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Livro 'As filhas de Safo' forma inovador mosaico feminino

Inventivo e multifacetado, romance de Selby Wynn Schwartz entrelaça lírica da poeta grega, da ilha de Lesbos, com escritoras que foram além de seu tempo

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Ludimila Moreira

Especial para o EM

“As filhas de Safo”, romance de estreia da norte-americana Selby Wynn Schwartz, professora de escrita criativa da Universidade de Stanford, é uma obra como resgate e gesto inventivo, inventário de uma ancestralidade artística e literária de mulheres do final do século 19 e início do século 20, regida pela incursão e celebração de um feminino poético e de um erotismo lésbico.

Indicado ao International Booker Prize 2022 e publicado no Brasil pelo Grupo Autêntica em tradução de Nara Vidal para o selo Autêntica Contemporânea, o livro trilha um percurso imaginativo de matiz historiográfica e ficcional que acena à dicção ensaística de Rosa Montero (como em “Os perigos de estar lúcida”), mas é no rigor do ofício e na estilística lírica e fragmentada de Anne Carson que vem a maior filiação de Schwartz.


A escrita fragmentada do romance ensaístico forja um complexo mosaico de associações entre era antiga e moderna, e nesta extemporânea contaminação de temporalidades, de reconhecimento das aspirações e talentos de mulheres artistas, vinga um texto como uma espécie de duplo da poesia lírica de Safo. Lina Poletti, Natalie Barney, Eva Palmer, Gertrude Stein, Colette, Virginia Woolf, Vita Sackville-West, Renée Vivien, Romaine Brooks e Sarah Bernhardt aparecem como personagens em uma constante revisitação de temas da poemática sáfica: idílio, elegia, nostalgia, dispêndio amoroso.


Safo, a poeta que viveu entre os séculos VII e VI a.C na ilha grega de Lesbos, próxima à costa da Ásia Menor, aparece aqui como cicerone e catalisadora de uma linguagem às voltas com a pulsão do registro e imaginação dos modos de subjetivação de um feminino que não se dociliza diante de leis do patriarcado. Neste rastro, “As filhas de Safo” lida com os efeitos do culto, das projeções e apropriações estéticas, políticas e psíquicas de autoras e artistas europeias modernas e também da professora e romancista Schwartz à assinatura Safo.


O romance investe em narrativas que se bifurcam em viagens, geografias, salões aristocráticos, quintais míticos e heterotópicos, ativismos, manifestos, sanatórios, cenas artísticas como teatro, artes visuais, arquitetura e design para depois se aglutinaram sob a comunidade de um feminino feminista em disputa e tensões pela ocupação, produção e permanência de seus corpos, desejos e intelectualidade em um território onde o simbólico e concreto são regidos pela soberania do masculino e sua presença anímica, jurídica e epistemológica em livros, tratados, leis, darwinismo social e guerras.


O livro é dedicado à Lina Poletti, nascida Cordula Poletti, ficcionista, poeta e dramaturga que “em sua cerimônia de batismo, ela se livrou das mantas que a envolviam e engatinhou até o altar. Era impossível prendê-la. Nem mesmo durante o tempo necessário para lhe dar um nome.”. Diante dos interditos e violência do patriarcado, o arco narrativo vertiginoso dado à Poletti a redimensiona como personalidade e personagem que se aproxima de nós em intimidade e corporeidade, tanto pelas histórias de lutas quanto pela voz narrativa que faz da leitora integrante presente da trama.


A autora norte-americana compõe um fascinante mosaico de biografemas de mulheres, e nesse movimento de registros e ressignificações a figura de Safo dissemina-se como articuladora de encontros, escrita e futuro. Ao emular os fragmentos 105A e 105B, Schwartz convoca a poeta grega para irradiar a força e luta das autoras que irão afetar-se nesta grande comunhão de vidas e obras: “Para a moça que deseja evitar ser pisoteada pelos pés dos homens, Safo recomenda o galho mais distante da árvore mais alta. Há sempre aquelas raras, Safo diz, que os apanhadores de maçãs esqueceram –/ não, não é que esqueceram: não foram capazes de alcançar.”


