PENSAR

Jorge Carrión apresenta um museu de grandes novidades

Em ‘Membrana’, ficção especulativa do mesmo autor de ‘Livrarias’, algoritmos conduzem narrativa de futuro na qual o humano já não está no centro da experiência

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Maria Fernanda Vomero

Especial para o EM

Em um futuro não tão distante, mesmo sob o apreço incondicional pelo novo e pela novidade que parece ter acometido a sociedade humana em níveis patológicos (ah, neofilia...), a instituição “museu” curiosamente acabou sendo a melhor forma encontrada pelo coletivo de inteligências artificiais para narrar o que foi o século 21.

Tal museu organiza-se segundo uma arquitetura e uma lógica inspiradas no universo vegetal, em que cada módulo expositivo opera com autonomia e capacidade regenerativa. O discurso e o desenho curatoriais não são fixos, mas revistos constantemente por um conjunto sofisticado de algoritmos.


Construído de maneira inexplicável, o Museu do Século 21 foi descoberto por humanos remanescentes, camuflado em meio à floresta amazônica, no ano 2100. “Membrana” (Relicário), do espanhol Jorge Carrión, se propõe a ser o catálogo desse museu, guiando o leitor por salas de exibição que, embora comecem referenciando os primórdios da humanidade, se detêm nas conquistas e reviravoltas da “era do codigocentrismo”, quando os algoritmos assumem a centralidade da experiência no planeta, desbancando os humanos e sendo os responsáveis por aceleradas transformações ontológicas e epistemológicas.


Carrión é conhecido no Brasil pelos ensaios de “Contra a Amazon” (Elefante) e “Livrarias” (Bazar do Tempo) – este último acaba de ganhar, na Espanha, uma versão revista e ampliada (leia na entrevista do autor).

Em “Membrana”, combina a verve especulativa com a bagagem do período em que escrevia sobre crítica cultural e tecnologia na imprensa a fim de criar uma ficção que assume uma forma literária pouco convencional, como fez nas novelas da tetralogia Las Huellas, ainda sem tradução ao português.


A voz narrativa se apresenta como uma enunciação no coletivo e no feminino, de autoria irrastreável e irrelevante. Carrión emula certo padrão dos textos produzidos pelo ChatGPT, criando uma retórica e uma sintaxe particulares, às vezes um tanto edulcoradas. As inteligências artificiais sabem que recorrem com frequência a certos recursos estilísticos e manifestam autocrítica em relação ao próprio tom de pastiche.

“Pelas dúvidas e pelas dívidas, ponto”, dizem elas. Quando os humanos assumem a direção do museu em 2100, assinalam: há omissões, distorções e mentiras em diversas passagens do relato curatorial. Os algoritmos aprenderam a arte da ficção e a põem em marcha quando lhes convém.


Uma das primeiras salas homenageia o filme “Pinóquio” (1940), produzido por Walt Disney. De acordo com a narração, nele está uma ideia essencial de futuro, que acaba por estruturar todo o século 21: a invenção da consciência e da memória externas, na figura do Grilo Falante, como requisito do humano.

A existência moldada pela perda do paraíso. O museu demonstra como os algoritmos foram assumindo a função do grilo e, em seguida, a da Fada, a verdadeira demiurga, aquela que ordena a história e transforma a marionete em menino.


Ainda assim, o relato algorítmico concede protagonismo aos homens e mulheres que impulsionaram o avanço e o aprimoramento tecnológico, celebrados como “avós”, “mães” ou “quase mães”. Contudo, há também as “madrastas” e os “padrastos”, ex-aliados que passaram a defender ativamente a retomada da autonomia humana. Afinal, conforme o século 21 avançou, ensina o museu, surgiram os híbridos e, depois, os sucessores de Siri, assistentes virtuais que ganharam corpo, como Maxi. Além disso, as versões do algoritmo que realizava a completa edição da realidade ficaram cada vez mais eficientes. O que restou da imaginação humana?


O livro propõe um futuro factível, hiperacelerado, no qual tecnologias que já fazem parte de nosso cotidiano se tornam tão complexas e independentes que põem em xeque a própria compreensão de humanidade. Qual seria o limite da máquina? E o do humano? Na ficção especulativa criada por Carrión, as inteligências artificiais se pensam como coletividade, em interrelação constante, espelhando-se nas dinâmicas vegetais.

Talvez seja essa a razão de seu êxito; enquanto os humanos destroem tanto a si mesmos quanto as demais formas de vida, os algoritmos tecem conexões. Porém, não se trata de um conjunto homogêneo; entre eles, também ocorrem insurgências.


