Cao Guimarães conta como surgiu novo filme
Cineasta mineiro revela como resgatou imagens de arquivo para fazer o seu novo documentário, 'Amizade'
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Sou um ser da imagem. Foi através do cinema que na década de 1980 aprendi a ver o mundo, ou melhor, percebi que existiam novas formas de ver o mundo. Os grandes cineastas de invenção dos novos cinemas que eclodiam ao redor do mundo na década de 1960 - a nouvelle vague, o cinema novo brasileiro, o novo cinema alemão, Tarkovski, Pasolini, Antonioni e muitos outros - foram os responsáveis por esta abertura na minha percepção do mundo. Ir a uma sala de cinema era uma espécie de ritual e de comunhão. O cinema era meu templo e minha peregrinação.
Havia algo de sagrado em nossa forma de relação com as imagens. Além disso me lembro da primeira vez que vi a formação de uma imagem quando ainda era uma criança. No ambiente magico do laboratório fotográfico de meu avô vi aquele papel branco submerso em químicos se transformando lentamente em uma imagem em preto e branco. Aquele acontecimento teve em mim um impacto entre o sobrenatural e o místico. Vivíamos ainda num mundo analógico. De lá para cá não parei de produzir imagens, em quase todos os formatos disponíveis nestas 4 décadas. O que significa que formei um imenso arquivo de imagens.
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Durante muitos anos viajei o mundo sempre com alguma câmera à tiracolo. Tanto eu quanto meus olhos estavam ansiosos para ‘engolir’ o mundo. Eu sempre fui fascinado pela alteridade, pelo que era diferente de mim, de minha cultura, de meu país. Realizei vários filmes e trabalhos fotográficos a partir deste embate entre o eu e o outro. Quando fui ficando mais velho minha vontade de viajar foi diminuindo e com ela minha necessidade de transformar o mundo em imagens.
Credito isso a dois fatores. Primeiro minha relação com a imagem (e acho que a da maioria das pessoas) foi se dessacralizando. O estupor do olhar daquela criança diante da aparição de uma imagem no laboratório de seu avô não existe mais, ficou guardado numa espécie de limbo da memória sensorial. A produção de imagens se banalizou, sua fisicalidade e seu mistério quase não existem mais. Hoje bastam alguns segundos para se produzir e publicar uma imagem.
Uma outra coisa importante aconteceu com o passar dos anos, a alteridade deslocou-se do que estava fora de mim para mim mesmo. Fiquei desconfiado de que aquela criança ou aquele jovem cinéfilo não era eu, era um outro de mim. Isso fez com que eu voltasse minha atenção e minha curiosidade para meus arquivos, onde um outro Eu se escondia. Agora o que me interessava eram as sobras, os restos e os rastros. Muitas das imagens que naquele momento eu deixara de lado era o que agora me interessava. A gente vai mudando com o tempo e o tempo é a matéria que o cinema (e a vida) esculpe.
Por isso decidi fazer um filme com meu arquivo pessoal. E dentre os vários temas que apareciam enquanto via estas imagens escolhi o tema da amizade. Pois a amizade para mim sempre foi o exercício por excelência da alteridade e além disso a amizade também é, como o cinema, uma escultura no tempo.

Sobre o cineasta
Nascido em Belo Horizonte em 1965, Cao Guimarães é cineasta e artista plástico. Atua no cruzamento entre o cinema e as artes plásticas, com obras incluídas em coleções como a Tate Modern (Reino Unido), o MoMA e o Museu Guggenheim (EUA), Fondation Cartier (França), Colección Jumex (México), Inhotim (Brasil), Museu Thyssen-Bornemisza (Espanha). Entre outros longas-metragens, realizou “Espera” (2018), “O homem das multidões” (2013), “Otto” (2012), “Andarilho” (2007), “Acidente” (2006), “Alma do osso” (2004) e “O fim do sem-fim” (2001), que foram exibidos em festivais internacionais como Cannes, Locarno, Sundance, Veneza, Berlim e Roterdã.
O mais recente filme de Cao, o documentário “Amizade”, reúne momentos reais, registros espontâneos e memórias acumuladas ao longo de 30 anos. Filmado em diversos formatos – de filmes Super8 e 16mm a telas de computador, fitas cassete e gravações de secretária eletrônica – o longa é definido como a reunião de “pequenos gestos e encontros que, juntos, formam um retrato íntimo e afetivo sobre amizade, tempo e partilha.”