O ponto alto deste périplo que interliga Mitilene, Ravena, Londres, Veneza, Roma entre outras rotas e lares, é a engenhosidade da voz narrativa ao elaborar via primeira pessoa do plural nossa participação e afetação fenomenológica em todos os eventos: encontros no idílio sáfico no jardim da poeta e dramaturga Natalie Barney; a inauguração da Biblioteca para Atrizes idealizada por Eleonora Duse e o desembarque de Virginia Woolf e sua irmã em Patras na Grécia. Estamos todas nós nestes acontecimentos de pensamento e ação que povoam o livro.


Profetisa Cassandra


Outra figura mítica e extemporânea do romance é a profetisa Cassandra, responsável no romance pelo contraste à pulsão romântica e utópica da primeira parte da narrativa. Cassandra ressurge como precipitadora de afetos existencialistas e de novas rotas diante de diversos imaginários, como o acossado pela Primeira Guerra Mundial, ou depois pelo fascismo.

Cassandra também se torna personagem do relato da enfermeira Florence Nightingale em 1860, sobre o que levava as mulheres jovens a enlouquecer nas famílias vitorianas de classe alta, a autora argumenta não ser sobre a fragilidade delas e sim sobre as projeções e interdições rígidas na constituição de suas identidades, daí as crises e ataques de nervos.


Outro lugar de maravilhamento do romance de Schwartz é acompanhar o apaixonamento de mulheres artistas em suas partilhas líricas e eróticas, como as ocorridas entre Natalie Barney e Romaine Brooks, Eleonora Duse e Lina Poletti, Sibilla Aleramo e Lina Poletti, Eileen Gray e Damia, Renée Vivien e Natalie Barney, Virginia Woolf e Vita Sackville-West.

Palmilhar os parques, salões de festas, passeios e leituras do casal Virginia Woolf e Vita Sackville-West e ainda presenciar a elaboração e publicação de “Orlando” figura no texto quase como uma experiência religiosa dado o grau de intimidade, epifania e beleza constitutivos das cenas.


De todo esse exercício imaginativo que funda e prolonga os percursos de artistas, arquitetas e escritoras, um inventário expressivo de vidas e obras, fica o desejo de conhecer melhor a história destas mulheres lésbicas e bissexuais, muitas delas quase que inteiramente desconhecidas, salvo por nichos acadêmicos específicos. A incursão mítica, ficcionalizada e tão real, ciceroneada por Safo e pela narradora hospitaleira e cheia de alteridade criada por Schwartz enriquece o repertório histórico, cultural e feminista da leitura.

LUDIMILA MOREIRA é historiadora e doutora em literatura pela Universidade de Brasília (UnB)

Trecho

“Aprimeira coisa que fizemos foi trocar nosso nome.Vamos nos chamar Safo. Quem era Safo? Ninguém sabia, mas ela era dona de uma ilha. Vivia rodeada por moças. Podia sentar-se para jantar e mirar profundamente os olhos da mulher que amava, por mais infeliz que estivesse. Quando ela cantava, todos diziam que era como o fim da tarde às margens de um rio, afundando no musgo, enquanto o céu se derramava sobre você. Todos os seus poemas eram canções.


Líamos Safo na escola, em aulas destinadas apenas a aprender a métrica de poesia. Poucos professores poderiam imaginar que estavam inundando nossas veias de acácia e mirra. Com um tom de voz seco, seguiam explicando o aoristoenquanto dentro de nós sentíamos o agitar de folhas das árvores sob a luz, tudo manchado, tudo trêmulo."

"As filhas de Safo"
"As filhas de Safo" Reprodução

“As filhas de Safo”
• De Selby Wynn Schwartz
• Tradução de Nara Vidal
• Autêntica Contemporânea
• 272 páginas
• R$ 79,80

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