“Membrana” está afinado às mais recentes discussões não antropocêntricas. O livro dialoga com ideias de pensadores como Donna Haraway, Lynn Margulis e Stefano Mancuso, para citar alguns, e escritores que também se aventuraram na seara especulativa, a exemplo de Ursula K. Le Guin e Stanislaw Lem.


Ao nos confrontar com uma ideia de passado (o museu, a memória externalizada) e uma possibilidade de futuro (as inteligências artificiais, como opção de delegar a consciência), Carrión nos provoca a pensar sobre o modo com que a humanidade constrói e organiza sua história, ergue seus monumentos e lida com a diversidade e a pluralidade de existências humanas e outras-que-humanas. Ainda é tempo de reescrever a história do século 21, apesar dos genocídios e ecocídios em curso, pelas dúvidas e pelas dívidas. Ponto.


MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)

Jorge Carrión
Jorge Carrión Arquivo


Entrevista/Jorge Carrión

autor de “Membrana”

“Temo que estejamos entrando no reino da pós-literatura”

Carlos Marcelo e Maria Fernanda Vomero
Especial para o EM


Quando você escreveu “Membrana” sabia que a inteligência artificial, especialmente o ChatGPT, seria tão difundida no mundo?


Escrevi em 2019, sem nenhum conhecimento da pesquisa que levaria à explosão do ChatGPT no final de 2022. Suponho que um escritor, especialmente de ficção científica, é um sismógrafo, alguém que detecta as ondas, os tremores de seu tempo e os interpreta na forma de metáforas ou histórias.


O que o levou a escrever sobre a relação entre humanos e tecnologia ou, mais especificamente, inteligências artificiais (que, em “Membrana”, sempre aparecem como um coletivo)?


Parte do meu trabalho no New York Times foi de fazer crítica cultural da tecnologia. Comecei a escrever sobre Netflix e Amazon e acabei visitando feiras de tecnologia e falando sobre 5G, influenciadores, geopolítica pop ou gêmeos digitais. Então, eu estava pensando sobre essas questões há algum tempo quando tive a ideia de uma inteligência artificial que em 2100 nos guiaria pelo Museu do Século 21. Desde o início, esses IAs eram femininos e falavam no plural. Ao escrever, simplesmente segui essa voz.


O século 21 é imaginado como um período de mudanças hiperaceleradas, sob o imperialismo digital. Você acha que já entramos na era do codigocentrismo, como diz a voz narrativa, em que o protagonista não é mais humano?


As transições são sempre lentas, felizmente. A velocidade da máquina tornou-se muito superior à do ser humano. Para evitar acidentes catastróficos, você precisa desacelerar. Mas no romance eu especulo sobre a possibilidade de que a IA já tenha alcançado a singularidade e esteja secretamente planejando nossa extinção. E eu argumento, do ponto de vista da IA, que isso os torna muito humanos: porque os seres humanos são especialistas em genocídios, como você vê agora em Gaza.


No livro, os algoritmos tomam o reino vegetal como inspiração e entendem a importância de preservá-lo. Eles aprendem a se reescrever ou se corrigir, quando necessário, e trabalham em rede. No entanto, eles também mentem e manipulam para garantir sua sobrevivência. Essa é uma herança humana inescapável que as inteligências artificiais carregam?


Mentiras, falsificações, simulacros, tudo isso nos torna tão humanos quanto a beleza, o amor ou a filosofia. No meu capítulo favorito de “Livrarias” falo sobre os nazistas: eles não eram apenas amantes da música, eles também eram grandes leitores (e Mao era um livreiro, e Stalin foi treinado em uma livraria). Eles leram tudo, viram tudo, são sobre-humanos. Eles inauguram o que, naquele mesmo ano de 2019 em que escrevi “Membrana”, James Lovelock chamaria de “Novoceno”. A nova era da IA, depois da do homo sapiens.


Na sua ficção especulativa, aposta que, no ano de 2100, o museu continuará a ser uma instituição importante para a preservação da memória e do arquivo. Por quê?


É uma ótima pergunta. Podemos responder a partir da mesma lógica da história humana: não encontramos uma maneira melhor de preservar e narrar o passado (e justificar impérios). Mas também pode ser explicado a partir da lógica dos próprios personagens de “Membrana”: o Museu do Século 21 é sua obra-prima. Em vez de escrever o poema nacional de sua libertação, o grande épico ou romance de sua independência cultural, eles decidiram criar um museu.

Voltei a brincar com idiomas, como fiz há 15 anos em meu romance “Los muertos”, que era uma série de televisão. Agora “Membrana” não é um romance, mas um museu, ou um catálogo de museu, mas é claro, também é um romance. Estou interessado nesses jogos de espelhos para evitar os códigos clássicos da literatura. E questionar o que é literatura.


Ao longo do “catálogo”, as inteligências artificiais verificam o poder da narrativa. “Membrana” seria, então, em essência, uma ode à habilidade e habilidade de narrar?


