Quem será contra nós?” a matéria rural tenha relevância a ponto de categorizá-lo dessa forma, porque o campo é um elemento externo e artificial aos personagens, que, na verdade, não são dali. O ambiente rural se apresenta como um meio de isolamento e desenraizamento das vítimas que deixaram suas casas para morar naquele local. O que acontece na fazenda poderia acontecer em uma fábrica.
Trecho do livro
“Minha mãe implica com essa inutilidade que tira tempo do bordado e diz que é por isso que volta e meia tem pesadelos com insetos, mas aranhas não são insetos. Se tivessem deixado eu trazer minha Enciclopédia Universal de Organismos Vivos, se um livro desse não pesasse tanto na mala, conseguiria provar que a culpa de seus pesadelos não é minha, e mostrar o que causa uma fraqueza como a dela, como agem os vírus, as bactérias e as células cancerígenas. É um padrão, se tiver febre alta deve ser bactéria, febre baixa, vírus, sem febre é coisa pior.
Tento fazer o diagnóstico dela medindo com as costas dos dedos, depois com os lábios, mas fervo de tanto suor, o calor desregula meus termômetros e não dá para saber. Na tarde em que chegamos, achei que era sorte terem separado para mim a cama justo em frente à janela e eu ganharia a fresca quando a madrugada fosse alta, mas depois descobri que bateram um prego bem batido rente ao ferrolho, que é para ninguém espiar nossas intimidades.
Mesmo sabendo disso, levada por uma esperança idiota, fico de pé, examino no tato o ferro enfiado na madeira para conferir se alguém, quem sabe, se deu conta da estupidez daquilo e resolveu extrair o prego, liberar uma rota de fuga, em caso de curto-circuito, de fogo alastrando pelos colchões. Não, está da mesma forma, e o calor, o pior do dia, está preso no dormitório. E tem lua lá fora, a que prefiro, daquela que é quase inteira, mas não é ainda. Decido. Faço uma alavanca com uma agulha de crochê forçando um rachado na madeira de lei, abro uma lasca de luz que bate em cheio no rosto da minha mãe.
Posso ver, ela espreme os olhos de vez em quando como quem espera um estrondo. Me pede um comprimido para enjoo e outro para dor, na carteirinha, no bolso do vestido azul, também dois dedos de água da moringa. Fico de pernas cruzadas de novo no chão, e espero que seus remédios façam efeito, o tempo vai me amolecendo a espinha e minha cabeça cai sobre seu braço. Sonho com a apara da lua incompleta flutuando no teto do dormitório e com umaamiga que ainda não conheço.”
“quem será contra nós?”
• De Sílvia Paiva Ramos
• Reformatório
• 244 páginas
• R$ 62 (livro físico) e e-book (somente a partir de abril). Informações:editorareformatorio.com.br