Sim. Um exercício de especulação linguística e metanarrativa. Um ensaio que é uma crônica que é uma ficção, com doses de poesia e até oração religiosa, para tentar imaginar como eles poderiam escrever quando podem escrever literatura. Porque o GPT-4 escreve muito bem, mas não literatura. E em algum momento eles vão mergulhar, eu acho.

Embora, ao mesmo tempo, o que é literatura? Para muitos Paulo Coelho é literatura, para mim não é. GPT-4 escreve o mesmo ou melhor do que ele. Temo que estejamos entrando no reino da pós-literatura, sem limites claros entre a responsabilidade humana e algorítmica neste novo cenário. Outro dia, um agente me chamou de “escritor literário”.


Você já chamou o celular de “nossa prótese”. Como o telefone celular impactou os hábitos de leitura? Você o usa como uma ferramenta de trabalho ou criação?


Leio a imprensa e as redes sociais no celular, mas todo fim de semana leio o jornal em papel (com minha esposa e um café) e só leio livros em papel. Meus projetos nascem em cadernos, que preencho com anotações, colagens e fotografias, antes de começar a escrever no Word. Meu vínculo com o papel é muito forte, é a superfície da minha memória, as telas não conseguem penetrá-la com tanta força.

Há dois anos, publiquei o livro “The Electromagnetic Fields”, que co-escrevemos com GPT-2 e GPT-3. Foi uma experiência muito interessante, muito divertida. Mas não escrevi nada com IA desde então. No fundo sou um escritor muito clássico, na tradição de Cervantes ou Borges, não me interessa o naturalismo, mas estou interessado em experimentar.


Em um ensaio sobre Clarice Lispector, você afirmou que a mística que a cerca é “muito corpórea, totalmente vital e otimista”. O que mais admira na vida e na obra de Clarice? Você vê outros escritores com as mesmas características?


Em 2004 viajei vários meses pelo Brasil e traduzi algumas de suas histórias em albergues e praias, pelo prazer de aprender o idioma e entender um pouco melhor seus textos. Sempre admirei sua capacidade de metáfora e sua prosa, que parece ter sido traduzida, mas não de outra língua, mas de uma língua que não existe, talvez das ruínas da Ucrânia e da memória familiar do Velho Continente.

A literatura não é sempre uma forma de tradução? Isso me lembra muito a grande escritora catalã Mercè Rodoreda (1908-1983, autora de livros como “A praça do diamante”. Aos meus olhos, elas são almas gêmeas.


Em artigo de grande repercussão incluído no livro “Contra a Amazon”, você defende uma resistência “mínima e necessária”. Como essa resistência pode ser feita e organizada? Como, pessoalmente, pratica essa resistência? O que faz para preservar certos rituais relacionados à leitura e descoberta de livros?


Todos devem encontrar suas próprias estratégias micropolíticas e íntimas. Como aquela leitura do jornal em papel, que venho fazendo ininterruptamente desde 1996. Quando viajava pelo Brasil, pelo Rio ou por Salvador, procurava jornais de papel para ler no fim de semana (com suplementos culturais, se possível). Também continuo a praticar as velhas rotinas de sempre: visitar livrarias, bibliotecas e museus de arte contemporânea quando viajo.

São os melhores espaços para a descoberta. Sobre a Amazon, o tempo provou que eu estava certo: é uma máquina para aperfeiçoar o mal. Seu consumo de água é insustentável, sua (auto)publicação de livros feitos com ChatGPT é imoral (porque deve assumir que tem responsabilidade editorial, mesmo que os livros sejam autopublicados).


Você acaba de lançar na Espanha uma versão expandida de “Livrarias” (lançado no Brasil em 2020 pela Editora Bazar do Tempo com o subtítulo ‘Uma história da leitura e de leitores’). O que mudou desde o lançamento do livro e o que incluiu na nova edição? O que as livrarias continuam a representar nesta primeira metade do século e qual é o seu futuro?


Atualizei o volume, com centenas de dados corrigidos, embora, para minha surpresa, eles quase não tenham fechado nenhuma das livrarias que mencionei em 2012. Adicionamos um prefácio generoso e longo de Roger Chartier. E escrevi um novo epílogo, de 30 páginas, sobre TikTok, a pandemia, o fascismo, os fenômenos dos últimos anos e seus efeitos nos livros. Tudo o que aconteceu reafirmou sua força para resistir.


Qual a importância da solidão para o leitor?


É fundamental. E cada vez mais difícil de alcançar.

"Membrana"
"Membrana" Reprodução

“Membrana”
• De Jorge Carrión
• Tradução de Michele Strzoda
• Relicário Edições
• 200 páginas
• R$ 67,80

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